• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – DA MEDICINA

I.4. DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

“Eu o tratei, Deus o curou” – Ambroise Paré.

Hoje, parece haver um consenso quanto ao fato de que poucas pessoas queixam-se da Medicina em si, enquanto muitas se queixam do modo como ela é aplicada e prestada. De fato, a relação médico-paciente constitui-se num dos capítulos mais complexos quando se fala de Medicina, prevenção, tratamento e cura. Especialistas afirmam que, para haver um mínimo de entendimento e harmonia entre médico e paciente, o médico deve inspirar confiança ao mesmo tempo em que o paciente, por sua vez, precisa compreender que, como qualquer outro profissional, o médico está sujeito às limitações da profissão e da sua própria condição de ser humano - para quem a palavra “milagre” nada significa.

Desde Hipócrates, tenta-se eliminar da mente do paciente a idéia de que o medico é capaz do impossível, pois foi com o médico grego que a Medicina começou a se desvincular do excessivo misticismo que a rondava e com o qual estava envolvida. Hipócrates afirmava que a natureza das doenças poderia ser conhecida por meio de uma observação meticulosa e contínua dos doentes – isso tudo com o uso da razão e do bom senso por parte do médico.

Scliar afirma que “tratar a doença dá poder” (2002:19) e o médico tem um enorme poder sobre o paciente que se entrega aos seus cuidados e conselhos, chegando inclusive a contar ao profissional da Medicina não somente seus sintomas como também muitos fatos de sua vida íntima que, talvez, não dividisse com mais ninguém. O problema é que, como notam alguns médicos (eles mesmos preocupados com o crescente distanciamento com seus pacientes), quanto mais a Medicina avança no campo tecnológico, mais o abismo entre médicos e pacientes se intensifica – e maior é a necessidade de se “humanizar” a prática médica.

É da natureza do ser humano prestar o socorro. A “imagem” ou o “signo” da ajuda e do cuidado já se encontra na mãe que acaricia seu filho quando este sente dor, ou na simples mão estendida àquele que acabou de cair numa via pública – a espontaneidade desses atos é inquestionável. Atos que talvez sintetizem o “amor ao próximo” de que nos falam as Escrituras. E o primeiro grande médico é Deus! Ora, se para os hebreus a doença representava um sinal da cólera divina diante dos pecados humanos, somente Deus poderia curar esse doente. Algumas passagens bíblicas são extremamente ilustrativas: “Eu sou o Senhor, e é saúde que te trago” (Êxodo: 15,26); “De Deus vem toda a cura” (Eclesiastes: 38, 1-9).

Não se pode ignorar também um Jesus que, entre outros feitos, cura seus seguidores e aqueles que n’Ele têm fé – e o auge dessas curas talvez seja a ressurreição de Lázaro. “Numa época em que a Medicina praticamente inexistia, as curas de Jesus arrebatavam multidões”, afirma Scliar (2001:40). O autor lembra que, no Antigo Testamento, muitas são as alusões às medidas de higiene a fim de se evitarem as doenças epidêmicas. “Com exceção de Elias que ressuscita uma criança, não há, no Velho Testamento, curas e mágicas’(2001:41). Se compararmos, veremos que, enquanto o Velho Testamento destaca a

Saúde Pública, o Novo é repleto de casos da Medicina Curativa, individual – Jesus vem a esse mundo porque os homens precisam ser purificados de seus pecados!

Uma das maiores queixas sobre os atuais hospitais, principalmente os públicos, diz respeito ao fato de que os médicos devem atender centenas de pessoas diariamente sem poder, assim, dar a atenção devida a cada doente – ou pelo menos a atenção que cada um gostaria de ter do médico naquele momento de consulta. Esse panorama caracteriza o que muitos escritores chamam de “Medicina Despersonalizada”, ou a Medicina que considera o paciente como sendo apenas um prontuário, uma ficha cadastral que obedece aos regulamentos burocráticos de um hospital. É natural que, depois de cada consulta assim transcorrida, o paciente se sinta frustrado, carente emocionalmente e, principalmente, com medo de que o médico consultado não tenha feito o diagnóstico correto de seu mal.

O termo “diagnose”, explica Cunha, é um termo “próprio da Medicina, que significa o conhecimento ou determinação de uma doença; termo de linguagem científica internacional, tomado do grego ‘diagnosis’, discernimento, exame, de ‘diagignoskein’ discernir” (1982:261) e esse procedimento é o mais importante componente de um consulta médica – é de posse dele que o médico tomará as providências cabíveis para o tratamento de seu paciente; mas Hipócrates alerta, com um de seus aforismos, o primeiro, que “a vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil”, ou seja, “é preciso não somente fazer o que convém, mas ainda fazer com que o doente, os assistentes e as coisas exteriores contribuam para tanto” (Salem, 2002:50). O médico grego também alertava para a gravidade de um diagnóstico errado, pois, dizia ele, as intervenções médicas eram capazes de causar um mal maior que a doença em si. Médicos afirmam que o

excesso de especializações, a secção da Medicina em ramos cada vez mais isolados uns dos outros e o surgimento de muitas drogas (que prometem milagres contra determinadas doenças) têm contribuído significativamente para o aumento dos caos de “iatrogenia”, termo composto pelo radical grego “iatrós” (médico), e “genia”, do latim ‘genus’, gerar – a situação na qual o tratamento médico é a causa da doença.

A iatrogenia constitui-se num verdadeiro pesadelo para qualquer pessoa que procure um médico. Primeiro, porque ele, o paciente, não tem capacidade de avaliar se o tratamento proposto é adequado (a não ser que esse paciente também seja um médico); segundo, porque cada caso de iatrogenia noticiado pela imprensa gera um terrível mal-estar dentro da própria classe médica, prejudicando, e muito, a imagem do profissional ou mesmo do estabelecimento em que ele trabalha. Tudo isso, logicamente, reflete-se no relacionamento médico-paciente.

Segundo Botsaris, “a perda da humanidade é causada, especialmente, por três fatores: o excesso de tecnicismo, o desprezo pela subjetividade dos pacientes e a formação médica incompleta e pouco direcionada para seus aspectos humanos” (2001:239).

Com relação ao surgimento de especialidades em excesso e a conseqüente substituição do clínico geral, muitos médicos são os primeiros a apontar uma crescente despersonalização nos tratamentos – além da solicitação de muitos exames complementares que substituem exames clínicos mais acurados e que encarecem ainda mais o tratamento de determinada enfermidade.

Um outro entrave pode ser apontado na relação de uma pessoa enferma com seu médico: alguns escritores chegam a afirmar que a antiga relação médico-paciente foi, agora, substituída pela relação entre a instituição médica e a doença, já que, de um lado, o médico passou a ser

um “funcionário” de um órgão maior – o hospital ou o Plano de Saúde – e, de outro, o paciente foi deixado em segundo plano, pois se presta mais atenção à sua enfermidade que à sua pessoa.

Juntamente com a imagem de “ser divinizado”, “mágico”, “capaz de milagres”, o médico também é visto muitas vezes como um “herói”, principalmente depois de derrotar uma doença, salvar um paciente e o devolver a uma vida pelo menos próxima da que levava antes da doença; mas o problema é que essa imagem do médico, feita pelo paciente, normalmente costuma embaciar a figura do ser humano que ali está do outro lado da mesa, vestido de brando e que se encaixa no que Campbell escreve: “A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade” (1997:131).

Diante de tal idealização, não são raros os casos em que o paciente, com pré-conceitos já formados sobre a figura do médico, espere desse profissional muito mais do que ele possa dar – chegando, inclusive, a apaixonar-se por ele, semioticamente falando, vítima de uma paixão da qual nos fala Greimas: carregada de “afeição, apego e ciúme, glosado como viva inclinação para um objeto que se persegue, ao qual nos ligamos com todas as forças” (1991:102).

Ismael afirma que “se, de um lado, o médico não pode ser frio e distante, por outro, seu envolvimento emocional com o paciente pode ser danoso a ambos. Como sempre, a perfeição está no meio termo” (2002:77). Assim, a prática da Medicina caracteriza-se como uma verdadeira “arte”, a “arte do equilíbrio”: espera-se que o médico assista seu paciente dispensando a ele cuidados e atenção indispensáveis para alguém que se sente extremamente frágil e vulnerável, ao mesmo tempo em que se resguarde e imponha certa distância saudável para este tipo de relação.

Diante de todos os elementos acima descritos, com base nas variantes possíveis neste tipo de relação, um fato deve ser ressaltado a esta altura: embora possa soar como um chavão, os médicos costumam prevenir os leigos de que “cada caso é um caso” e, assim, teremos exemplos de diferentes “tipos de paixões” dependendo da relação médico- paciente analisada. Há que se destacar a possibilidade de o paciente desenvolver por seu médico a “paixão-amizade”, a “paixão-fascínio”, a “paixão-idolatria”, a “paixão-desejo”, e assim por diante. E, é claro, haverá uma oscilação na intensidade do sentimento que referido paciente possa desenvolver por seu médico, ao longo de um tratamento e mesmo depois de curado.