3 OS JORNALISTAS: O PAPEL DOS INTELECTUAIS DA EQUIPE PRECURSORA NA ESTRUTURAÇÃO DA LINHA
3.1 DA TRADIÇÃO DA INTERFACE JORNALISMO E LITERATURA
A confluência entre o fazer jornalístico e o fazer literário não era uma experiência recente quando a revista Realidade foi lançada em 1966. Esta associação data dos primórdios do jornalismo e não se restringe somente ao âmbito cultural brasileiro. Relacionase ao desenvolvimento da imprensa o fato de ter sido uma instituição social atuante em momentos de intensas mudanças culturais, em meio a conflitos políticos e renovações artísticas relevantes. Nessas inúmeras circunstâncias históricas tornouse constante a figura do intelectual que é, a um só tempo, jornalista e escritor. O trabalho na imprensa, para muitos escritores, acabou funcionando como um estágio importante em suas trajetórias profissionais, não apenas pelas possibilidades oferecidas pela aproximação com a realidade social a ser tratada, mas também como exercício na arte da palavra e da produção textual e uma possível abertura para um engajamento político – atributo que pode ter seduzido muitos literatos num tempo em que a militância nos jornais era mais usual e receptiva. Historicamente, jornalismo e literatura são gêneros discursivos que, ao longo de suas trajetórias, constituíram vários pontos coincidentes. No decorrer do século XVIII, até meados do século XIX, os jornais sobreviveram como empresas pequenas que agiam sob alguma causa política e eram comandados por escritores, políticos e intelectuais. Nesse período, vários homens de letras trabalhavam nas redações, dando suas contribuições como agentes políticos, jornalistas e romancistas.
Nessa época, os jornais eram usados como divulgadores de obras literárias, publicadas em fascículos a cada nova edição sob a forma de folhetins. No período, os jornais agregavam uma plêiade de escritores que publicaram suas obras usando as páginas dos jornais como Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Charles Dickens, Walter Scott e Camilo Castelo Branco. Todos foram escritores que tiveram suas obras oportunamente divulgadas "a contagotas", difundidos pelas
páginas dos jornais.
No Brasil existiram vários exemplos similares. Dentre eles, o mais notório foi Machado de Assis. No início de sua carreira como homem de letras, Machado exerceu a profissão de jornalista trabalhando como repórter do Senado em 1860, sendo cronista nos jornais Diário do Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias e Correio Mercantil. Um outro exemplo foi José de Alencar, que atuou como cronista por muitos anos e manteve uma coluna chamada "Ao correr da pena" no Diário do Rio de Janeiro. A relação entre jornalismo e literatura perpassou a primeira fase do jornalismo político panfletário alcançando a gênese da penny press, a imprensa comercial no final do século XIX. As vertentes filosófico literárias identificadas com o realismo/naturalismo e a expansão do modelo de jornalismo informativo compartilharam das mesmas inclinações ideológicas. O estímulo desencadeador era descrever a vida social e o seres humanos como eles são, isto é, estimular no leitor à percepção do mundo real sem mistificações. Resultante dessas vertentes, o estilo de jornalismo então nascente e o romance realista social vão guardar semelhanças quanto à fórmula. A partir de então, aos jornalistas era reservada essa tarefa de transmitir os fatos sociais com isenção em detrimento da opinião e da militância política que fora uma característica presente nos jornais do século XVIII.
A corrente realista impregnou também o jornalismo com sua forma de expressão embasada na visão cientificista sobre o mundo consubstanciada pela filosofia positivista. A proposta era observar e traduzir o mundo com isenção e imparcialidade científicas. A relação com o real será no realismo desapaixonada e “aparentemente” desinvestida de emoções e preconceitos, o relato das pessoas e dos ambientes é pautado pelo distanciamento, o enunciador colocase no lugar discreto de um mediador e seu texto será objetivo, isento de marcas enunciativas. Contraditoriamente, o realismo colocou em relevo toda uma problemática social, destacando a questão das desigualdades entre os seres humanos, opondose a um subjetivismo extremado, sintoma do escritor centrado em si mesmo, uma característica evidenciada anteriormente pelo romantismo. O realismo significou esse
olhar para fora do eulírico do poeta e também um voltarse para a miserabilidade da condição humana diante das disparidades sociais.
O realismo percorreu a literatura do século XIX e prolongouse pelas primeiras décadas do século seguinte ultrapassando fronteiras2 nacionais e institucionalizando o romance de costumes como o romance moderno por excelência através de escritores como Gustave Flaubert, Émile Zola, Leon Tolstoi e Eça de Queiroz. Escritores que, por sua vez, também exerceram o jornalismo e que igualmente não deixaram de fazer notar em suas obras literárias e jornalísticas a filiação com a filosofia que embasava o realismo social, como destaca Ponte: Contemporâneo desta corrente literária, o jornalismo emergente no século XIX e orientado para o relato dos fatos de atualidade vai encontrar no realismo algumas de suas metáforas fundadoras com o de "espelho da vida", proposta por Stendhal, ou sua matériaprima, os acontecimentos, como mimese dos seres e das coisas avançada por Balzac. Vai mais longe, ao apoiarse nos seus ideais de intervenção cívica e assumir tomadas de posição num contexto político de paradoxos entre dinâmicas de conservação e transformação. (Ponte, p. 45, 2005)
A relação entre literatura, enquanto romance, e jornalismo causou reações das mais adversas no alvorecer do século XX, a exemplo de Walter Benjamin, que decretou a morte da narrativa devido à profusão de formas de expressão que aniquilavam a velha narrativa, no caso, o jornalismo e o romance moderno. Para Benjamin, o surgimento da modernidade e do modo de produção industrial capitalista teriam ocasionado uma crise nas formas tradicionais de transmissão de conhecimento, isto é, a morte da narrativa tradicional, baseada em experiências vívidas e compartilhadas. Ao contrário, as sociedades modernas teriam adotado o romance e o jornalismo que teriam
2 O realismo social foi mais que um corrente literária, foi uma atitude estética e também
política que atravessou gerações de escritores fazendo com que o estilo ultrapassasse fronteiras continentais. No Brasil, são significativas as obras de Aluísio de Azevedo: “O mulato” e “O Cortiço” e “O Ateneu” de Raul Pompéia.
diminuído o imediatismo da experiência entrando em choque com a cultura da oralidade e com a habilidade tradicional de narrar os acontecimentos. Na primeira metade do século, o pensador concluía nostálgico:
Cada manhã nos informa sobre novidades do universo. No entanto, somos pobres em histórias notáveis. Isso ocorre porque não chega até nós qualquer fato que já não tenha sido impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em proveito da informação. (1980, p. 61)
As reflexões do pensador que aproximou o romance moderno ao jornalismo foram sucedidas no decorrer da história por intensos debates a respeito das particularidades de ambos e, na primeira metade do século XX, as visões do jornalismo e da literatura despertaram respostas que acusavam seus antagonismos mas também suas confluências. No Brasil, por exemplo, Danton Jobim defendeu a diferença entre as duas narrativas, baseado na ideia de que o jornalismo representava a objetividade e a literatura encarnava a subjetividade. Por sua vez, Antônio Olinto e Alceu Amoroso Lima acreditavam que o jornalismo poderia ser considerado um gênero literário. A associação entre os dois gêneros reconhecidamente levanta questões acerca da especificidade do jornalismo quanto à sua fidelidade com a narração objetiva dos fatos em oposição à literatura, em que os fatos enunciados apenas existem dentro do universo da narrativa e não os extrapolam, já que fazem parte do processo criativo do escritor. Por outro lado, existe uma ligação irrefutável entre o jornalismo e literatura que pode ser justificada através do uso da linguagem e da referência a um mundo real. Em seu ensaio Jornalismo e Literatura (1954), Antônio Olinto argumenta que o jornalismo é um tipo de literatura do imediato, vinculada às pressões do tempo e do espaço. Ainda que o modus operandi do jornalismo seja condicionado pela pressão dos horários de fechamento dos jornais e limitado pelo espaço nos veículos de comunicação, esse conserva as mesmas possibilidades da literatura de
produzir obras de arte. Para o autor, o jornalismo é uma contínua luta pela fixação de realidades, uma tentativa de captar nos acontecimentos cotidianos algumas verdades particulares e permanentes de vida do homem (2008, p. 17). Olinto, assim, conclui que o jornal possui o mesmo potencial da literatura para atingir o intelecto e a sensibilidade dos indivíduos e, ao fazêlo, perdura como experiência cognitiva tal como a literatura. Também um outro pensador brasileiro se propôs a discorrer sobre o tema. Alceu Amoroso Lima, em O jornalismo como gênero Literário (1969), classifica o jornalismo como uma arte verbal em prosa de apreciação dos acontecimentos. Para o estudioso, jornalismo é um gênero literário, pois ambos são expressões verbais com ênfase nos meios de expressão, mas que devem transcender este meio (a palavra) para serem considerados boa literatura (1969, p.41).
Em contrapartida, as normas canônicas que estabeleceram o jornalismo informativo colocaram em lados opostos estas duas formas de expressão. Danton Jobim declarou, já na segunda metade do século XX, no clássico O espírito do jornalismo (1957), que jornalismo e literatura são coisas distintas e a grande diferença está na condição do jornalismo ser uma narrativa do efêmero e a literatura ser uma narrativa que deseja perdurar no tempo. Para Jobim, o jornalismo é um diálogo diário, apressado, superficial com o leitor, e em sua conversa não há lugar para sentenças evasivas; o que o leitor exige é que o informe sobre tudo o que de significativo está acontecendo e vai acontecer. As respostas não podem ser as de um ensaísta, porque ao jornalista não lhe sobra tempo para longas meditações, nem as de um ficcionista, porque não lhe é lícito suprir com a imaginação as lacunas da realidade (1992, p.44).
No entanto, indiferente à posição de teóricos que pretendiam delimitar o espaço entre os gêneros textuais, a prática de aliar jornalismo e literatura rendeu várias obras tão afastadas no tempo quanto na distância. Tais obras mesclaram a grande reportagem com os recursos literários chegando a resultados surpreendentes. Alguns dos exemplos já citados neste estudo demonstram que grandes reportagens transformaramse em obras literárias de densidade. México Rebelde
(1914) e Os dez dias que abalaram o mundo (1919), de John Reed, Hiroshima (1946), de John Hersey, bem como a obra literária e jornalística de Ernest Hemingway que, como correspondente na guerra civil espanhola, retirou bagagem de vida e técnicas narrativas para escrever uma obra como Por quem os sinos dobram (1940).
No repertório cultural brasileiro, a tradição dos escritores que levaram para o jornalismo seus pendores literários e dos jornalistas que usaram o seu talento na produção de obras artísticas suscita nomes como Lima Barreto, João do Rio e Euclides da Cunha. Euclides da Cunha esteve na Guerra de Canudos como correspondente pelo jornal O Estado de São Paulo em 1897. Dessa experiência retirou informações e vivências suficientes para produzir Os Sertões (lançado oficialmente como obra literária em 1902), no qual o autor mescla a reportagem de profundidade a um verdadeiro tratado físico e sociológico do sertão nordestino, palco do conflito. O diferencial nas reportagens de Euclides, enviadas ao jornal paulista, estava no paralelo que o autor fazia com outras guerras da mesma tipologia que aconteciam simultaneamente em outras partes do mundo. Contextualizando o conflito com os fatos internacionais, Euclides da Cunha buscava gerar no leitor uma reflexão sobre o espírito daquela época. O estudioso conseguiu com seu trabalho transcender a notícia comum dos comunicados oficiais, traçando todo um panorama da região e do nordestino, bem como os problemas enfrentados pelo povo que vão além das questões climáticas e geográficas, pois o jornalista escritor manteve um contato visceral com a realidade e percebeu o isolamento histórico daquela região.
Os Sertões, uma obra calcada no trabalho “de cavação”, na imersão in loco de seu autor no assunto abordado, tem sua vertente congênere no universo literário da ficção. O Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é fruto de grande pesquisa de campo do literato feita ao longo de vários anos, resultante do interesse pela magia e riqueza cultural preservada nos rincões do país e seus habitantes, elementos que ganharam contornos de personagens épicos. Estas duas grandes obras, além de comungarem de uma densa abordagem sobre um assunto bastante menosprezado até a data de suas publicações, tais como as vicissitudes e peculiaridades da vida do sertanejo, distante das grande
metrópoles litorâneas, também indicam permeabilidade das fronteiras entre jornalismo e literatura, uma vez que a obra literária, ainda que ficcional, nas mãos de um romancista capaz de uma percepção apurada, pode reportar com densidade informativa determinada realidade. Esta vinculação entre as duas obras foi enfatizada pelo jornalista Carlos Azevedo:
Para mim o grande livro literário, ainda que crie os personagens, alguma coisa ele tem de jornalismo. O Grande Sertão Veredas e o contrário, Os Sertões do Euclides da Cunha, que é jornalismo. Mas, se você perceber, Os Sertões é também literatura. A diferença foi que os personagens não foram inventados. A diferença é que – exagerando aqui – no grande livro literário mesmo quando está criando os personagens, está trazendo a realidade. Por isso que eu gosto dos franceses do século XIX, como o Flaubert, Balzac, Maupassant. Eles revelam os personagens como numa grande reportagem. Nós na Realidade fazíamos muitas reportagens com tom de ficção. Em muitas matérias é através dos personagens que se constrói a grande reportagem. (anexo 5, p. 4)
A leitura de O Grande Sertão: Veredas inspirou em Azevedo a descoberta do Brasil continental, interiorano, afastado dos grandes centros urbanos, espaço onde a cultura brasileira ainda preserva qualidades pouco exploradas pela grande imprensa. Ele comenta: O Grande Sertão: Veredas fazia parte do Brasil que a gente estava descobrindo. Eu fui para o meio dos índios, fui para o Piauí, mostrar o sertão mais distante. E tudo isso, de alguma forma, faz parte do processo” (anexo 5, p. 4). Azevedo referese a reportagens como “Indinho brinca de índio” (agosto de 1966), “Estas crianças estão salvas: resgate de uma tribo” (dezembro de 1966) e “O Piauí existe” (abril de 1967). “Diamante calibre 38” (julho de 1966), por exemplo, versa sobre a vida dos garimpeiros e o cotidiano de alguns personagens de um povoado de Paranatinga, Mato Grosso, região em que os diamantes matam tanto quanto a malária.
Aqui se procura diamante. E se acha de encher a concha de mão. É fácil achar outras coisas também. O diamante vem para quem sabe e a sorte ajuda mas a malária é violenta e o cemitério já tem 20 sepulturas (Diamante Calibre 38, julho de 1966, p. 85). Essa última reportagem trata da vida das pessoas deste povoado crescido devido ao garimpo e, também, da esperança e da ganância de muitos que se estabeleceram na região de modo provisório, a princípio, mas que acabaram ficando, envolvidos em dívidas, na expectativa de encontrar riqueza, e dos que, por deterem algum poder, acabam estabelecendo relações de mando e opressão junto ao povo do garimpo. Inspirado em Guimarães Rosa, Carlos Azedo traz para a história personagens que encarnam sentimentos, posições morais e situações humanas típicas que são exploradas pelo autor para traçar um quadro daquele povoado tendo como referências sentimentos humanos universais. A “estória” inicia com uma cena de tiroteio em um bar e com a fala de uma personagem conhecido como Mão Pelada, o qual somente será apresentado ao leitor no meio da reportagem: É só pena que avoa, gritou Mão Pelada e se atirou de barriga no chão. Ninguém escutou a frase famosa de Mão Pelada porque o barulho era demais. As balas, varando as casas, espirravam reboco. No povoado inteiro todo mundo estava de barriga no chão, deitado para não morrer. Com um revólver vagabundo, calibre 38, e uma porção de cachaça, o mulato Ferreira deu trabalho para o delegado e seus dois soldados. Quando a rua ficou vazia, Ferreira correu para trás de um beiral no rancho, jogou o chapéu no chão e ficou atirando espaçado, o revólver falhava de dois em três tiros. (Diamante Calibre 38, julho de 1966, p. 84). No transcorrer da reportagem, a descrição das pessoas, do local, aliada à informação sobre o funcionamento de um garimpo (que o leitor absorve serenamente sem muito esforço, pois os dados documentais se
diluem na narrativa), vão constituindo um clima que mistura indistintamente o sentimento de violência “que paira no ar”, mas também de expectativa, pois aqueles que estão vivendo ali são homens e mulheres que foram para aquela localidade com muitos planos envolvendo a esperança que um acaso lhes trouxesse a riqueza e o sucesso imediatos. Pessoas como Ursulino, “um poeta que vive no meio da gente mais ambiciosa”; Américo, “um rapaz de 18 anos que chegou a Paranatinga há um ano e que voltou para casa agora levando 200 mil cruzeiros e a surdez no ouvido”, pois trabalhava como escafandrista; Apolônio, que fez fortuna como “rei do garimpo” e pequeno latifundiário: “quem diz que Apolônio é ruim não diz toda a verdade. Quem diz que é bom também não. Apolônio é um comerciante rico, um homem que saiu de dentro do povo, um político popular”. A reportagem ainda apresenta Marta Rocha ao leitor, uma das tristes prostitutas do vilarejo, Alicinha, “a moça de casamento que só conhece Marta Rocha de vêla passar na frente da sua casa”, e Leo, um paulista saudoso da cidade grande. Três personagens para os quais Paranatinga é “um castigo e uma engrenagem da qual não se pode escapar”. Ao final da narrativa, o “fundo moral” encontrase na apresentação da figura do bêbado do garimpo, o Mão Pelada, Anésio Silva, um mulato escuro “37 anos que parecem 50”, chamado assim por causa de um problema de pigmentação de pele que o deixou com as mãos e os pés brancos. Mão Pelada é apresentado como único homem livre do vilarejo, pois “libertouse de toda a ambição de enriquecer em Paranatinga. É o único que em sonhos não vê diamantes”. Temos nessa reportagem os exemplos de personagens cuja essência construída pela narrativa vai ao encontro de estereótipos consagrados pela literatura universal como o louco, o desbravador, o sonhador, o corruptor ou vilão.
A forma de estruturação de obras como as de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa comunga com as reportagens de Realidade nas estratégias discursivas e códigos culturais sedimentados no imaginário. O vínculo que se estabelece sugere superação de uma espécie de preconceito que permeia tanto o texto jornalístico quanto o relato histórico, uma vez que não se admite que esses sejam definidos como narrativas ou “estórias”, já que tais enquadramentos
tradicionalmente ferem o ideário fundador destes dois campos do conhecimento calcados na valorização da isenção do autor na produção do relato. Contudo, dizer que o relato histórico ou jornalístico são narrativas e que partilham estruturas comuns às narrativas literárias não é menosprezar estes dois gêneros textuais e nem tornálos menos confiáveis, mas apenas enquadrálos na tradição da narrativa. Isso porque a estruturação das narrativas solicita a utilização de certos preceitos que já fazem parte de nossa herança cultural, em geral, e literária, em particular (como por exemplo os conceitos de trágico ou cômico). No caso de um historiador, por exemplo, tratase de uma operação essencialmente literária o modo como harmoniza, à estrutura específica de enredo, o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Aproximar esse processo ao exercício criador de ficção não deprecia de forma alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de algum tipo de conhecimento (White, 2001, p. 102).
Com a narrativa jornalística podese fazer consideração semelhante. Os jornalistas tradicionalmente relutam em equipar suas produções textuais às estórias, pela proximidade do termo como o campo literário e a ficção, ainda que essa denominação seja usual no meio para designar as peças jornalísticas. Entretanto, como avalia Tuchman: “Dizer que uma notícia é uma 'estória' não é de modo nenhum rebaixar a notícia, nem acusála de ser fictícia. Melhor, alertanos para o fato de a notícia, como todos os documentos públicos, ser uma realidade construída possuidora de sua própria validade interna” (1999, p. 262). Isso significa que, classificar os jornalistas como ator de uma cultura particular, sujeitos à uma gramática cultural definidora de regras de uma construção narrativa é, não somente subverter a noção de uma