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CAPÍTULO I – DA MEDICINA

I.2. DO MITO

Cunha explica que “mito” vem a ser uma “narrativa, geralmente de origem popular, sobre seres que encarnam simbolicamente as forças da natureza, aspectos da condição humana, fábula, representação idealizada de um estado da humanidade em um passado remoto ou num futuro fictício; fig. Coisa inacreditável, sem realidade/ mytho 1858/ Do baixo latim mythus, derivado do grego mýthos, palavra expressa, discurso, fábula (...)” (1982:524).

Interrogado sobre “mitos”, Campbell foi enfático ao dizer que “eles são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. Ao invés de busca de sentido, o mito é uma experiência de sentido: mitos ensinam que podemos voltar para dentro de nós mesmos para captar as mensagens dos símbolos. O mito nos ajuda a colocar nossas mentes em contato com essa experiência de estarmos vivos. Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio, surge a luz”, (1988:06).

Rocha, por sua vez, leva em consideração a sociedade e define “mito” como “uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de ‘estar no mundo’ ou as relações sociais” (1999:07). Porém faz uma advertência para o fato de que esse é um termo por demais utilizado e, muitas vezes, de maneira leviana e incorreta. Por isso, diz, deve-se ter cuidado na definição e na análise de mitos. O mito carrega consigo uma mensagem que não está dita diretamente, é constituído de uma mensagem cifrada, pois esconde alguma coisa, o que ele quer dizer não é explicitado literalmente. “O mito não é objetivo” (1999:09).

Ainda que presente nas mais variadas sociedades espalhadas pelo mundo – de ontem e de hoje -, o mito tem uma profunda ligação com o irreal, ou seja, embora faça crer, ele é inacreditável – por mais paradoxal que possa parecer. Rocha afirma que “quem fala o mito, não fala a verdade” (1998:10). Assim, seu conteúdo fantástico acaba por ser seu fio condutor de geração a geração dentro de uma determinada comunidade, pois, quanto mais fabuloso, mais fascinante – quanto mais fascinante, mais memorável.

Barthes vê o “mito” como um sistema de comunicação, uma mensagem. Eis porque não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma idéia; ele é um modo de significação, uma forma. Será necessário impor a esta forma limites históricos, condições de funcionamento, levar essa narrativa à sociedade. Acrescenta o escritor francês que “o mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais, e cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas” (1956:132).

As definições de mito remetem-nos à Psicanálise, pois ele é capaz de mostrar como pensa uma sociedade e sua “visão de mundo” e da existência humana, além das idéias das relações que os indivíduos de uma comunidade devem estabelecer entre si. Isso fica evidente tanto quanto se analisa um único mito quanto a “mitologia” completa de um grupo social. Freud interpretou, entre outros, o mito de Édipo, enquanto Jung, por exemplo, com sua Psicologia Analítica, afirma que “os mitos estão todos numa região da mente humana – o inconsciente coletivo, uma espécie de repositório que todos possuem da experiência coletiva” (2005:22). Rocha afirma que “o que subsiste de comum nos muitos e alternativos discursos sobre o mito é a idéia constante de que o mito está, efetivamente, ligado à possibilidade de ser interpretado” (1999:13).

Falar de “mito” implica falar de Antropologia Social e seu “trabalho de campo”, pesquisando as várias sociedades e suas crenças. O “trabalho de campo” propicia ao antropólogo vivenciar uma outra cultura sem que sua visão esteja demasiadamente deslocada por eventuais preconceitos que possa ter em função de sua própria cultura. “Pleno de significações, usos, comentários, possibilidades, pensamentos e práticas a ele atreladas, o mito é estudado, pelo “trabalho de campo”, na sua

concretude social. A partir daí, para a Antropologia Social, ficou cada vez mais difícil falar do mito sem consagrar a importância do conhecimento ‘etnográfico’, ou seja, do conhecimento levantado na sociedade de onde se retirou determinado mito” (Rocha, 1999:39).

Jung, ao dissertar sobre o “inconsciente coletivo”, usa um termo de Santo Agostinho: os “arquétipos”, isto é, uma espécie de impressão psíquica, ou “um conjunto de caracteres que, em sua forma e significado, são portadores de motivos mitológicos arcaicos – o mito é, então, conteúdo e manifestação do inconsciente coletivo (Rocha, 1999:43).

Enquanto se pode afirmar que as interpretações não esgotam o mito, Barthes é enfático ao escrever que “pode conceber-se que haja muitos mitos antigos, mas não eternos, pois é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela história; não poderia de modo algum surgir da ‘natureza’ das coisas” (1956:132). E acrescenta que “a fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias-primas do mito- quer sejam representativas, quer gráficas -, pressupõem uma consciência significante, e é por isso que se pode raciocinar sobre eles independentemente da sua matéria” (1956:132).

Durand aborda o mito como sendo um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas; um sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende-se a compor-se em narrativa. Afirma que no mito já se encontra um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras, e os arquétipos em idéias. O mito explana um esquema ou um grupo de esquemas. Assim como o arquétipo traz a idéia de que o símbolo engendra o nome, podemos

dizer que o mito promove uma espécie de doutrina religiosa, um sistema filosófico ou uma narrativa histórica e lendária.

O fator “tempo” é, também, importante para que se compreenda a natureza do mito, pois nele tudo perde a lembrança de sua produção. Com o passar do tempo, o mito afugenta o real, ao mesmo tempo em que não nega os fatos, mas fala deles: o mito purifica os acontecimentos, torna-os “sagrados”, “santificados”, acima de qualquer contestação. Barthes afirma que “um mito amadurece porque se expande” (1956:169), isto é, cristaliza-se à medida que atinge mais e mais pessoas numa comunidade, pessoas que se encarregarão de “transmiti-lo” à frente, a outras gerações.