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Realidade (re)vista: o papel do intelectual na concepção de um projeto revolucionário

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM JORNALISMO Vaniucha de Moraes REALIDADE (RE)VISTA: O PAPEL DO INTELECTUAL NA  CONCEPÇÃO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO Florianópolis 2010

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PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM JORNALISMO

Vaniucha de Moraes

REALIDADE (RE)VISTA: O PAPEL DO INTELECTUAL NA  CONCEPÇÃO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO

Dissertação submetida ao Programa de   Pós­ Graduação   em   Jornalismo   da   Universidade  Federal   de   Santa   Catarina   apresentada   ao  Programa   de   Pós­Graduação   em   Jornalismo  da   Universidade   Federal   de   Santa   Catarina  para   obtenção   de   grau   de   Mestre   em  Jornalismo

Orientador: Prof. Dr. Jorge Kanehide Ijuim  Área de Concentração: Jornalismo

Florianópolis 2010

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REALIDADE (RE)VISTA:  O PAPEL DO INTELECTUAL NA CONCEPÇÃO DE UM PROJETO  REVOLUCIONÁRIO Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós­Graduação em Jornalismo Data da aprovação: _____de _______________de 2010.  ________________________________   Jorge Kanehide Ijuim Dr. em Ciências da Comunicação/Jornalismo, UFSC. ________________________________ Marialva Carlos Barbosa Pós­Dra. em Comunicação, UFF e UTP. ________________________________ Mauro César Silveira Dr. em História Ibero­Americana, UFSC

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Agradecimentos a todas as pessoas que estiveram envolvidas no  intercurso da efetivação desta obra. Ao orientador Jorge Kanehide Ijuim  pela   criatividade,   ousadia   intelectual   e   pelas   discussões   sempre  profícuas. Aos caros companheiros da acadêmica e fora dela que me  acompanharam nesta trajetória. E um obrigado especial aos jornalistas  de revista Realidade, sem os quais esse trabalho não seria possível.   

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ficção. O melhor do seu legado não está no gesto –  muitas vezes desesperado; outras, autoritário – mas  na paixão com que foi à luta, dando a impressão de  que   estava   disposta   a   entregar   a   vida   para   não   morrer   de   tédio.   Poucas   –   certamente   nenhuma  depois   dela   –   lutaram   tão   radicalmente   por   seu  projeto,   ou   por   sua   utopia.   Ela   experimentou   os  limites de todos os horizontes existenciais, sonhando  em aproximá­los todos. Sem dúvida, há muito o que  rejeitar   dessa  romântica   geração  de   Aquário  –   o  messianismo   revolucionário,   a   onipotência,   o  maniqueísmo   –   mas   há   também   muito   o   que  recuperar de sua experiência”. 

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A revista Realidade é considerada uma referência em termos de ousadia  em   linguagem   e   abordagem   temática   na   literatura   existente   sobre  História   da   Imprensa   Brasileira.   O   presente   trabalho   de   pesquisa  concentra­se no auge de seu momento revolucionário, notadamente, o  período compreendido de abril de 1966 a dezembro de 1968, e objetiva  explorar  os  fatores  que compuseram  sua política  editorial.  O estudo  realizado   estrutura­se   na   forma   de   uma   perspectiva   de   análise   que  abrange   o   contexto   sócio­histórico,   o  modus   operandi  da   equipe  precursora   e   a   formação   intelectual   dos   indivíduos   envolvidos   no  processo de produção jornalística da publicação. 

Palavras­Chave:   Jornalismo;   Fundamentos   do   Jornalismo;   revista  Realidade; História; Linha Editorial; Reportagem. 

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The  Realidade  magazine   is   considered   a   benchmark   in   terms   of  boldness in language and thematic approach in the existing literature on  the history of the Brazilian press.  The present research focuses on the  height of its revolutionary moment, especially, the period comprehended  from 1966, April, to 1968, December, and aims to explore the factors  that made up its editorial policy. The study is structured in the form of  an  analytical  perspective that  covers the  socio­historical context,  the  modus operandi of the precursor team and intellectual  formation of the  individuals   involved   in   the   production   process   of   newspaper  publication.

Keywords:  Journalism;   Fundamentals   of   Journalism;  Realidade  magazine; History; Editorial line; Report.

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INTRODUÇÃO...11 1 A REALIDADE DO  MUNDO...23 1.1   UMA   PUBLICAÇÃO   REVOLUCIONÁRIA:   VISÃO  PANORÂMICA... 23 1.2   O   CONTEXTO   SÓCIO­HISTÓRICO   DEFLAGRADOR   DE  REVOLUÇÕES NO JORNALISMO...25 1.2.1 IMAGINÁRIO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOTÍCIA EM  REALIDADE

...25

1.2.2   INTERTEXTUALIDADES   E   INTERSUBJETIVIDADE:   OS  DIÁLOGOS   COM   AS   FORMAS   DE   EXPRESSÃO  CONTEMPORÂNEAS...38 1.2.2.1   A   CONTROVÉRSIA   INFLUÊNCIA   DO   NOVO  JORNALISMO...41 1.2.2.2 UMA SINTONIA LATINO­AMERICANO...46 1.2.2.3 NO JORNALISMO COMO NO CINEMA...54  

2   O   MUNDO   DE  REALIDADE:   O  MODUS   OPERANDI  DO  JORNALISMO DA EQUIPE INICIAL...67 2.1 O CONTEXTO DA IMPRENSA BRASILEIRA: UMA REFORMA  GRÁFICA E EDITORIAL NOS JORNAIS...68 2.1.1 DA REVISTA DE DOMINGO À EDIÇÃO PILOTO... 73

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2.3 ELEMENTOS DE TRANSGRESSÃO...98 3   OS   JORNALISTAS:   O   PAPEL   DOS   INTELECTUAIS   DA  EQUIPE   PRECURSORA   NA   ESTRUTURAÇÃO   DA   LINHA  EDITORIAL...115 3.1   DA   TRADIÇÃO   DA   INTERFACE   JORNALISMO   E  LITERATURA... 122 3.2   A   IMANÊNCIA   DA   FORMAÇÃO   INTELECTUAL   DOS  JORNALISTAS NAS REPORTAGENS DE REALIDADE...133 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...165 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...173 ANEXOS A – ENTREVISTA COM MYLTON SEVERIANO B – ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS MARÃO C – ENTREVISTA COM JOSÉ HAMILTON RIBEIRO D – ENTREVISTA COM LANA NOWIKOW E – ENTREVISTA COM CARLOS AZEVEDO F – ENTREVISTA COM WOILE GUIMARÃES E – ENTREVISTA COM FREI BETTO

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INTRODUÇÃO

  O   presente   trabalho   analisa   os   fatores   preponderantes   na  edificação   da   linha   editorial   da   revista  Realidade.  A   publicação,  considerada marco revolucionário na história do jornalismo brasileiro,  tem sido leitura de referência não só para pesquisadores, jornalistas e  estudantes   da   área,   mas   para   todo   cidadão   brasileiro   que   tenha  curiosidade em conhecer mais sobre a história do seu país enquanto este  atravessava momentos  cruciais de  mudança e  modernização cultural.  Seu auge ocorreu na década de 1960, período que a revista tratou com  originalidade e pertinência, de abril de 1966 a dezembro de 1968. 

As   inovações   nas   páginas   de   revista  Realidade  estavam  ancoradas   em   ampla   perspectiva   transgressora   e   revolucionária,   que  abrange desde a forma como as reportagens foram elaboradas até o seu  conteúdo.   Conseguiu   amplificar   o   panorama   de   manifestações   de  protesto contra a ordem conservadora e expôs as transformações sociais  que   estavam   desestabilizando   as   estruturas   sociais   tradicionais   e   os  antigos padrões de comportamento.

A publicação  conquistou  grande adesão  do público  jovem  e  intelectual   e,   apesar   de   ser   produzida   por   uma   grande   empresa   de  comunicação,   sua   proposta   jornalística   figura   entre   as   mais  revolucionárias de seu tempo. O sucesso da revista pode ser atribuído à  pertinente   proposta   editorial   aliada   às   condições   de   mudança   do  mercado   de   revistas   que,   na   época,   precisava   adequar­se   às  transformações da sociedade brasileira, na qual despontava um novo  público: a classe média urbana, formada, sobretudo, por jovens de nível  superior ou equivalente ao nível médio atual (Lima, 2004, p.224). Esses  jovens de classe média percebiam o turbilhão de revoluções pelo qual  passava o mundo e queriam estar bem informados, se não inseridos  neste processo de mudanças. 

O   Brasil   estava   em   uma   fase   em   que   o   progresso   e   o  desenvolvimento eram constantemente abordados nos discursos, fossem  eles políticos, artísticos, de direita ou de esquerda. A urbanização e a  industrialização crescentes promoviam o êxodo da população do campo  para   as   cidades   e   o   país   modernizava­se.   Aconteciam,   no   período, 

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inúmeras manifestações artísticas que se propunham a rever o Brasil.   Em 1966, quando a primeira edição foi para as bancas, ocorria  intensa agitação cultural e política. A demanda era constituída por um  público que presenciava o surgimento de uma nova conjuntura histórica,  social   e   cultural   e   os   assuntos   tratados   miravam   esta   cena   de  transformações, uma abordagem que as demais publicações da época  não conseguiram acompanhar.  Realidade foi produzida por dez anos consecutivos, de abril de  1966 a março de 1976. Contudo, o período delimitado para realização  da presente pesquisa corresponde aos seus três primeiros anos – ou,  mais precisamente, dois anos e nove meses, de abril de 1966 a dezembro  de   1968.   Durante   este   momento   estiveram   mais   evidentes   as  características   que   a   tornaram   uma   referência   para   a   história   da  reportagem brasileira. E foi nesse intervalo de tempo que a publicação  representou   um   vínculo   entre   a   produção   do   texto   jornalístico   e   o  conjunto das manifestações políticas e culturais contestadoras vividas no  Brasil   e   no   exterior.   Para   Faro,   o   caráter   inovador   adquirido   pelas  reportagens de  Realidade  no período  guardou estreita relação com o  discurso transgressor predominante em meados dos anos 60. A imprensa  brasileira,   em   especial   no   que   tange   ao   gênero   reportagem,   pautou  grande parte de sua produção pelo discurso  libertário e contestador,  comum   aos   demais   movimentos   artístico­culturais   do   país   naquele  momento.   Segundo   o   pesquisador,   a   fonte   de   inspiração   poética,  dramatúrgica, literária e jornalística de tais manifestações eram o Estado  autoritário   e   as   deformações   sociais   do   modelo   econômico  modernizador e concentrador de renda. Esta motivação, associada ao  pensamento de esquerda, foi comum a quase toda produção cultural da  década de 1960, acentuadamente "engajada" e "militante" (Faro, 1998,  p.6).  Desde a primeira metade da década de 1960, o Brasil passava  por grave crise política e social que culminou com o golpe militar de  abril de 1964. O regime militar, uma vez instaurado, iria gradativamente  se tornar mais intransigente e repressivo até o seu recrudescimento no  final de 1968. Com a imposição da censura, toda a classe intelectual e  sua produção foram comprometidas. A publicação da Abril repercutiu 

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no   jornalismo   a   mobilização   política   vivida   por   intelectuais,  universitários e artistas.

Durante   a   primeira   fase   de  Realidade,  tinha­se   uma   redação  constituída por um grupo articulado de jornalistas sensíveis às questões  mais   pungentes   para   aquele   contexto   histórico.   Quando   os  pesquisadores e estudiosos classificam­na como um marco da história  da reportagem na imprensa brasileira, é a este período que se referem.  Por isso, não é mera coincidência que as características que a tornaram  uma publicação  de  relevo  estão  mais  evidentes nesse momento.  Em  virtude disso, o presente estudo elegeu o intervalo de abril de 1966 a  dezembro de 1968 como período focal da avaliação  das reportagens,  objeto   empírico   da   pesquisa,   visando   a   uma   investigação   sobre   os  motivos   de  Realidade  ter   sido   considerada   uma   referência   para   a  imprensa   brasileira   e   acerca   dos   fatores   que   predominaram   na  composição   da   linha   editorial   desta  publicação  durante   os   seus  primeiros anos. 

Nos anos que antecederam à promulgação do Ato Institucional  número 5, em dezembro de 1968, o país ainda vivia sob o rescaldo da  onda de agitações políticas e artísticas iniciada durante o período de  intervalo democrático. Em seus primeiros anos de publicação, a revista  conseguiu,   com   sua  fórmula,   refletir  aquele  momento  de  crítica  aos  problemas nacionais e embates contra a ordem conservadora. Porém,  sofreu   um   forte   impacto   em   sua   proposta   original   no   intercurso   da  escalada da ditadura militar. Por esta razão, o projeto ficou seriamente  comprometido.   Superveniente   a   esse   ano,  Realidade  passou   por   um  processo de descaracterização sobrevivendo durante a primeira metade  da década de 1970, até ser extinta no ano de 1976. 

  A revista  Realidade  já motivou e integrou outras pesquisas  acadêmicas,   tanto   na   área   de   Comunicação   Social   como   em   outros  campos das Ciências Humanas e Sociais. O primeiro deles foi uma tese  de   doutoramento   realizada   em   1988,   de   autoria   de   Maria   Terezinha  Tagé Dias Fernandes, Jorge  Andrade, Repórter Asmodeu: leitura do  discurso   jornalístico   de   autor   na   revista   Realidade.  A   tese  da  pesquisadora,   embora   aponte   para   um   estilo   de   jornalismo   autoral,  peculiar   à   revista,   concentra­se   no  trabalho  de   Jorge   de   Andrade, 

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realizado durante os anos de 1969 a 1973, um período de declínio da  fórmula   consagrada   da   publicação.   Em   1991,   pela   ECA   –   USP,  Bernardo Kucinski defendeu a tese Jornalistas e Revolucionários: nos  tempos da imprensa alternativa, sobre a chamada 'imprensa nanica' que  se desenvolvera na década de 1970. Nela, o autor posicionou a revista  como uma importante matriz da imprensa alternativa devido à força de  decisão conquistada pela equipe produtora e também à dissidência dos  jornalistas, advindos de Realidade, que constituíram ou participaram dos  jornais alternativos na década de 1970. A tese seguinte data de 1993 e  também trouxe para o debate a revista Realidade. Trata­se de O livro­ reportagem   como   extensão   do   jornalismo   impresso:   realidade   e   potencialidade,  de  Edvaldo   Pereira   Lima,   na   qual   o   autor   trata   da  ampliação   da   abordagem   jornalística   por   intermédio   do   livro­ reportagem,   bem   como   manifesta   as   características   deste   gênero.   O  pesquisador cita a publicação da Abril como uma referência na história  da reportagem e um fator de importância do desenvolvimento do livro­ reportagem   no   Brasil.   Neste   trabalho,   Lima   conjectura   que   o   Novo  Jornalismo possa ter influenciado a linha editorial tanto de  Realidade  quanto do  Jornal  da Tarde,  ambos  surgidos em 1966, mas  também  enfatiza a contingência do contexto histórico como fator de relevância  para o teor revolucionário da revista.  Em 1999, outro estudo foi apresentado na ECA – USP, desta  vez o foco foi a própria publicação;  Realidade 1966­1968, tempo de  reportagem na imprensa brasileira,  de autoria de José Salvador Faro. É  um trabalho sistemático, centrado na revista, que sustenta a tese de que  o   contexto   histórico­social   do   período   foi   determinante   para   a  concepção   de   um   projeto   editorial   emblemático   para   a   história   da  reportagem na imprensa nacional. Faro estudou as reportagens feitas  pela revista durante os três primeiros anos e as reuniu de acordo com as  temáticas que abordavam, discriminando­as de acordo com os assuntos  mais recorrentemente trabalhados pela revista. O autor salientou o fato  de   a   publicação   da   Abril   ter   explorado   um   período   de   intensa  movimentação sociocultural  e,  assim, pôde  contemplar uma série  de  “novas  visões” que  nasciam daquela conjuntura que  versavam sobre  realidade, família, casamento, jovem, mulher, religião, ciência, o Brasil 

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e o mundo, enfim, todo um universo de quebra de paradigmas em vários  âmbitos sociais que a publicação tratou de difundir para o seu público.  De acordo com o pesquisador, a publicação estava em consonância com  o discurso transgressor e libertário característico daquele momento e,  por isso, sua fórmula foi fortemente marcada pelo contexto de produção,  tornado­se uma experiência memorável para jornalistas, estudiosos  e  leitores.

Em   1997,   Adalberto   Leister   Filho   desenvolveu   trabalho   de  iniciação   científica   no   Departamento   de   História   da   FFCH­USP,  denominado Realidade em revista: a revista Realidade, a memória dos  jornalistas de uma publicação revolucionária (1965­1968).  O grande  mérito   desse   estudo   é   que  o   pesquisador   tenta   recuperar   o   caráter  revolucionário   da   revista   a   partir   de   depoimentos   de   jornalistas   que  participaram da equipe original. O mesmo autor deu sequência a sua  pesquisa   em uma  dissertação   de   mestrado   defendida   em   2003,   pela  mesma   instituição,   denominada  Entre   o   sonho   e   a   realidade:  pioneirismo, ascensão e decadência da revista Realidade (1966­1976),  no qual expande o período da análise e abarca o processo de apogeu e  declínio,   retratando   as   mudanças   ocorridas   sob   o   viés   do  desenvolvimento do setor de revistas na indústria cultural brasileira nos  anos 60 e 70. 

Realidade  também   esteve   presente   em   estudos   de   outros  campos   do   conhecimento,   como   em  Leitura   de   revistas   periódicas:  forma, texto e discurso, um estudo sobre a revista Realidade (1966­ 1976),  de   autoria   de   Valdir   Heitor   Bazotto,  de   1997,   uma   tese   de  doutoramento   na   área   de   linguística   no   Instituto   de   Estudos   da  Linguagem   da   Universidade   Estadual   de   Campinas   (Unicamp).  Na  oportunidade,  o   pesquisador   procurou   relacionar   o   mecanismo   de  produção de sentido por meio da interação entre o suporte em si, os  textos propriamente ditos e o encadeamento das idéias do discurso nos  textos da revista durante os dez anos  de existência. Também  esteve  presente em O leitor e a banca de revista: a segmentação da cultura no   século XX, de Maria Celeste Mira, tese defendida na Unicamp, em 2001,  na   qual   a   socióloga   questiona   a   procedência   do   público   diante   da  diversidade   de   publicações,   sendo  Realidade  um   dos   exemplos 

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levantados no estudo. Sob o signo do perigo: o estatuto dos jovens no  século da criança e do adolescente foi a tese de Rosana Ulhoa Botelho,  apresentada na Universidade Brasília,  em que  a pesquisadora levantou  as sanções judiciais sofridas pela publicação – notadamente a proibição  da publicação do resultado da pesquisa sobre sexualidade juvenil, pauta  na   sexta   edição,   e   a   apreensão   da   décima   edição   sobre   a   mulher  brasileira   –,   sob   a   perspectiva   da   questão   do   menor   na   legislação  brasileira e as tensões ocorridas na década de 60.  Os mais recentes trabalhos acadêmicos sobre a revista da Abril  foram as dissertações de Rildo Cosson e Letícia Nunes Góes de Moraes,  ambas apresentadas em 2001. A dissertação de Cosson, realizada na  Universidade de Brasília, envolveu o romance­reportagem como gênero  literário e, assim como na tese de Edvaldo Pereira Lima, a revista é  apontada como pioneira em técnicas ousadas de redação que seriam um  gancho estilístico para a produção dos livros­reportagem na década de  1970. Por sua vez, a dissertação de Letícia Nunes Góes de Moraes,  defendida   no   Departamento   de   História   da   Faculdade   de   Filosofia,  Letras e Ciências Humanas da USP, denominada A dança efêmera dos  leitores missivistas da revista Realidade (1966­1968), analisa a seção de  cartas da revista. Trata­se de um estudo de recepção sobre a repercussão  social e a forma como a revista era lida durante os três primeiros anos  de publicação. 

Como  se   pode  verificar,  os   estudos   realizados   sobre   essa  temática são muitos, assim como as perspectivas usadas para as análises.  A  proposta que motivou a presente pesquisa versa sobre as possíveis  atribuições   que   contribuíram   para   a   composição   da   linha   editorial  adotada. Busca um entendimento acerca dos fatores que constituíram o  projeto   editorial,   além   das   conjecturas   sobre   possíveis   influências  externas. Concentra­se na equipe produtora e no indivíduo, isto é, no  intelectual   que   participou   de   sua   produção   em   seus   primeiros   e  emblemáticos anos. 

A   pesquisa   é   um   estudo   de   caso   sobre   a   linha   editorial   da  revista,  compreendendo   ao   todo  33  edições   (de   abril   de   1966   a  dezembro de 1968), constituídas de 11 a 13 textos­reportagens cada. A  metodologia   escolhida   para   a   realização   deste   trabalho   é   híbrida, 

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abrangendo: a pesquisa documental – bibliográfica e por meio da análise  narrativa   das   reportagens;   e   a   pesquisa   de   campo,   realizada   por  intermédio de entrevistas com os jornalistas da equipe inicial, nas quais  foram utilizados conceitos e procedimentos da História Oral. 

A opção por essa metodologia, que alia pesquisa documental e  pressupostos   da   História   Oral,   objetivou   contemplar   o   resgate   da  história vivida dos jornalistas remanescentes da equipe inicial da revista  Realidade. A importância do relato dos agentes da história é ir além da  pesquisa documental no objeto empírico, notadamente para as edições  da publicação em destaque. Por isso, buscou­se reunir esses recursos  metodológicos   com   o   propósito   de   promover   um   diálogo   entre   a  pesquisa documental e os relatos dos jornalistas remanescentes. Dessa  forma, a compreensão do projeto editorial da publicação é auxiliada pela  contribuição dos próprios atores inseridos e participantes do contexto  sócio­histórico.   Mais   do   que   “testemunhas   oculares”,   os   jornalistas  remanescentes   de  Realidade  podem   ser   considerados   fazedores   da  história da revista. Em virtude disso, a opção pelas fontes orais, não  apenas como complemento, foi fundamental para o desenvolvimento da  presente pesquisa. 

A   História   Oral   estabeleceu­se   como   método   de   pesquisa  contestador do objetivismo da história oficial escrita, isto é, significou  uma crítica aos historiadores documentalistas tradicionais. A partir da  década   de   1970,   a   ideia   se   proliferou   como   uma   maneira   mais  humanizada de lidar com a história, um método em que os próprios  indivíduos entrevistados seriam construtores da história. A difusão dessa  nova maneira de olhar os fatos recebeu forte contribuição do inglês Paul  Thompson, um dos seus maiores incentivadores. Para o autor, a História  até   aquele   momento   apenas   ratificou   os   julgamentos   dos   poderes  existentes e, sendo assim:

A história oral torna possível um julgamento muito  mais   imparcial:   as   testemunhas   podem,   agora,   ser  convocadas também de entre as classes subalternas,  os   desprivilegiados   e   os   derrotados.   Isso   propicia  uma reconstrução mais realista e mais imparcial do  passado,   uma   contestação   ao   relato   tido   como  verdadeiro.   Ao   fazê­lo,   a   história   oral   tem   um 

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compromisso radical em favor da mensagem social  da história como um todo (Thompson, 1992, p. 26).  

A   metodologia   da   História   Oral   visa   estabelecer   e   ordenar  procedimentos   de   trabalho,   tais   como:   os   tipos   de   entrevista,   as  implicações   de   cada   procedimento   para   a   pesquisa,   as   várias  possibilidades   de   transcrição   de   depoimentos,   suas   vantagens   e  desvantagens,   as   diferentes   maneiras   do   historiador   lidar   com   seus  entrevistados   e   as   influências   no   seu   trabalho.   Esta   metodologia  funciona como uma ponte entre a teoria e a prática (Ferreira; Moraes,  2006, p.6).

Nessa   pesquisa   foram   realizadas   entrevistas   com   jornalistas  remanescentes da equipe inicial da revista. Dentre os profissionais que  consentiram em participar como fontes orais, tendo seus depoimentos  registrados em áudio e vídeo, estiveram Mylton Severiano da Silva, José  Carlos   Marão,   José   Hamilton   Ribeiro,   Lana   Nowikow   e   Carlos  Azevedo.   Frei   Betto,   que   na   época   era   colaborador   da   revista,  concordou   em   enviar   seu   relato   por   correio   eletrônico.  O   mesmo  aconteceu com o jornalista Woile Guimarães. Ambos alegaram falta de  tempo por acúmulo de atividades e consideraram que lhes seria mais  apropriado enviar as respostas dessa forma. Foram utilizados na análise,  também,   relatos   autobiográficos   impressas   em   revistas   (Sérgio   de  Souza,   principalmente),   autobiografias   publicadas   (Roberto   Freire   e  Carlos   Azevedo)   e   comentários   dos   próprios   amigos   inseridos   nas  entrevistas obtidas nesse trabalho. Além da transcrição das entrevistas,  foram apropriados os depoimentos transcritos por outro historiador oral,  Adalberto Leister Filho, que teve a oportunidade de entrevistar grande  parte dos integrantes da equipe inicial da revista, na década de 1990, em  trabalho de iniciação científica.  Em posse do acervo obtido de relatos de vida e depoimentos  sobre o trabalho exercido na produção de  Realidade,  extraídos de um  variado rol de fontes, buscou­se estabelecer um diálogo com a pesquisa  documental, no qual se empregou a Análise Pragmática da Narrativa no  estudo   das   reportagens.   Verificou­se   pelo   próprio   caráter   das  reportagens – com teor autoral preponderante, imersão e uso de recursos 

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de estilo – que os textos jornalísticos publicados possuíam acentuada  tendência   para   o   estilo   literário,   o   que   ressaltava   ainda   mais   seu  enquadramento na ancestral tradição da estruturação narrativa.  A metodologia adotada na análise das reportagens considerou o  texto jornalístico da revista uma modalidade de narrativa. No mesmo  sentido, Análise Pragmática da Narrativa, apresentada por Luiz Gonzaga  Motta no livro “Metodologias de Pesquisa em Jornalismo”, foi muito  apropriada ao texto apresentado pela publicação da Abril, uma vez que  apresentava   forte   identidade   literária   e   acentuada   carga   autoral.  Selecionou­se   no   material   jornalístico   da   referida   publicação  reportagens   e   variações   do   gênero,   como   as   reportagens­conto,  produzidas e assinadas pelos membros da equipe inicial, notadamente  pelo núcleo paulista da produção. O foco nesses participantes deveu­se  ao fato de as características principais da revista terem sido concebidas e  alimentadas por eles. Quanto à opção pelas matérias assinadas, justifica­ se pela ênfase autoral, característica marcante das reportagens.  Na análise conjunta do material das entrevistas e do acervo de  edições da revista, procurou­se uma diretriz de pensamento que aliasse o  momento de produção da reportagem –  pelo repórter e pela equipe de  editores  de  texto,  suas  estratégias  e mecanismos  de  produção –   ao  momento de leitura das reportagens pelo público. Entendeu­se que é  nessa circunstância que ocorre a produção de sentido, ou seja, decorre  da   interação   entre   o   autor/narrador   e   leitor/narratário,   isto   é,   entre  emissor  e  receptor.  Isto significa  que  tais  análises  não  são  isoladas,  ambas consideram a intersubjetividade da interação entre autor e leitor.  Portanto,   não   são   excludentes,   mas   interdependentes.   O   objetivo   é  perceber o objeto empírico da pesquisa, as reportagens presentes nas  edições   da   revista,   como   objeto   intencional   de   percepção.   Esse  encaminhamento contempla uma das diretrizes da Análise Pragmática  da Narrativa que, segundo Motta:

Deve   compreender   as   estratégias   e   intenções   do  narrador, por um lado, e o reconhecimento (ou não)  das marcas do texto e as interpretações criativas do  receptor, por outro lado. A ênfase está no ato de fala,  na   dinâmica   de   reciprocidade,   na   pragmática  comunicativa,   não   na   narrativa   em   si   mesma. 

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Pretende­se observar as narrativas jornalísticas como  jogos   de   linguagem   como   ações   estratégicas   de  constituições   de   significações   em   contexto,   como  uma   relação   entre   sujeitos   atores   do   ato   de  comunicação jornalística (p. 146, 2007). A compreensão do texto das reportagens como obras autorais  ou, melhor dizendo, como obras literárias, direcionou esse estudo para a  percepção das marcas de enunciação presentes, sejam elas de caráter  estilístico ou de posicionamento ideológico. Assim, foram identificadas  nos textos características que se equiparam às narrativas literárias, tais  como construção de personagens (sejam elas lineares ou complexas),  descrições de cenas e de diálogos e variações do foco narrativo – isto é,  variações  da  perspectiva  do narrador,  como narrador  heterodiegético  (onisciente) ou homodiegético, ou mesmo em primeira pessoa (quando o  repórter   descreve   uma   vivência)   ou   em   terceira   pessoa   (quando   o  repórter constrói um personagem). Também se atentou para os efeitos  do real, coincidentes com os trechos que adotam linguagem referencial  jornalística,   ricos   em   dados,   estatísticas,   aspas   com   declarações   de  entrevistados, advérbios de tempo e lugar, datações. De igual maneira,  mereceu atenção os efeitos poéticos, coincidentes com os trechos com  abundante   uso   de   tropos,   figuras   de   linguagem,   linguagem   poética,  descrição minuciosa de personagens, uso de mitos e fábulas, estórias de  apelo moral e ética e uso de estruturas narrativas já consagradas no  imaginário popular. 

Em   vista   da   posição   ocupada   por  Realidade,  em   termos   de  pesquisas   de   imersão   e   sofisticação   textual,   a   presente   dissertação  procurou avaliar os motivos que podem ser atribuídos à estruturação de  sua linha editorial. Nesse sentido, a exposição do estudo segue uma  perspectiva que parte de um macrocosmo, a análise do contexto sócio­ histórico no   primeiro capítulo; passa pelo microcosmo, formado pela  equipe inicial da revista, na segunda etapa deste estudo; e, por fim,  alcança   no  capítulo   final   o  indivíduo,  o  jornalista,  o  intelectual   que  pensava   e   produzia   a   publicação.   Pretende­se,   assim,   contemplar   os  patamares significativos do processo de produção jornalística do grupo  precursor da revista.  

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O   primeiro   capítulo   versa   sobre   o   projeto  Realidade  no  contexto   sócio­histórico   da   década   de   1960   e   suas   repercussões   no  projeto editorial. A produção jornalística é analisada sob a perspectiva  do imaginário social dessa década, notadamente um período de quebra  de paradigmas em vários âmbitos das manifestações culturais, das quais  o jornalismo não se distanciou. Nesse capítulo, procurou­se contemplar  a   produção   jornalística   de  Realidade  a   lume   das   Teorias  Construcionistas   do   jornalismo,   pelas   quais   se   admite   a   influência  sociocultural   na   construção   da   notícia.   Assim   sendo,   avaliou­se   os  possíveis   pontos   de   diálogo   com   manifestações   artísticas   como:   o  realismo   mágico   dos   romances   hispano­americanos,   que   viviam   um  momento de intensa popularidade em várias partes do mundo; o Cinema  Novo,   especialmente   a   linha   de   documentários   sociológicos   a   ele  vinculados;   a   associação   com   o  Jornal   da   Tarde,  contemporâneo   à  publicação da Abril; e o vínculo aos jornais da Imprensa Alternativa,  que   iriam   surgir   na   década   seguinte,   em   1970.   Na  etapa   inicial   do  trabalho  também   foi  abordada   a controversa   e recorrente  associação  entre   o   jornalismo   feito   por  Realidade  e   o   Novo   Jornalismo,  procurando, com isso, salientar a confluência com formas de expressão  contemporâneas   à   revista   que   igualmente   confrontavam   modelos  hegemônicos de discurso nos vários âmbitos culturais.

No segundo capítulo, a análise da publicação teve perspectiva  na equipe inicial de produção em junção com o patamar histórico da  imprensa   brasileira   no   período   estudado.   Foram   consideradas   as  decisões que compuseram  a linha  editorial,  aliadas à força  decisória  conquistada   pela   equipe   inicial   perante   a   empresa.   Com   base   no  conjunto   das   decisões   editoriais,   procurou­se   categorizar   o   que   se  denomina nesse estudo de  Elementos de Transgressão –  Temáticos e  Textuais –  marcantes na publicação. Tais componentes evidenciam­se  pela contraposição às usuais normas canônicas dos textos jornalísticos  incorporadas pelas redações brasileiras na década de 1950, como os  ideais   de   isenção   e   imparcialidade.   Procurou­se   compreender   a  publicação   sob   a   ótica   da   sinergia   particularmente   libertária   e  contestadora que envolvia a equipe inicial de Realidade.   

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revista   para   a   história     pessoal   dos   participantes.   Tem­se,   assim,   a  análise da publicação sob o ponto de vista de cada um dos intelectuais  remanescentes daquela equipe. Versa­se sobre a tradicional confluência  entre o jornalismo e a literatura no Brasil e no mundo e a imanência de  um jornalismo de autor na revista Realidade. A análise dos depoimentos  dos jornalistas da equipe precursora alia­se aos estudos das reportagens,  gênero jornalístico que foi o grande mote da publicação e que encerrava  um acentuado teor autoral com exploração dos estilos particulares dos  jornalistas.  Esta dissertação busca oferecer uma contribuição particular ao  histórico das pesquisas já constituídas até então sobre a publicação da  Abril. Nosso intuito, com isso, é chamar a atenção para o fato de que a  revista era feita por pessoas, com suas respectivas bagagens intelectuais,  calcadas   no   imaginário   cultural   brasileiro,   vivendo   em   um   contexto  específico, a  década  de  1960.  A precedência intelectual iria emergir  imediatamente nas páginas de Realidade.  

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1 A REALIDADE DO MUNDO

1.1   UMA   PUBLICAÇÃO   REVOLUCIONÁRIA:   VISÃO  PANORÂMICA

Data de novembro de 1965 o número zero da primeira aposta  da   Editora   Abril   no   setor   de   revistas   de   atualidades.   A   adjetivação  “atualidades” acabou sendo muito mais que um critério de definição  editorial, pois a revista  Realidade  repercutiu de forma contundente no  cenário de ruptura e tensão pelo qual passava o país. Era um momento  de   transição.  O   Brasil,   naquele   período,   ainda   com   características  sobretudo agrárias e conservadoras, encontrava­se em desenvolvimento  urbano e industrial. Além disso, acabara de passar por um golpe militar  e, ao mesmo tempo, começava quebrar paradigmas no setores cultural e  artístico.   Impulsionado   por   uma  combativa   classe   intelectual,   o  país  passara a se repensar em sentido mais amplo: nas estruturas culturais,  sociais e familiares. Era o começo da revolução dos costumes e o Brasil  vivia esse impacto. 

  A  Editora Abril acalentava o projeto de ter uma revista com  notoriedade e tinha condição de investir nessa empreitada empresarial.  O   número  piloto,   impresso   no   final   de   1965,   demonstrava   toda   a  expectativa do grupo e dos jornalistas em relação ao projeto, bem como  os embates internos que ocorreram entre diretores e jornalistas acerca do  direcionamento   da   linha   editorial.   Os   conflitos   ficaram   patentes   na  própria capa. Três fotografias disputam o mesmo espaço: um planador;  a mão de um adulto segurando a de uma criança, ensinado­a escrever; e  a   fotografia   de   um   feto   em   gestação.   As   manchetes   anunciavam:  “Homem voa sem motor”, “Um Brasil mal educado”, e “A vida antes de  nascer”.  

Esse  número   zero,   assim   como   os   demais   pilotos   que   o  sucederam, serviram tanto para testar as características da revista que se  pretendia fazer quanto para definir a equipe que produziria  Realidade  durante os primeiros dois anos e nove meses. Posteriormente, a partir de 

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abril de 1966, quando foi lançada a primeira edição mensal, a revista  decolaria para uma experiência de ousadia e inovação que a tornaria  uma experiência jornalística marcante na história da imprensa brasileira.  O número piloto foi impresso com 5 mil exemplares. Em abril  de   1966,   quando   a   revista   inaugurou   periodicidade   mensal,   foram  impressos 251.250 exemplares, os quais foram esgotados em três dias  nas bancas. Diante da repercussão perante o público leitor, a demanda  cresceria a cada nova edição. Em maio do mesmo ano, contou com  281.517 e teve tiragem esgotada. O número três, de junho, teve uma  tiragem de 354.030, um número considerado impossível até então. Na  quarta edição, de julho, a revista chegou a 404.060 leitores. Na quinta,  esse número saltou para 470 mil. Seguindo em acelerada progressão, o  consumo   da   revista   chegou   ao   recorde   de   505.300   exemplares,   em  fevereiro de 1967 (Patarra, “A história das doze capas”, março de 1967).  A significativa adesão do público leitor deve­se à sintonia da  equipe   produtora   com   a   conjuntura   e   a   cobertura   de   assuntos   que  estavam na “ordem do dia” naquele momento. O fator crucial do grupo  de profissionais que produziu Realidade durante seus primeiros anos era  o seu grande entrosamento afetivo e ideológico. Todos mantinham mais  que uma relação de amizade, eram cúmplices em suas visões de Brasil e,  principalmente, em suas expectativas quanto ao jornalismo que faziam.  A coesão do grupo fazia frente à direção da revista. O sucesso de vendas  alcançado já nos primeiros meses de produção demonstrou, aos poucos,  à   empresa,   que   as   decisões   tomadas   pela   redação,   embora   ousadas,  alavancavam o empreendimento1. Por isso, nos primeiros anos, a equipe  inicial encabeçada pelo jornalista Paulo Patarra gozou de significativa  autonomia nas decisões. 

Esses   fatos   contribuíram   fortemente   para   a   composição   da  política   editorial   da   revista   e   serão   o   foco  da  análise   do   segundo  capítulo. Importa, nessa primeira etapa de exposição,  analisar a revista 

1 O fato obrigou a editora a imprimir em um papel diferente e de pior qualidade a edição do 

mês  de  julho,   “menos   branco   e  menos  brilhante  que  o   papel­Realidade”  como   declara   o  editorial do mês de julho de 1966: “Esperamos que o leitor compreenda e perdoe essa solução  de emergência. Estamos certos de que até setembro teremos recebido papel necessário para  atender o crescimento vertiginoso de Realidade”. 

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em seu contexto sócio­histórico e de que maneira os fatores conjunturais  repercutiram   no   tipo   de   jornalismo   por   ela   apresentado.  O   período  analisado compreende o intervalo de abril de 1966, início da produção  regular e mensal da revista, até dezembro de 1968, quando a equipe  inicial se desfez, em decorrência do quadro político que se instaurava no  país antes da promulgação do Ato Institucional número 5, de dezembro  de 1968. Durante esse período, a revista apresentou sintonia particular  com o seu tempo e com a conjuntura política nacional.  Diz­se, aqui,  particular,   já   que  se   pode considerar   que   o   jornalismo   sempre   está  atrelado   ao   seu   contexto   e   que   a   notícia   é   sempre   uma   construção  tributária da cultura e da sociedade em que é produzida. Em sinergia  com o contexto de quebra de paradigmas instaurado na década de 1960,  a   revista   apresentava  uma  proposta   de   jornalismo  inovadora  em  linguagem   e   abordagem   temática.   O   caráter   revolucionário   de  Realidade equipara­a às demais formas de expressão cultural do período  que igualmente contestavam modelos hegemônicos de discurso.  

1.2 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DEFLAGRADOR DE REVOLUÇÕES NO JORNALISMO E NAS ARTES

1.2.1 IMAGINÁRIO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOTÍCIA EM REALIDADE

A revista  Realidade  (1966­1976) foi um marco na história da  imprensa brasileira. Não apenas porque amplificou tudo o que era de  mais pungente em seu tempo, mas também porque contribuiu para a  construção da imagem de um Brasil moderno para o seus leitores ao  divulgar   os   conceitos   de   uma   nova   moral   e   explorar   os   elementos  culturais  transformadores da  estrutura social  no Brasil da  década de  1960.

Não   obstante,   o   jornalismo   da   revista   alcançou   igualmente  elementos da estrutura da ordem conservadora e autoritária. De acordo  com   Faro,   a   produção   jornalística   sempre   reflete   os   elementos 

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conjunturais de mudança cultural ao longo de sua história, fato que se  comprova através de momentos nos quais essa vinculação é bastante  clara em vista da transformação da sociedade brasileira (1998, p. 19). A  publicação   representou   uma   dupla   face   de   ação   transformadora,  refletindo e interferindo  ao  mesmo  tempo  no processo  de mudanças  socioculturais no país durante os revolucionários anos 60. 

Em síntese,  Realidade  foi produto de uma situação social na  qual   as   expectativas   da   classe   média   urbana,   seu   público   alvo,  gravitavam em torno de uma vontade de modernização, embora ainda  atrelada   aos   valores   tradicionais.   Isso   significa   que   a   publicação   da  Abril desempenhou papel de difusor do imaginário social do período,  abarcando  parte  significativa das  vertentes  libertárias de  pensamento  referentes àquele momento.  

De acordo com Baczko, o imaginário social é um arcabouço de  referências  simbólicas  relacionadas  a uma determinada cultura, época  ou  sociedade, às  quais as coletividades  recorrem  para obterem  certa  representação   de   si,   estabelecerem   seus   valores   e   crenças,   suas  modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar. Usando­o também  para determinar as suas formas de funcionamento social,

O imaginário social é, deste modo, uma das forças  reguladoras   da   vida   coletiva.   As   referências  simbólicas não  se limitam  a indicar  os indivíduos  que   pertencem   à   mesma   sociedade,   mas   definem  também de forma mais ou menos precisa os meios  inteligíveis   das   suas   relações   com   ela,   com   as  divisões  internas  e  sociais.  O  imaginário  social  é,  pois,  uma   peça   efetiva   e   eficaz   do   dispositivo   de  controle da vida coletiva e, em especial, do exercício  da   autoridade   e   do   poder.   Ao   mesmo   tempo,   ele  torna­se   o   lugar   e   o   objeto   dos   conflitos   sociais.  (Baczko, 1985, p. 309)

O imaginário social simboliza esta “ordem do mundo” na qual  as   sociedades   balizam   um   conjunto   de   valores   significantes   para   a  manutenção da própria vida em sociedade. Para Castoriadis, o papel das  significações   imaginárias   é   fornecer   respostas   para   perguntas   como: 

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Quem  somos nós como coletividade?  Quem somos nós uns com os  outros? Onde e em que somos nós? Que queremos, que desejamos, o  que nos falta?  Sem resposta a estas perguntas não existiria mundo humano,  nem sociedade ou cultura e tudo iria parecer um caos indiferenciado. As  respostas  a elas não podem ser encontradas nem na realidade nem na  racionalidade, já que a sociedade torna­se algo fazendo­se e pensando­ se. Isso significa que: 

A   sociedade   se   constitui   fazendo   emergir   uma  resposta de fato a essas perguntas em sua vida, em  atividade. É no fazer de cada coletividade que surge  o sentido encarnado a resposta a essas perguntas, é  esse fazer social que só se deixa compreender como  resposta   às   perguntas   que   ele   próprio   coloca  implicitamente. (Castoriadis, 2000, p. 177)  As significações imaginárias que instituem a sociedade estão  em constante processo de    estruturação e reestruturação provinda do  próprio ato de se pensar como coletividade por parte dos indivíduos. O  parecer de Castoriadis remete à efetividade dos indivíduos na instituição  imaginária da sociedade, já que “A instituição da sociedade é instituição  do fazer social e do representar/dizer social (Castoriadis, 2000, p. 405).  Segundo Baczko, o imaginário social torna­se inteligível e comunicável  através da produção dos discursos “nos quais e pelos quais se efetua a  reunião das representações coletivas numa linguagem” (1985, p. 311).  Isto  é,  os  discursos  são  responsáveis  tanto  pela  difusão  quanto  pela  construção deste imaginário social. No caso dos discursos midiáticos,  dos quais o jornalismo é um exemplo, este imaginário social é capturado  da   sociedade   e   amplificado.   O   conceito   de   imaginário   social,   dessa  forma,   entra   em   consonância   com   as   Teorias   Construcionistas   do  jornalismo. Nelas, preconiza­se que a notícia é uma construção social,  isto é:

As   notícias   são   histórias   que   resultam   de   um  processo de construção, linguística, organizacional,  social, cultural, pelo que não podem ser vistas como 

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o   espelho   da   realidade,   antes   são   artefatos  discursivos   não   ficcionais   que   fazem   parte   da  realidade   e   ajudam­na   a   construir   e   reconstruir.  (Sousa, 2004, p. 125) 

Tendo   em   mente   que   a   notícia   é   um   artefato   tributário   da  cultura, da sociedade e da história em que foi construída, é patente que o  jornalismo de  Realidade  tenha repercutido a conjuntura do Brasil na  década de 60, bem como tenha afetado a instituição imaginária social  daquele período. Como atesta o jornalista Carlos Azevedo: “O tempo  todo a revista era muito ligada nas coisas que estavam acontecendo e as  coisas   que   estão   acontecendo   não   só   influenciam   a   revista   como   a  revista em seguida influencia essas coisas, esses movimentos todos” (p.  4, anexo 5). Opinião similar tem José Hamilton Ribeiro, que também vê  associação   entre   a   fórmula   adquirida   pela   revista  Realidade  e   a  conjuntura: 

Realidade  surgiu   no   ano   de   66.   E   nos   anos   60  aconteceram   tudo   o   que   tinha   que   acontecer   no  mundo.   Era   muita   agitação   cultural,   existencial.  Movimentos   de   estudantes,   movimentos   de  operários, a “pílula”, Beatles, movimento feminista...  Aqueles   tempos   eram   tempos   de   efervescência  intelectual e existencial e isso se refletia na gente e  agente refletia isso na revista. (p. 2, anexo 3)

A década de 1960 no Brasil e no mundo foi particularmente um  momento   propício   à   quebra   de   paradigmas   e   às   manifestações  contraculturais.   Neste   momento   histórico,   as   principais   bases   de  sustentação da sociedade tradicional existentes antes da Segunda Grande  Guerra   (1939­1945)   foram  vigorosamente  abaladas.   Todos   os  tropos  contraculturais ocuparam as ruas em alto e bom som ao mesmo tempo,  isto é, foi um período em que expressão e comportamento fundiram­se  com uma crescente sensação de responsabilidade coletiva pelo fim das  guerras, da pobreza e da injustiça. Havia um desejo súbito de criar uma  nova sociedade que fosse, ao  mesmo tempo, humana  e arrebatadora  (Goffman, Joy, 2007, p. 272).

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Inúmeros focos de revolução começaram a explodir em todos  os   âmbitos   sociais.   Os   sistemas   capitalista   e   socialista   foram  questionados. O primeiro por favorecer a exploração e a concentração  de renda, principalmente nos países subdesenvolvidos. O segundo pelo  totalitarismo e pela tirania desenfreados.  As estruturas familiares tradicionais foram questionadas no que  diz respeito à submissão feminina e à inferiorização moral e intelectual  do jovem. Os tabus sexuais, tema bastante delicado para a época, foram  combatidos em várias frentes, tais como o sexo antes do casamento, o  homossexualismo   e   a   sexualidade   feminina.   Enfim,   todo   tipo   de  repressão à natureza humana e conservadorismos ligados ao status quo  social foram alvo de discussões e combates, que iam às vias de fato nas  ruas, tornadas campos de batalha. 

O progresso das sociedades capitalistas ocidentais, aliado ao  estabelecimento   de   uma   Indústria   Cultural,   que,   de   certa   forma,  estimulou   o   conflito   de   gerações,   criou   um   terreno   propício   para   o  desenvolvimento do que foi uma marca dos anos sessenta do século XX:  a explosão da contracultura. Contudo, essa vertente de pensamento não  era   uma   novidade.   Nos   Estados   Unidos   remontava   à   denominada  geração  beat  da   década   de   1940.   Importa   dizer   que  idéias   que  contestavam o estilo de vida nas sociedades capitalistas vieram em um  processo de crescimento vertiginoso até eclodirem nos anos 60. 

São muitos os exemplos de fatos e conflitos que demonstram  esse   alastrar   dos   movimentos   contraculturais   pelo   mundo   durante   o  período. O ano de 1968 concentrou uma série de acontecimentos que  concretizavam esses ideais. O mês  de maio de 1968, na França, foi o  mais notório entre eles. Ele começou com manifestações estudantis nas  universidades   francesas   de   Nanterre   e   Sorbonne.   O   estopim   da  insurreição estudantil foi a rigidez moral do sistema educacional e logo  as manifestações se espalharam como rastilho de pólvora para outras  instituições de ensino, envolvendo inclusive a classe operária em uma  grande mobilização. 

Nos   Estados   Unidos,  inúmeras   manifestações   vinculadas   à  Nova   Esquerda   e   aos  hippies,   eclodiram   em   virtude   da   defesa   dos  direitos civis dos negros, e da emancipação das mulheres e contra as 

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atrocidades da guerra no Vietnã. Entre os protestos contra esse conflito,  o mais marcante  foi o do Central Park, em Nova York, que reuniu  inúmeros manifestantes em abril deste mesmo ano de 1968. 

Nos   países   da   América   Latina,  os   confrontos   envolveram  estudantes e intelectuais que se posicionavam contra as ditaduras e a  favor  de reformas  educacionais. No México, na  Argentina, Uruguai,  Colômbia e Venezuela, estudantes ocuparam universidades, decretaram  greves e se envolveram em intensos confrontos com policiais e forças  do   Exército,   o   que   gerou   um   intenso   e   progressivo   processo   de  repressão. 

Na então Tchecoslováquia, um programa de reformas políticas  concebido para humanizar o sistema de governo, desagradou a então  União   Soviética.   Denominado   "Primavera   de   Praga",   propunha   uma  série de mudanças que descaracterizariam o sistema socialista e incluía  o restabelecimento da liberdade de imprensa. A ex­URSS decidiu coibir  a emancipação ideológica da Tchecoslováquia e assim, em novembro,  vários   cidadãos,   que   protestavam   nas   ruas   de   Bratislava,   foram  duramente reprimidos pelas forças do exército do Pacto de Varsóvia  (Aliança Militar dos Países do Leste Europeu). 

No Brasil, havia um clima de efervescência revolucionária nos  âmbitos   artístico   e   político,   ocasionado   pelo   rescaldo   da   onda  nacionalista e desenvolvimentista vivida durante o período de intervalo  democrático. Era um momento em que várias forças se aliavam: i) nas  cidades, o movimento operário, que havia crescido desde o início da  década   de   50   e   levado   a   um   fortalecimento   da   sindicalização   dos  trabalhadores; ii) no campo, o movimento das Ligas Camponesas, que  suscitavam   a   questão   da  reforma   agrária;   e   iii)   a  juventude,   que   se  mobilizava   em   torno   da   União   Nacional   dos   Estudantes   (UNE),  funcionando como um catalisador do Movimento Estudantil. 

Vinculados  à  UNE,   os   Centros  Populares   de  Cultura  (CPC)  iriam   promover   iniciativas   de   produções   teatrais,   cinematográficas   e  editoriais, arregimentando artistas e intelectuais em torno de uma idéia  de arte revolucionária. A arte engajada é também elemento aglutinador  para os cineastas do Cinema Novo e para os músicos e compositores da  Tropicália. Essa movimentação tem o seu auge no mês de junho de 

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1968, quando aconteceu no Rio de Janeiro o maior protesto contra a  ditadura   militar,   conhecido   como   a   Passeata   dos   Cem   Mil,   na   qual  participaram   intelectuais,   artísticas,   religiosos   e   estudantes,   dentre  outros. O acontecimento em si demonstrou a aliança entre a arte e a  militância política bem como o fortalecimento de um tipo de intelectual  de esquerda. Analisa Heloísa Buarque de Hollanda:

Um   novo   tipo   de   artista,   “revolucionário   e  consequente,   ganhava   forma.   Empolgados   pelos  ventos da efervescência política, os CPCs defendiam  a  opção   pela  “arte   revolucionária”,   definida  como  instrumento   a   serviço   da   revolução   social,   que  deveria abandonar a “ilusória liberdade abstratizada  em   telas   e   obras   sem   conteúdo”,   para   voltar­se  coletiva e didaticamente ao povo, restituindo­lhe “a  consciência de si mesmo. (Hollanda, 1982, p.9)   

As revoluções sociais e culturais explodiram durante a segunda  metade   no   século   XX   e   tiveram   razões   bem   definidas   para   ocorrer  naquele   exato   período.   O   historiador   Eric   Hobsbawm   alia   estas  explosões de revolução na sociedade a um conjunto de acontecimentos  modernizadores   que   se   desencadearam   em   efeito   cascata.   Para  Hobsbawm, estão atreladas a uma mesma conjuntura histórica a morte  do campesinato; o aumento do número de pessoas com educação média  ou   superior   por   consequência   da   urbanização   e   industrialização   das  sociedades;   o   declínio   da   classe   operária,   em   decorrência   da  transposição das velhas indústrias de base dos países desenvolvidos para  os subdesenvolvidos; a entrada das mulheres no mercado de trabalho;  assim   como   o   aumento   da   instrução   intelectual   de   nível   superior  feminino, impulsionado pelas lutas de emancipação das mulheres. O  historiador ainda ressalta que, “para 80% da humanidade, a Idade Média  acabou de repente em meados da década de 50; ou talvez melhor, sentiu­ se que ela acabou na década de 1960" (2008, p. 283).

A  expansão   da   educação   superior   não   significou  necessariamente uma garantia de enquadramento social para inúmeros  graduados. A consequência mais imediata e direta foi uma inevitável  tensão entre a massa de estudantes que ingressou nas universidades e as 

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instituições que não estavam física, organizacional e intelectualmente  preparadas para tal influxo, como aponta Hobsbawm. O fato gerou uma  grande   onda   de   insatisfação   por   parte   dos   estudantes   que   já   eram  contados aos milhões em todo o mundo. Desta forma, na década de  60  tornou­se  inegável   que   os   estudantes   tinham   constituído,   social   e  politicamente, uma força muito mais importante do que jamais haviam  sido, o que foi comprovado em 1968 com as explosões de radicalismo  em   todo   o   mundo.   Eles   conseguiram   expor   esta   problemática   aos  governos e à sociedade como um todo, tal como analisa Hobsbawm: 

À   medida   que   uma   crescente   proporção   de  população em idade escolar tinha oportunidade de  estudar,   ir   para   a   Universidade   deixou   de   ser   um  privilégio especial que já constituía uma recompensa  em si, e as limitações que isso impunha a jovens  adultos   deixavam­nos   mais   ressentidos.   O  ressentimento   contra   um   tipo   de   autoridade,  universidade,   ampliava­se   facilmente   para   o  ressentimento contra qualquer autoridade e, portanto,  inclinava os estudantes para a esquerda. Assim, não  surpreende de modo algum que a década de 60 se  tenha tornado a década da agitação estudantil  par  excellence. (Hobsbawm, p. 295) A revolução social foi acompanhada pela revolução cultural,  que repercutiu em transformações na estrutura familiar tradicional e em  mudanças relacionadas à sexualidade, não mais relegada à posição de  tabu.   Estatisticamente,   houve   um   declínio   da   família   nuclear   básica  ocidental   e   um   aumento   considerável   no   número   de   divórcios,   de  casamentos   informais,   de   pessoas   solteiras,   de   mulheres   que   eram  chefes   de   família,   assim   como   cresceu   o   número   de   pessoas   que  manifestava sua orientação sexual declaradamente ou que optava por  não ter filhos. 

Durante a década de 1960 também houve uma revolução do  comportamento   jovem,   ou   seja,   o   avanço   de   uma   cultura   juvenil  específica   e   extraordinariamente   forte,   que   indica   uma   profunda  mudança   na   relação   entre   as   gerações.   O   crescimento   desta   cultura 

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jovem   teve   forte   participação   da   Indústria   Cultural,   sua   grande  animadora e beneficiária. O público jovem se tornou um agente social  independente   e   árduo   consumidor   das   indústrias   fonográfica,  cinematográfica e de moda, além de ter se tornado alvo preferido da  maioria das campanhas publicitárias. Um outro fenômeno inerente à  cultura jovem foi a guinada para as culturas antes marginalizadas, ou  seja,   a   indústria   cultural   voltou­se   para   a   cultura   popular,   sendo   a  explosão de popularidade do rock um bom exemplo. 

Esta guinada para o popular, no mundo anglo­saxão, encontra  paralelo no Brasil na década de sessenta, tanto pela revalorização do  samba, música de gueto inicialmente, por nomes como Chico Buarque  de   Hollanda,   Nara   Leão   e   Vinicius   de   Moraes,   assim   como   pelo  movimento  Tropicalista,  reconhecidamente uma manifestação artística  que recolhia e readaptava os elementos da cultura  kitsch, da cultura  popular brasileira e da estrangeira.  Lançar os holofotes para os estilos  informais,   não   eruditos,   foi   uma   maneira   conveniente   de  rejeitar   os  valores das gerações passadas, ou de buscar uma linguagem em que os  jovens   podiam   encontrar   meios   de  lidar   com   a   vida,   cujas   regras   e  valores dos mais velhos não lhes eram mais relevantes. 

A conjuntura político­cultural da década de sessenta no Brasil  também se destacou por intensos protestos contra a ordem conservadora  identificada   na   época   com   os   valores   tradicionais   e   com   o   Estado  autoritário. A motivação das elites intelectuais, políticas e artísticas era a  modernização. O país acabava de sair de um processo de renovação e  agitação cultural que começou no início dos anos 50 e foi fortalecido  pela eleição de Juscelino Kubitschek à presidência da República em  1955, governo que propagou pelo país a ideologia desenvolvimentista2 e  inaugurou   no   Centro­Oeste   uma   nova   e   moderna   Capital   Federal,  Brasília.   Sendo   assim,   o   intervalo   democrático   entre   o   governo  Kusbitschek   e   o   golpe   militar   em   abril   de   1964,   foi   um   período  2 A   ideologia   desenvolvimentista,   com   sua   base   populista,   foi   usada   como   um   meio   de  garantir a estabilidade do sistema e como  forte catalisador de mobilização e legitimação.  Embora   o   desenvolvimentismo,   ideologia   explicitamente   nacionalista,   fosse   eficaz   em  mobilizar   o   apoio   popular,   também   foi   muito   paradoxal,   pois   o   governo   jogava   com   os  sentimentos nacionalistas do povo e ao mesmo tempo baseava sua política econômica no  influxo do capital estrangeiro. (Johnson, 1982, p. 64) 

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essencialmente   otimista,   pois   se   acreditava   que   o   Brasil   iria   sair  finalmente do seu subdesenvolvimento. Estava sendo reconhecido no  exterior devido às repercussões da Bossa Nova e do Cinema Novo. As  cidades   estavam   em   pleno   desenvolvimento   de   urbanização,   o  crescimento industrial expandia­se e o nacionalismo era impulsionado  pelas   manifestações   artísticas   que   se   propunham   a   redescobrir  criticamente   a   brasilidade.   De   acordo   com   a   pesquisadora,   Heloísa  Buarque de Hollanda, vivia­se uma conjuntura marcada pela articulação,  nem   sempre   estável,   da   nova   ordem   democrática,   em   que   a  intensificação   do   processo   de   industrialização   enchia   de  otimismo   o  imaginário   das   elites   que   anteviam   a   realização   do   sonho   do  desenvolvimento econômico (1982, p. 32). 

O golpe militar de abril de 1964 acontece em um momento em  que preponderam a influência das estratégias militares norte­americanas  vinculadas à Guerra Fria para conter o “perigo comunista” nos países da  América Latina e um quadro político instável no cenário brasileiro. O  golpe   causou   estarrecimento   da   classe   intelectual   e   artística   que  esperava   um   protagonismo   do   povo   na   reação.   Essa   perplexidade  também vai tomar a classe média pelo progressivo endurecimento do  governo ditatorial com a promulgação sucessiva dos atos institucionais  até  o famigerado  AI­5. A indignação era evidente principalmente nos  quatro primeiros anos, quando os setores culturais e a mídia gozavam de  certa liberdade para discutir a situação de impasse vivida pelo país. Os  Festivais de Música Popular Brasileira patrocinados por emissoras de  TV são flagrantes desse momento. Eles demonstravam a ruptura entre a  canção   politicamente   engajada,   que   trabalhava   com   o   repertório  nacional, com a música caipira e o samba, e a música que começava a se  filiar a elementos estrangeiros, em especial o rock norte­americano, com  a adesão à guitarra elétrica. As composições populares nesse período  seguiram o caminho da canção de protesto nos moldes  do protest song  norte­americano, representado por Bob Dylan. No país, ela teve o auge  com   o   musical   “Opinião”,  em   1964,   e   com   o   compositor   Geraldo  Vandré, autor de “Para não dizer que não falei das flores”, composição  sedimentada em nossa cultura como símbolo de uma época. 

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as manifestações artísticas brasileiras no contexto da atualidade. Para os  tropicalistas, a verdadeira conquista não era se opor à música importada;  o   interessante   era   consumir   e   reelaborar   influências   estrangeiras   e  locais,   como   indicava   a   ideologia   antropofágica   preconizada   pelo  modernista Oswald de Andrade. O teatro de “vanguarda”, representado  pelo Arena e pelo Oficina, fazia coro a essas questões por meio de peças  como: “O rei da Vela”, de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso  Martinez e “Gota d'água”, de Chico Buarque. 

Esses ideais são reiterados no Cinema Novo, que já havia sido  saudado   e   acolhido   pela   crítica   internacional   na   década   anterior.   A  tendência do Cinema Novo era “a realização de filmes 'descolonizados',  vinculados criticamente à realidade do subdesenvolvimento, capazes de  traduzir a especificidade da vivência histórica de um país do Terceiro  Mundo   (Hollanda,   1982,   p.   37)”,   fato   que   ficará   marcado   com   a  “profissão de fé”, de Glauber Rocha,  com seu manifesto da Estética da  Fome. A revista Realidade não apenas iria cobrir esses assuntos como  faria parte de todo esse processo de engajamento dos setores culturais,  como sustenta o jornalista Carlos Azevedo: 

Movimento de 68 na França, por exemplo. Não é que  ele   inspirou   o   do   Brasil.   No   Brasil   aconteceu   ao  mesmo   tempo.  O   movimento   estudantil   estava  acontecendo aqui e estava acontecendo lá. Só que lá  teve uma dimensão muito maior, levou o movimento  operário a se manifestar. Aqui não, porque a ditadura  já tinha devastado o movimento operário quatro anos  antes.  Mas a gente vivia esse clima. Então você vê,  na   literatura   era   assim,   no   cinema   era   assim,   na  política   era   assim.   Era   uma   efervescência   muito  grande.   Nós,   em  Realidade,   passávamos   o   tempo  todo discutindo o que fazer para levar à população  essa idéia, levar esta transformação da sociedade. E  da participação, do protagonismo do povo. Você vai  ver   em  Realidade  muitas   reportagens   procurando  mostrar as pessoas simples do povo, na sua vida, em  suas dificuldades. (p. 3, anexo 5)

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