8. QUESTÕES EM APARENTE CONFLITO COM A CONSTITUIÇÃO
8.5 Da Soberania
O conceito de soberania sempre esteve relacionado ao poder.
Durante o período absolutista, o poder era representado pela figura do
Soberano. Depois, o poder passou para o Estado que o exerce, ainda hoje, por
meio de seus representantes eleitos
132.
Tal conceito, que vinha sofrendo mudanças e sendo relativizado
desde a Segunda Guerra Mundial, sofreu ainda mais alterações com a
instituição do Tribunal Penal Internacional e sua responsabilização penal
131 PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela Ribeiro. O Tribunal Penal Internacional e o Direito Brasileiro. In: Temas de Direitos Humanos. 2ª ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 181.
132PRIZON, Leisa Boreli. Genocídio: análise histórica e competência pelo Tribunal Penal Internacional. In:
SILVA, Marco Antônio Marques da (coord). Processo Penal e Garantias Constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 442.
individual. Tal responsabilidade individual foi crucial para mudar a visão da
soberania.
A soberania era tida como poder absoluto, indivisível e ilimitado,
mas as Guerras Mundiais rompem com este conceito na medida em que não
se consegue mais explicar os acontecimentos internacionais e nem os
internos.
Conforme Flávia Piovesan
133, o fim da Segunda Guerra fez com
que muitos pensadores entendessem que a soberania não é um princípio
absoluto e que esta deve sofrer limitações em respeito aos Direitos Humanos.
Os países, no pós-guerra, começam a pautar suas Constituições
nos direitos e garantias do indivíduo. Passaram a se preocupar com a
dignidade humana, com a democracia e, conseqüentemente, com a soberania
popular.
Tais temas foram debatidos e os sistemas constitucionais de cada
Estado foram absorvendo as diretrizes internacionais sobre os Direitos
Humanos.
As diretrizes foram traçadas por documentos internacionais
elaborados no pós-guerra com a criação das Nações Unidas e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
133 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. ampl. atual.
A Declaração Universal é um marco no reconhecimento dos
Direitos Humanos. É declaração de princípios que deveriam ser seguidos,
observados e exercidos.
O Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 confirma o
comprometimento do Estado Brasileiro na ordem interna e internacional com
os valores e os princípios por ela promulgados.
Dentre os princípios que regem o Estado Brasileiro estão a
dignidade da pessoa humana e a soberania. Mais ainda, o artigo 4° estabelece
que nas suas relações internacionais, o Brasil reger-se-á pela prevalência dos
Direitos Humanos.
A Constituição é um instrumento composto por normas
elaboradas de forma sistemática, com regras e princípios. Enquanto as regras
demandam pouca ou nenhuma interpretação de conteúdo, os princípios
precisam de uma maior atenção.
Os princípios envolvem conceitos abstratos
134que devem ser
preenchidos pelo intérprete. São eles que determinam os parâmetros a serem
seguidos por uma nação.
No tocante ao Tribunal Penal Internacional, há que se ressaltar a
importante manifestação do exercício da soberania brasileira. O Brasil ao
134 Ao incorporar idéias como igualdade, liberdade, democracia, dignidade humana, etc, a Constituição traz
para seu corpo de normas princípios de justiça que por sua vez, são de difícil conceituação. (VIEIRA, Oscar Vilhena. Imunidades de Jurisdição e foro por prerrogativa de função. O Tribunal Penal Internacional e a
Constituição Brasileira. Revista do Conselho da Justiça Federal, Brasília, Centro de Estudos Judiciários, n 11, ago. 2000).
participar da elaboração, assinar e ratificar o Estatuto de Roma posicionou-se,
claramente, favorável à proteção internacional dos Direitos Humanos.
Mais ainda, o Brasil deu efetividade ao artigo 7° do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias acrescentando, pela Emenda
Constitucional n° 45, o parágrafo 4° ao artigo 5° da Constituição Federal,
dizendo que: “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal
Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.
Esta regra constitucional foi efetivada com base nos princípios
da dignidade humana, prevalência dos Direitos Humanos e no exercício da
soberania.
As questões tratadas anteriormente como sendo conflitos que se
colocariam entre a Constituição Federal e o Tribunal Penal Internacional são
reafirmadas como “aparentes” e não prosperam uma vez que, ao ratificar o
Estatuto de Roma, o Brasil exerceu sua soberania. As questões de Direitos
Humanos no plano interno são acrescidas pela normativa internacional e vice
versa.
Claro que não podemos deixar de mencionar que questões
políticas e econômicas internacionais quase sempre determinam as políticas
nacionais. Um país que depende financeiramente de outro muitas vezes se
submete ao seu poder
135.
135 PRIZON, Leisa Boreli. Genocídio: análise histórica e competência pelo Tribunal Penal Internacional. In:
SILVA, Marco Antônio Marques da (coord). Processo Penal e Garantias Constitucionais. São Paulo: Quartier Latin, 2006 P. 442.
A desigualdade financeira entre os países, a globalização, os
interesses econômicos, a criminalidade organizada enfim, são questões fortes
que, por vezes, se colocam como obstáculos para os sistemas internacionais
de proteção aos Direitos Humanos.
Mas, são estas mesmas questões que impulsionam a
concretização de uma jurisdição internacional. É muito difícil pensar na
questão da soberania sem entendê-la relativizada.
Sobre a relativização do conceito de soberania, nos ensina Flávia
Piovesan
136:
“A partir do momento em que o Brasil se propõe a
fundamentar suas relações com base na prevalência dos
direitos humanos, está ao mesmo tempo reconhecendo a
existência de limites e condicionamentos à noção de soberania
estatal. Isto é, a soberania do Estado brasileiro fica submetida
a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a
prevalência dos direitos humanos. Rompe-se com a concepção
tradicional de soberania estatal absoluta, reforçando o
processo de flexibilização e relativização, em prol da proteção
dos direitos humanos. Este processo é condizente com as
exigências do Estado Democrático de Direito
constitucionalmente pretendido”.
136 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8ª ed. rev. ampl. atual.