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Da parcelização à reintegração das tarefas: um debate teórico sobre o fim da

CAPÍTULO 4. DESENVOLVIMENTO, TRABALHO E QUALIFICAÇÃO: A

4.1.1. Da parcelização à reintegração das tarefas: um debate teórico sobre o fim da

Dentre os inúmeros debates desencadeados pelo surgimento das modalidades pós- fordistas de produção, sobressai-se o da revalorização e do re-enriquecimento do trabalho e do próprio fim da divisão do trabalho, que estariam ocorrendo pela reunificação das tarefas, possibilitada pelo incremento da tecnologia microeletrônica e os métodos de produção originários da Toyota. Neste debate, o novo paradigma sinalizaria para o fim da tendência de desqualificação da força de trabalho, consolidando gradativamente um neo-artesanato, refundado noutro patamar pela tecnologia, por métodos mais eficazes e pela elevação da qualificação dos trabalhadores.

Um comportamento determinante na produção capitalista sempre foi a diminuição dos custos como forma de maximização da produtividade e, no modelo taylor-fordista, os ganhos estiveram assentados na redução dos custos unitários, através da produção rígida de grandes lotes de itens padronizados. Para tal, o modelo empregava a especialização do trabalhador, a parcelização das tarefas, a divisão entre trabalho manual e intelectual e a rigidez dos postos de trabalho. Deste modo, a sua operacionalização pode abster-se de um grau muito elevado de escolarização da força de trabalho, pois, o modelo reservou as tarefas de planejamento e gestão da produção aos escalões superiores, cabendo aos escalões de chão-de-fábrica, as tarefas simples, rotineiras e repetitivas, em que o nível de escolarização era desprezível.

Ao contrário do taylor-fordismo, a produção flexível busca a obtenção dos ganhos através da diversificação da produção, sem elevação dos custos unitários, desprezando a importância dos ganhos de escala. Utiliza ferramental com elevado nível de automação microeletrônica de programação flexível, em que a diversificação é atingida através da constante reprogramação e realimentação dos sistemas informatizados, controladores e planejadores da produção. Segundo os seus apologistas, o modelo exigiria do conjunto da força de trabalho: (i) profundos conhecimentos de programação dos sistemas; (ii) multifuncionalidade para a operação de vários equipamentos e a realização de um grande número de tarefas; (iii) ativa participação nos processos decisórios de gestão e planejamento; (iv) identificação e resolução dos problemas surgidos ao longo do processo e (v) dinâmica pessoal para o trabalho em equipe.

Enquanto na produção de massa o ritmo do trabalho especializado era ditado pela rigidez das tarefas permissíveis pela máquina, na produção flexível o trabalhador exerce maior autonomia, já que lhe seria facultativo intervir, alterar e influenciar no ritmo e nas condições do processo. Pelo grau de complexidade, a operacionalização desse novo sistema exigiria uma força de trabalho altamente escolarizada e qualificada, com pequena distinção entre os escalões superiores e inferiores, tendendo para eliminação da distinção entre trabalho manual e intelectual.

Em especial, o reagrupamento das tarefas estaria exigindo um comportamento multifuncional dos trabalhadores, sendo que esta característica sinalizaria o fim da divisão do trabalho. Inúmeros autores compartilham deste otimismo, entre eles, Womack et al (1992), Kurtz (1992), Coriat (1994), Piore e Sabel (1994), Saviani (1994) e Kern e Schumann (1998). Para não ser muito extenso, exporei apenas os argumentos de Womack et al (1992) e de Kern e Schumann; ao final, também exporei a posição de Paiva (1995) que, apesar de não ser tão otimista quanto estes autores, também acredita na tendência de reunificação das tarefas.

Na glorificação que fazem da empresa japonesa, Womack et al (idem), vêem abertamente a reunificação das tarefas promovida pelo modelo japonês, argumentando ainda que tal fato, em boa parte, repousa sobre a qualificação da força de trabalho empregada; tal qualificação, segundo os autores, só é possível em razão da característica do sistema educacional japonês de formar generalistas. Ainda neste raciocínio, criticam os modelos educacionais do Ocidente, que valorizariam as habilidades isoladas e individuais, fazendo com

que os trabalhadores ocidentais raramente consigam enxergar em paralelo. Para os pesquisadores do MIT, a comunhão das tarefas no modelo japonês ocorre em razão da característica generalista do trabalhador nipônico e da sua capacidade para o trabalho em equipe.

Entretanto, o sistema de produção enxuta necessita de generalistas, dedicados a aprender várias habilidades e aplicá-las num ambiente de equipe (WOMACK et al, 1992: 241).

Ainda no mesmo raciocínio, Kern e Schumann (idem) sustentam que, quanto mais se adota concepções de produto e a generalização de artigos de qualidade e de alta complexidade, quanto mais os novos conceitos de produção exigem o emprego de alta tecnologia, mais se exige em termos de utilização do trabalho recomposto por tarefas totalizadoras, assim como o emprego mais amplo de qualificação.

Por ello hablamos, en relación con los sectores clave industriales, del possible fin de la division del trabajo y de la (re) profesionalización del trabajo de produción. (...) los nuevos conceptos de produción representan por ahora, al menos de forma enbrionaria, un progreso social; (KERN e SCHUMANN, idem: 368).

Quase que na mesma direção, entretanto, tomando a devida cautela em não afirmar o fim da divisão do trabalho, nem a virtuosidade do modelo japonês e da produção enxuta, Paiva (1995) argumenta que a tese de Bravermann (1975) sobre a inexorável desqualificação da força de trabalho está sepultada pelo fato de os novos sistemas produtivos acenarem para a reunificação das tarefas e, consequentemente, demandarem outras exigências mais elevadas de qualificação.

A reintegração das tarefas ocorre num mundo produtivo em que cada vez mais exige-se independência e iniciativa na aprendizagem e na operação, em

que se faz necessário ingressar num novo tipo de raciocínio lógico (PAIVA, 1995: 80).

Entretanto, outras análises sobre os sistemas produtivos dos países periféricos e até mesmo de determinados segmentos dos países avançados revelam excesso de entusiasmo contido nas teses do fim da divisão do trabalho, pois, expõem a desvalorização, o empobrecimento e a diminuição substancial do trabalho, ocasionados pela emergência do novo paradigma; entre tais análises, destaco as de Leite (2003), Hirata (1994, Ferretti (1994 e 1997) e Carvalho (1994).

Em seu estudo sobre a reestruturação produtiva da indústria automotiva brasileira, Leite (idem) detectou o empobrecimento do trabalho ao longo das cadeias produtivas, provocado pela estratégia conservadora das grandes empresas montadoras de obter maior produtividade, empurrando a precarização das condições de trabalho e o uso de trabalho pouco qualificado para as empresas menores da base da cadeia.

Vale notar, entretanto, que havia grande diferença entre os vários níveis da cadeia, com uma nítida tendência à precarização do trabalho e à diminuição dos requisitos de qualificação à medida que se caminhava para o final da cadeia (...) (LEITE, 2003: 127).

Isso demonstra que, na realidade brasileira, o trabalho pouco qualificado não está deixando de existir e, sim, simplesmente varrido da ponta virtuosa para a precária. De maneira que, o olhar para o topo das cadeias, ou seja, para as empresas montadoras, vê um determinado nível de reintegração de tarefas, com o emprego de mão-de-obra melhor remunerada e mais qualificada; mas ao seu final, ainda permanece o emprego de trabalho rotinizado, parcelizado, precarizado, de baixa qualificação e, em muitos casos, até informal. Pior ainda, a pesquisa de Leite revelou que a deterioração das condições de trabalho recai mais sobre as mulheres e negros, constituindo estes os segmentos da força de trabalho mais demandados na ponta precária.

Ora, se isto ocorre no subsetor automotivo, um dos mais dinâmicos, o que dizer dos demais subsetores pouco intensivos em capital? A pesquisa revela que, a depender da indústria

brasileira, a tese do fim da divisão do trabalho é uma teoria desprovida de maiores fundamentos.

No mesmo sentido, Hirata (1994) também minimiza o tamanho das transformações dos sistemas produtivos, alegando que a tendência de coexistência entre o novo e o velho, evidencia as limitações do desenvolvimento de relações virtuosas, como pregam os apologistas do fim da divisão do trabalho.

As teses sobre os novos paradigmas de organização industrial e sobre a requalificação dos operadores como conseqüência da introdução de novas tecnologias são fortemente questionáveis se introduzirmos, na análise, a divisão sexual e a divisão internacional do trabalho. A coexistência de novas figuras produtivas e do fordismo, que é uma realidade mesmo em países de capitalismo avançado (...) é ainda mais verdadeira em países ditos do ‘Terceiro Mundo’, onde as formas tayloristas de produção e de organização do trabalho ainda são amplamente dominantes. Não se pode afirmar que no Brasil já se deu a dupla ruptura com a ideologia do taylorismo na empresa e com o modelo taylorista ao nível da teoria (...) (HIRATA, 1994: 134).

Em certo sentido, o novo paradigma tem reconduzido à utilização de trabalho enriquecido com um nível muito maior de reintegração das tarefas; entretanto isso ocorre apenas em alguns poucos segmentos de produção alocados nos subsetores mais dinâmicos. O trabalho rotinizado, parcelizado, precarizado e desqualificado ainda prevalece em muitos ramos produtivos, até mesmo do capitalismo avançado, não sendo possível afirmar categoricamente que esteja ocorrendo uma total reintegração das tarefas.

E, considerando a afirmação de Leite (2003), já mencionada do Capítulo Três, de que com a tendência generalizada à subcontratação, o trabalho diminui na ponta virtuosa, ao mesmo tempo em que se expande na ponta precária (LEITE, 2003: 88), a redução das bases do emprego nos segmentos mais modernos, refuta a tese do fim da divisão do trabalho.

Portanto, considero que os argumentos sobre o fim da divisão do trabalho estão no mesmo nível ufanista e descolado da realidade que as teses sobre a globalização, o mercado global e a sociedade pós-modera, criticadas por Hirst e Thompson (1998), às quais também

teci críticas ao final do Capítulo Dois. Toda a argumentação até aqui desenvolvida expõe a ameaça à civilização nascida do trabalho que a ofensiva capitalista representa, através da implementação de uma reestruturação produtiva poupadora de trabalho vivo e da tentativa de destruição das garantias sociais. O que é destrutivo não é edificante e a argumentação de Castel (2003) demonstra bem o iminente risco que a sociedade do trabalho corre neste momento.