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Da relação entre representações e práticas sociais

3. A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

3.2 Da relação entre representações e práticas sociais

Como reconhecem Trindade e Sousa (2009), “não é possível compreender fenômenos sociais complexos sem pensar em sistemas de representações sociais. Envolvidos em determinada prática, encontram-se múltiplos objetos sociais e, portanto, múltiplas representações sociais” (p. 240-241). Podendo-se dizer que, na complexidade da vida cotidiana não se pode conceber que apenas uma representação oriente uma prática, mas que sistemas de representações orientam sistemas de práticas (SOUZA, 2012).

Espíndula, Trindade e Santos (2009) investigaram as representações de “adolescente que dá problema”, assim como as práticas educativas desenvolvidas pelas mães de adolescentes em conflito com a lei. Os autores concluíram que “as práticas educativas desenvolvidas pelas mães parecem estar sendo guiadas não apenas pela representação de “filho que dá problema”, mas também por um sistema de representações que inclui as representações de maternidade e de boa mãe, por exemplo” (p. 145).

No estudo clássico “Loucura e Representações Sociais”, Jodelet (2005/1989) foi pioneira de uma série de trabalhos que surgiram ao longo dos anos, interessados nesse objeto de estudo. A autora investigou as representações sociais da loucura no momento em que se processavam importantes transformações nas políticas psiquiátricas da França em prol da desospitalização. Debruçou-se, assim, sobre o contexto da Colônia Familiar, onde as pessoas

da região conviviam cotidianamente com sujeitos advindos de hospitais psiquiátricos, denominados, respectivamente, de civis e não-civis. Em seu trabalho de campo, Jodelet evidenciou que embora os aldeões negassem a associação da loucura como uma doença contagiosa, era notório o hábito de separar os objetos pessoais dos doentes mentais, como roupas e louças, dos demais habitantes das casas. Dessa forma, os aspectos não verbalizados das representações eram demonstrados nas práticas cotidianas, que eram justificadas à pesquisadora como costumes dos “antigos”. (JODELET, 2005/1989).

As representações, portanto, estão ligadas a sistemas de pensamento ideológicos ou culturais mais amplos, a conhecimentos científicos, à condição social e à esfera da experiência privada dos indivíduos. Assim, elas apoiam-se em valores variáveis segundo os grupos sociais de onde tiram suas significações, e em saberes anteriores, os quais são relembrados por uma situação social específica (JODELET, 2001). Verifica-se, nesse estudo, que as formas de conceber e lidar com a “loucura” não são imediatamente modificadas a partir da implantação de novas políticas públicas e da criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Aos saberes e práticas relacionadas à loucura estão enraizados aspectos de ordem histórica e cultural, que variam de acordo com grupos específicos (SEVERO et al., 2007).

Nessa perspectiva, é quase consensual entre os pesquisadores que as representações e práticas se engendram mutuamente, sendo fundamental estar atento às possíveis articulações existentes entre as práticas e a construção da representação de um dado objeto. A relação entre representações e práticas sociais é, portanto, considerada como ponto central no estudo da TRS, ainda que as práticas sociais não se refiram a um fenômeno de interesse apenas dessa teoria (ALMEIDA; SANTOS; TRINDADE, 2000). Apesar de sua importância, Trindade (1998) verificou o uso indiscriminado e a indefinição do conceito de práticas sociais pelos pesquisadores da área.

Neste estudo, as práticas sociais são definidas como sistemas de ação socialmente estruturados. É no processo interativo entre sujeito, objeto e grupo social (ABRIC, 1994) que estas se consolidam e, impregnadas por valores e afetos, adquirem significados, contribuindo para a construção e transformação das distintas representações sociais que permeiam o imaginário de um grupo social (ALMEIDA; SANTOS; TRINDADE, 2000).

Abric (1994) aponta três tendências principais que qualificam a natureza da relação entre as representações e as práticas sociais: 1) as representações determinam as práticas; 2) as práticas determinam as representações; 3) representações e práticas sociais estão em interação. De acordo com o autor, a natureza dessa relação se associa com a natureza da situação com a qual os indivíduos e grupos se deparam, mais especificamente, no que se

refere à autonomia do ator na situação, isto é, seu lugar e as relações que estabelece no sistema de poder ou de obrigações no qual está inserido, e à presença de elementos fortemente relacionados com os afetos ou com a memória coletiva. Almeida, Santos e Trindade (2000) elucidam que embora seja difícil definir de fato a natureza dessa relação, tem havido, entre os pesquisadores, o predomínio da terceira tendência. Isto é, as representações sociais orientam práticas, ao mesmo tempo em que emergem das diferentes práticas cotidianas, atuando cada uma como um sistema que gera, justifica e legitima o outro reciprocamente.

Partindo-se da definição de cuidado, por exemplo, como “uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade” (AYRES, 2004, p. 74), pode-se concebê-lo como uma prática social, pois é fruto de num processo interativo orientado por saberes e valores compartilhados pelos sujeitos nos grupos sociais dos quais fazem parte. “Trata-se de uma atividade que envolve uma apreensão e compreensão dirigidas a um ato, cuja inscrição social e estatuto definem não apenas como cuidar, mas quem deve cuidar, sob quais condições e com quais obrigações” (CARVALHO et al., 2012, p. 70)

Em pesquisa que visava investigar como os cuidados à primeira infância eram compartilhados por famílias de crianças usuárias de uma creche e profissionais da instituição, Maranhão e Sarti (2007) consideraram que a relação dos grupos era por vezes assimétrica, gerando conflitos, tensões e possibilidades. Tal fato foi explicado pelas distinções entre as percepções e avaliações dos problemas de saúde compartilhadas por familiares e profissionais, visto que esses grupos possuem modelos explicativos próprios para lidar com as doenças e suas terapêuticas. Por conseguinte, Oliveira, Siqueira e Alvarenga (2000) afirmam que “as práticas profissionais e familiares, resgatadas a partir das representações que as sustentam, apresentam-se como área profícua de estudo” (p. 164).

Na compreensão sobre o desenvolvimento infantil, é fundamental analisar o ambiente familiar onde a criança vive, englobando o sistema de crenças13 de seus cuidadores, assim como as práticas de cuidado às quais é submetida (MACARINI; VIEIRA, 2011), uma vez que essas são simultaneamente possibilitadas e limitadas por um conjunto de significados que variam “em função de sua história de vida, suas circunstâncias, sua inserção sociocultural e

13 Nessa perspectiva, as crenças são definidas como um conjunto de informações que as pessoas possuem sobre

um determinado objeto, as quais servem como suporte para tomadas de posição diante de uma situação (KOBARG; SACHETTI; VIEIRA, 2006).

histórica, sua identidade de gênero e suas relações socioafetivas” (CARVALHO et al., 2012, p.103)14.

A família15, em especial, é concebida como agente primário de cuidado, de socialização e de transmissão de valores. Segundo Berger e Luckmann (1996/1973) a criança absorve os papeis e atitudes dos outros significativos, interiorizando-os, tornando-os seus. O sujeito constitui sua identidade pela mediação com o outro, que lhe atribui significados, diferenciando-o dos demais. A criança, por sua vez, se apropria e reconstrói tais significados para formar os sentimentos, ideias e opiniões acerca de si mesmo. No âmbito familiar, o cuidado parental envolve desde o cuidado físico às escolhas dos ambientes a serem frequentados pelas crianças, como creches e escolas (CARVALHO et al., 2012), circunscrevendo as oportunidades de interação que a criança poderá vivenciar. Ao mesmo tempo, o ambiente físico e social influencia e é influenciado por adaptações culturais derivadas dos costumes e práticas de cuidado (MACARINI; VIEIRA, 2011).

Os significados de pais e mães sobre o desenvolvimento infantil e o comportamento da criança são, de certa forma, compartilhados pelos membros de um grupo social. Sendo assim, as crenças e práticas se desenvolvem em contextos específicos, relacionando-se com outras concepções que os cuidadores possuem acerca da parentalidade, família, cuidados, etc. (MACARINI; VIEIRA, 2011).

Nos estudos que se utilizam da TRS como aporte teórico, geralmente os pesquisadores se ocupam da investigação das representações sociais de determinado objeto, e a partir dessas, verifica-se suas relações com as práticas. É importante ressaltar que, apesar das representações sociais possuírem um papel importante na orientação de condutas (SANTOS, 2005), não existe relação linear entre representações e práticas sociais. Por isso, optou-se nesta investigação, por realizar o caminho inverso daquele que é comumente utilizado como uma tentativa de apreender os diferentes objetos sociais relacionados às práticas de cuidado. Nesse sentido, encontrou-se respaldo no trabalho de Trindade e Souza (2009), que interrogam: “Se práticas e representações são interdependentes, não seria o caso de, em

14É importante ressaltar que o desenvolvimento envolve um alto grau de imprevisibilidade, não sendo

determinado, mas circunscrito por um vasto conjunto de processos e fatores em interação, que perpassam desde a concepção até aspectos macroculturais dos grupos sociais nos quais a ontogênese acontece (CARVALHO; LORDELO, 2002).

15A família se constitui como um dos grandes temas da contemporaneidade, amplamente discutido na mídia,

senso comum e meio acadêmico. Nesse último vem sendo estudada em termos dos contextos sociohistóricos, suas possibilidades de arranjos, dinâmicas e configurações, refletindo as mudanças sociais macroestruturais. No entanto, não constituiu mérito desta dissertação aprofundar nessa discussão, tecida com maior propriedade por diversos autores (AMAZONAS, et al., 2003; ARIÈS, 1981; COSTA, 1999; RIBEIRO; 2011; SARTI, 2004; VASCONCELLOS; 2013, etc.).

algumas situações, pensar em verificar, através do estudo das práticas, que representações, melhor dizendo, as representações de que objetos sociais estão a elas relacionadas?” (p. 242).

Partindo desses pressupostos, cabe investigar como o cuidado se presentifica nos discursos e práticas de sujeitos oriundos de diferentes contextos sociais, como aqueles envolvidos no cotidiano de serviços de saúde mental infantil. Indaga-se, então: Como são as práticas de cuidado destinadas às crianças usuárias desses serviços? No bojo dessas práticas, como se articulam as representações de objetos sociais diversos como, por exemplo, a infância, a saúde/doença mental, a maternidade/paternidade? Diante dessas questões, elaborou-se o seguinte problema norteador dessa pesquisa: Como as representações sociais de distintos objetos se articulam no cuidado de crianças usuárias de serviços de saúde mental? A proposta desta pesquisa se localiza numa interface entre os campos da Psicologia Social e da Saúde Mental Infantojuvenil. No que tange à Psicologia Social, a Teoria das Representações sociais se apresenta como aporte teórico principal, do qual buscar-se-á aprofundar os conceitos de práticas sociais e sistemas de representação.

4. OBJETIVOS