PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM JORNALISMO Vaniucha de Moraes REALIDADE (RE)VISTA: O PAPEL DO INTELECTUAL NA CONCEPÇÃO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO Florianópolis 2010
PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM JORNALISMO
Vaniucha de Moraes
REALIDADE (RE)VISTA: O PAPEL DO INTELECTUAL NA CONCEPÇÃO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO
Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina apresentada ao Programa de PósGraduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção de grau de Mestre em Jornalismo
Orientador: Prof. Dr. Jorge Kanehide Ijuim Área de Concentração: Jornalismo
Florianópolis 2010
REALIDADE (RE)VISTA: O PAPEL DO INTELECTUAL NA CONCEPÇÃO DE UM PROJETO REVOLUCIONÁRIO Universidade Federal de Santa Catarina Programa de PósGraduação em Jornalismo Data da aprovação: _____de _______________de 2010. ________________________________ Jorge Kanehide Ijuim Dr. em Ciências da Comunicação/Jornalismo, UFSC. ________________________________ Marialva Carlos Barbosa PósDra. em Comunicação, UFF e UTP. ________________________________ Mauro César Silveira Dr. em História IberoAmericana, UFSC
Agradecimentos a todas as pessoas que estiveram envolvidas no intercurso da efetivação desta obra. Ao orientador Jorge Kanehide Ijuim pela criatividade, ousadia intelectual e pelas discussões sempre profícuas. Aos caros companheiros da acadêmica e fora dela que me acompanharam nesta trajetória. E um obrigado especial aos jornalistas de revista Realidade, sem os quais esse trabalho não seria possível.
ficção. O melhor do seu legado não está no gesto – muitas vezes desesperado; outras, autoritário – mas na paixão com que foi à luta, dando a impressão de que estava disposta a entregar a vida para não morrer de tédio. Poucas – certamente nenhuma depois dela – lutaram tão radicalmente por seu projeto, ou por sua utopia. Ela experimentou os limites de todos os horizontes existenciais, sonhando em aproximálos todos. Sem dúvida, há muito o que rejeitar dessa romântica geração de Aquário – o messianismo revolucionário, a onipotência, o maniqueísmo – mas há também muito o que recuperar de sua experiência”.
A revista Realidade é considerada uma referência em termos de ousadia em linguagem e abordagem temática na literatura existente sobre História da Imprensa Brasileira. O presente trabalho de pesquisa concentrase no auge de seu momento revolucionário, notadamente, o período compreendido de abril de 1966 a dezembro de 1968, e objetiva explorar os fatores que compuseram sua política editorial. O estudo realizado estruturase na forma de uma perspectiva de análise que abrange o contexto sóciohistórico, o modus operandi da equipe precursora e a formação intelectual dos indivíduos envolvidos no processo de produção jornalística da publicação.
PalavrasChave: Jornalismo; Fundamentos do Jornalismo; revista Realidade; História; Linha Editorial; Reportagem.
The Realidade magazine is considered a benchmark in terms of boldness in language and thematic approach in the existing literature on the history of the Brazilian press. The present research focuses on the height of its revolutionary moment, especially, the period comprehended from 1966, April, to 1968, December, and aims to explore the factors that made up its editorial policy. The study is structured in the form of an analytical perspective that covers the sociohistorical context, the modus operandi of the precursor team and intellectual formation of the individuals involved in the production process of newspaper publication.
Keywords: Journalism; Fundamentals of Journalism; Realidade magazine; History; Editorial line; Report.
INTRODUÇÃO...11 1 A REALIDADE DO MUNDO...23 1.1 UMA PUBLICAÇÃO REVOLUCIONÁRIA: VISÃO PANORÂMICA... 23 1.2 O CONTEXTO SÓCIOHISTÓRICO DEFLAGRADOR DE REVOLUÇÕES NO JORNALISMO...25 1.2.1 IMAGINÁRIO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOTÍCIA EM REALIDADE
...25
1.2.2 INTERTEXTUALIDADES E INTERSUBJETIVIDADE: OS DIÁLOGOS COM AS FORMAS DE EXPRESSÃO CONTEMPORÂNEAS...38 1.2.2.1 A CONTROVÉRSIA INFLUÊNCIA DO NOVO JORNALISMO...41 1.2.2.2 UMA SINTONIA LATINOAMERICANO...46 1.2.2.3 NO JORNALISMO COMO NO CINEMA...542 O MUNDO DE REALIDADE: O MODUS OPERANDI DO JORNALISMO DA EQUIPE INICIAL...67 2.1 O CONTEXTO DA IMPRENSA BRASILEIRA: UMA REFORMA GRÁFICA E EDITORIAL NOS JORNAIS...68 2.1.1 DA REVISTA DE DOMINGO À EDIÇÃO PILOTO... 73
2.3 ELEMENTOS DE TRANSGRESSÃO...98 3 OS JORNALISTAS: O PAPEL DOS INTELECTUAIS DA EQUIPE PRECURSORA NA ESTRUTURAÇÃO DA LINHA EDITORIAL...115 3.1 DA TRADIÇÃO DA INTERFACE JORNALISMO E LITERATURA... 122 3.2 A IMANÊNCIA DA FORMAÇÃO INTELECTUAL DOS JORNALISTAS NAS REPORTAGENS DE REALIDADE...133 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...165 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...173 ANEXOS A – ENTREVISTA COM MYLTON SEVERIANO B – ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS MARÃO C – ENTREVISTA COM JOSÉ HAMILTON RIBEIRO D – ENTREVISTA COM LANA NOWIKOW E – ENTREVISTA COM CARLOS AZEVEDO F – ENTREVISTA COM WOILE GUIMARÃES E – ENTREVISTA COM FREI BETTO
INTRODUÇÃO
O presente trabalho analisa os fatores preponderantes na edificação da linha editorial da revista Realidade. A publicação, considerada marco revolucionário na história do jornalismo brasileiro, tem sido leitura de referência não só para pesquisadores, jornalistas e estudantes da área, mas para todo cidadão brasileiro que tenha curiosidade em conhecer mais sobre a história do seu país enquanto este atravessava momentos cruciais de mudança e modernização cultural. Seu auge ocorreu na década de 1960, período que a revista tratou com originalidade e pertinência, de abril de 1966 a dezembro de 1968.
As inovações nas páginas de revista Realidade estavam ancoradas em ampla perspectiva transgressora e revolucionária, que abrange desde a forma como as reportagens foram elaboradas até o seu conteúdo. Conseguiu amplificar o panorama de manifestações de protesto contra a ordem conservadora e expôs as transformações sociais que estavam desestabilizando as estruturas sociais tradicionais e os antigos padrões de comportamento.
A publicação conquistou grande adesão do público jovem e intelectual e, apesar de ser produzida por uma grande empresa de comunicação, sua proposta jornalística figura entre as mais revolucionárias de seu tempo. O sucesso da revista pode ser atribuído à pertinente proposta editorial aliada às condições de mudança do mercado de revistas que, na época, precisava adequarse às transformações da sociedade brasileira, na qual despontava um novo público: a classe média urbana, formada, sobretudo, por jovens de nível superior ou equivalente ao nível médio atual (Lima, 2004, p.224). Esses jovens de classe média percebiam o turbilhão de revoluções pelo qual passava o mundo e queriam estar bem informados, se não inseridos neste processo de mudanças.
O Brasil estava em uma fase em que o progresso e o desenvolvimento eram constantemente abordados nos discursos, fossem eles políticos, artísticos, de direita ou de esquerda. A urbanização e a industrialização crescentes promoviam o êxodo da população do campo para as cidades e o país modernizavase. Aconteciam, no período,
inúmeras manifestações artísticas que se propunham a rever o Brasil. Em 1966, quando a primeira edição foi para as bancas, ocorria intensa agitação cultural e política. A demanda era constituída por um público que presenciava o surgimento de uma nova conjuntura histórica, social e cultural e os assuntos tratados miravam esta cena de transformações, uma abordagem que as demais publicações da época não conseguiram acompanhar. Realidade foi produzida por dez anos consecutivos, de abril de 1966 a março de 1976. Contudo, o período delimitado para realização da presente pesquisa corresponde aos seus três primeiros anos – ou, mais precisamente, dois anos e nove meses, de abril de 1966 a dezembro de 1968. Durante este momento estiveram mais evidentes as características que a tornaram uma referência para a história da reportagem brasileira. E foi nesse intervalo de tempo que a publicação representou um vínculo entre a produção do texto jornalístico e o conjunto das manifestações políticas e culturais contestadoras vividas no Brasil e no exterior. Para Faro, o caráter inovador adquirido pelas reportagens de Realidade no período guardou estreita relação com o discurso transgressor predominante em meados dos anos 60. A imprensa brasileira, em especial no que tange ao gênero reportagem, pautou grande parte de sua produção pelo discurso libertário e contestador, comum aos demais movimentos artísticoculturais do país naquele momento. Segundo o pesquisador, a fonte de inspiração poética, dramatúrgica, literária e jornalística de tais manifestações eram o Estado autoritário e as deformações sociais do modelo econômico modernizador e concentrador de renda. Esta motivação, associada ao pensamento de esquerda, foi comum a quase toda produção cultural da década de 1960, acentuadamente "engajada" e "militante" (Faro, 1998, p.6). Desde a primeira metade da década de 1960, o Brasil passava por grave crise política e social que culminou com o golpe militar de abril de 1964. O regime militar, uma vez instaurado, iria gradativamente se tornar mais intransigente e repressivo até o seu recrudescimento no final de 1968. Com a imposição da censura, toda a classe intelectual e sua produção foram comprometidas. A publicação da Abril repercutiu
no jornalismo a mobilização política vivida por intelectuais, universitários e artistas.
Durante a primeira fase de Realidade, tinhase uma redação constituída por um grupo articulado de jornalistas sensíveis às questões mais pungentes para aquele contexto histórico. Quando os pesquisadores e estudiosos classificamna como um marco da história da reportagem na imprensa brasileira, é a este período que se referem. Por isso, não é mera coincidência que as características que a tornaram uma publicação de relevo estão mais evidentes nesse momento. Em virtude disso, o presente estudo elegeu o intervalo de abril de 1966 a dezembro de 1968 como período focal da avaliação das reportagens, objeto empírico da pesquisa, visando a uma investigação sobre os motivos de Realidade ter sido considerada uma referência para a imprensa brasileira e acerca dos fatores que predominaram na composição da linha editorial desta publicação durante os seus primeiros anos.
Nos anos que antecederam à promulgação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, o país ainda vivia sob o rescaldo da onda de agitações políticas e artísticas iniciada durante o período de intervalo democrático. Em seus primeiros anos de publicação, a revista conseguiu, com sua fórmula, refletir aquele momento de crítica aos problemas nacionais e embates contra a ordem conservadora. Porém, sofreu um forte impacto em sua proposta original no intercurso da escalada da ditadura militar. Por esta razão, o projeto ficou seriamente comprometido. Superveniente a esse ano, Realidade passou por um processo de descaracterização sobrevivendo durante a primeira metade da década de 1970, até ser extinta no ano de 1976.
A revista Realidade já motivou e integrou outras pesquisas acadêmicas, tanto na área de Comunicação Social como em outros campos das Ciências Humanas e Sociais. O primeiro deles foi uma tese de doutoramento realizada em 1988, de autoria de Maria Terezinha Tagé Dias Fernandes, Jorge Andrade, Repórter Asmodeu: leitura do discurso jornalístico de autor na revista Realidade. A tese da pesquisadora, embora aponte para um estilo de jornalismo autoral, peculiar à revista, concentrase no trabalho de Jorge de Andrade,
realizado durante os anos de 1969 a 1973, um período de declínio da fórmula consagrada da publicação. Em 1991, pela ECA – USP, Bernardo Kucinski defendeu a tese Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, sobre a chamada 'imprensa nanica' que se desenvolvera na década de 1970. Nela, o autor posicionou a revista como uma importante matriz da imprensa alternativa devido à força de decisão conquistada pela equipe produtora e também à dissidência dos jornalistas, advindos de Realidade, que constituíram ou participaram dos jornais alternativos na década de 1970. A tese seguinte data de 1993 e também trouxe para o debate a revista Realidade. Tratase de O livro reportagem como extensão do jornalismo impresso: realidade e potencialidade, de Edvaldo Pereira Lima, na qual o autor trata da ampliação da abordagem jornalística por intermédio do livro reportagem, bem como manifesta as características deste gênero. O pesquisador cita a publicação da Abril como uma referência na história da reportagem e um fator de importância do desenvolvimento do livro reportagem no Brasil. Neste trabalho, Lima conjectura que o Novo Jornalismo possa ter influenciado a linha editorial tanto de Realidade quanto do Jornal da Tarde, ambos surgidos em 1966, mas também enfatiza a contingência do contexto histórico como fator de relevância para o teor revolucionário da revista. Em 1999, outro estudo foi apresentado na ECA – USP, desta vez o foco foi a própria publicação; Realidade 19661968, tempo de reportagem na imprensa brasileira, de autoria de José Salvador Faro. É um trabalho sistemático, centrado na revista, que sustenta a tese de que o contexto históricosocial do período foi determinante para a concepção de um projeto editorial emblemático para a história da reportagem na imprensa nacional. Faro estudou as reportagens feitas pela revista durante os três primeiros anos e as reuniu de acordo com as temáticas que abordavam, discriminandoas de acordo com os assuntos mais recorrentemente trabalhados pela revista. O autor salientou o fato de a publicação da Abril ter explorado um período de intensa movimentação sociocultural e, assim, pôde contemplar uma série de “novas visões” que nasciam daquela conjuntura que versavam sobre realidade, família, casamento, jovem, mulher, religião, ciência, o Brasil
e o mundo, enfim, todo um universo de quebra de paradigmas em vários âmbitos sociais que a publicação tratou de difundir para o seu público. De acordo com o pesquisador, a publicação estava em consonância com o discurso transgressor e libertário característico daquele momento e, por isso, sua fórmula foi fortemente marcada pelo contexto de produção, tornadose uma experiência memorável para jornalistas, estudiosos e leitores.
Em 1997, Adalberto Leister Filho desenvolveu trabalho de iniciação científica no Departamento de História da FFCHUSP, denominado Realidade em revista: a revista Realidade, a memória dos jornalistas de uma publicação revolucionária (19651968). O grande mérito desse estudo é que o pesquisador tenta recuperar o caráter revolucionário da revista a partir de depoimentos de jornalistas que participaram da equipe original. O mesmo autor deu sequência a sua pesquisa em uma dissertação de mestrado defendida em 2003, pela mesma instituição, denominada Entre o sonho e a realidade: pioneirismo, ascensão e decadência da revista Realidade (19661976), no qual expande o período da análise e abarca o processo de apogeu e declínio, retratando as mudanças ocorridas sob o viés do desenvolvimento do setor de revistas na indústria cultural brasileira nos anos 60 e 70.
Realidade também esteve presente em estudos de outros campos do conhecimento, como em Leitura de revistas periódicas: forma, texto e discurso, um estudo sobre a revista Realidade (1966 1976), de autoria de Valdir Heitor Bazotto, de 1997, uma tese de doutoramento na área de linguística no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na oportunidade, o pesquisador procurou relacionar o mecanismo de produção de sentido por meio da interação entre o suporte em si, os textos propriamente ditos e o encadeamento das idéias do discurso nos textos da revista durante os dez anos de existência. Também esteve presente em O leitor e a banca de revista: a segmentação da cultura no século XX, de Maria Celeste Mira, tese defendida na Unicamp, em 2001, na qual a socióloga questiona a procedência do público diante da diversidade de publicações, sendo Realidade um dos exemplos
levantados no estudo. Sob o signo do perigo: o estatuto dos jovens no século da criança e do adolescente foi a tese de Rosana Ulhoa Botelho, apresentada na Universidade Brasília, em que a pesquisadora levantou as sanções judiciais sofridas pela publicação – notadamente a proibição da publicação do resultado da pesquisa sobre sexualidade juvenil, pauta na sexta edição, e a apreensão da décima edição sobre a mulher brasileira –, sob a perspectiva da questão do menor na legislação brasileira e as tensões ocorridas na década de 60. Os mais recentes trabalhos acadêmicos sobre a revista da Abril foram as dissertações de Rildo Cosson e Letícia Nunes Góes de Moraes, ambas apresentadas em 2001. A dissertação de Cosson, realizada na Universidade de Brasília, envolveu o romancereportagem como gênero literário e, assim como na tese de Edvaldo Pereira Lima, a revista é apontada como pioneira em técnicas ousadas de redação que seriam um gancho estilístico para a produção dos livrosreportagem na década de 1970. Por sua vez, a dissertação de Letícia Nunes Góes de Moraes, defendida no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, denominada A dança efêmera dos leitores missivistas da revista Realidade (19661968), analisa a seção de cartas da revista. Tratase de um estudo de recepção sobre a repercussão social e a forma como a revista era lida durante os três primeiros anos de publicação.
Como se pode verificar, os estudos realizados sobre essa temática são muitos, assim como as perspectivas usadas para as análises. A proposta que motivou a presente pesquisa versa sobre as possíveis atribuições que contribuíram para a composição da linha editorial adotada. Busca um entendimento acerca dos fatores que constituíram o projeto editorial, além das conjecturas sobre possíveis influências externas. Concentrase na equipe produtora e no indivíduo, isto é, no intelectual que participou de sua produção em seus primeiros e emblemáticos anos.
A pesquisa é um estudo de caso sobre a linha editorial da revista, compreendendo ao todo 33 edições (de abril de 1966 a dezembro de 1968), constituídas de 11 a 13 textosreportagens cada. A metodologia escolhida para a realização deste trabalho é híbrida,
abrangendo: a pesquisa documental – bibliográfica e por meio da análise narrativa das reportagens; e a pesquisa de campo, realizada por intermédio de entrevistas com os jornalistas da equipe inicial, nas quais foram utilizados conceitos e procedimentos da História Oral.
A opção por essa metodologia, que alia pesquisa documental e pressupostos da História Oral, objetivou contemplar o resgate da história vivida dos jornalistas remanescentes da equipe inicial da revista Realidade. A importância do relato dos agentes da história é ir além da pesquisa documental no objeto empírico, notadamente para as edições da publicação em destaque. Por isso, buscouse reunir esses recursos metodológicos com o propósito de promover um diálogo entre a pesquisa documental e os relatos dos jornalistas remanescentes. Dessa forma, a compreensão do projeto editorial da publicação é auxiliada pela contribuição dos próprios atores inseridos e participantes do contexto sóciohistórico. Mais do que “testemunhas oculares”, os jornalistas remanescentes de Realidade podem ser considerados fazedores da história da revista. Em virtude disso, a opção pelas fontes orais, não apenas como complemento, foi fundamental para o desenvolvimento da presente pesquisa.
A História Oral estabeleceuse como método de pesquisa contestador do objetivismo da história oficial escrita, isto é, significou uma crítica aos historiadores documentalistas tradicionais. A partir da década de 1970, a ideia se proliferou como uma maneira mais humanizada de lidar com a história, um método em que os próprios indivíduos entrevistados seriam construtores da história. A difusão dessa nova maneira de olhar os fatos recebeu forte contribuição do inglês Paul Thompson, um dos seus maiores incentivadores. Para o autor, a História até aquele momento apenas ratificou os julgamentos dos poderes existentes e, sendo assim:
A história oral torna possível um julgamento muito mais imparcial: as testemunhas podem, agora, ser convocadas também de entre as classes subalternas, os desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazêlo, a história oral tem um
compromisso radical em favor da mensagem social da história como um todo (Thompson, 1992, p. 26).
A metodologia da História Oral visa estabelecer e ordenar procedimentos de trabalho, tais como: os tipos de entrevista, as implicações de cada procedimento para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras do historiador lidar com seus entrevistados e as influências no seu trabalho. Esta metodologia funciona como uma ponte entre a teoria e a prática (Ferreira; Moraes, 2006, p.6).
Nessa pesquisa foram realizadas entrevistas com jornalistas remanescentes da equipe inicial da revista. Dentre os profissionais que consentiram em participar como fontes orais, tendo seus depoimentos registrados em áudio e vídeo, estiveram Mylton Severiano da Silva, José Carlos Marão, José Hamilton Ribeiro, Lana Nowikow e Carlos Azevedo. Frei Betto, que na época era colaborador da revista, concordou em enviar seu relato por correio eletrônico. O mesmo aconteceu com o jornalista Woile Guimarães. Ambos alegaram falta de tempo por acúmulo de atividades e consideraram que lhes seria mais apropriado enviar as respostas dessa forma. Foram utilizados na análise, também, relatos autobiográficos impressas em revistas (Sérgio de Souza, principalmente), autobiografias publicadas (Roberto Freire e Carlos Azevedo) e comentários dos próprios amigos inseridos nas entrevistas obtidas nesse trabalho. Além da transcrição das entrevistas, foram apropriados os depoimentos transcritos por outro historiador oral, Adalberto Leister Filho, que teve a oportunidade de entrevistar grande parte dos integrantes da equipe inicial da revista, na década de 1990, em trabalho de iniciação científica. Em posse do acervo obtido de relatos de vida e depoimentos sobre o trabalho exercido na produção de Realidade, extraídos de um variado rol de fontes, buscouse estabelecer um diálogo com a pesquisa documental, no qual se empregou a Análise Pragmática da Narrativa no estudo das reportagens. Verificouse pelo próprio caráter das reportagens – com teor autoral preponderante, imersão e uso de recursos
de estilo – que os textos jornalísticos publicados possuíam acentuada tendência para o estilo literário, o que ressaltava ainda mais seu enquadramento na ancestral tradição da estruturação narrativa. A metodologia adotada na análise das reportagens considerou o texto jornalístico da revista uma modalidade de narrativa. No mesmo sentido, Análise Pragmática da Narrativa, apresentada por Luiz Gonzaga Motta no livro “Metodologias de Pesquisa em Jornalismo”, foi muito apropriada ao texto apresentado pela publicação da Abril, uma vez que apresentava forte identidade literária e acentuada carga autoral. Selecionouse no material jornalístico da referida publicação reportagens e variações do gênero, como as reportagensconto, produzidas e assinadas pelos membros da equipe inicial, notadamente pelo núcleo paulista da produção. O foco nesses participantes deveuse ao fato de as características principais da revista terem sido concebidas e alimentadas por eles. Quanto à opção pelas matérias assinadas, justifica se pela ênfase autoral, característica marcante das reportagens. Na análise conjunta do material das entrevistas e do acervo de edições da revista, procurouse uma diretriz de pensamento que aliasse o momento de produção da reportagem – pelo repórter e pela equipe de editores de texto, suas estratégias e mecanismos de produção – ao momento de leitura das reportagens pelo público. Entendeuse que é nessa circunstância que ocorre a produção de sentido, ou seja, decorre da interação entre o autor/narrador e leitor/narratário, isto é, entre emissor e receptor. Isto significa que tais análises não são isoladas, ambas consideram a intersubjetividade da interação entre autor e leitor. Portanto, não são excludentes, mas interdependentes. O objetivo é perceber o objeto empírico da pesquisa, as reportagens presentes nas edições da revista, como objeto intencional de percepção. Esse encaminhamento contempla uma das diretrizes da Análise Pragmática da Narrativa que, segundo Motta:
Deve compreender as estratégias e intenções do narrador, por um lado, e o reconhecimento (ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do receptor, por outro lado. A ênfase está no ato de fala, na dinâmica de reciprocidade, na pragmática comunicativa, não na narrativa em si mesma.
Pretendese observar as narrativas jornalísticas como jogos de linguagem como ações estratégicas de constituições de significações em contexto, como uma relação entre sujeitos atores do ato de comunicação jornalística (p. 146, 2007). A compreensão do texto das reportagens como obras autorais ou, melhor dizendo, como obras literárias, direcionou esse estudo para a percepção das marcas de enunciação presentes, sejam elas de caráter estilístico ou de posicionamento ideológico. Assim, foram identificadas nos textos características que se equiparam às narrativas literárias, tais como construção de personagens (sejam elas lineares ou complexas), descrições de cenas e de diálogos e variações do foco narrativo – isto é, variações da perspectiva do narrador, como narrador heterodiegético (onisciente) ou homodiegético, ou mesmo em primeira pessoa (quando o repórter descreve uma vivência) ou em terceira pessoa (quando o repórter constrói um personagem). Também se atentou para os efeitos do real, coincidentes com os trechos que adotam linguagem referencial jornalística, ricos em dados, estatísticas, aspas com declarações de entrevistados, advérbios de tempo e lugar, datações. De igual maneira, mereceu atenção os efeitos poéticos, coincidentes com os trechos com abundante uso de tropos, figuras de linguagem, linguagem poética, descrição minuciosa de personagens, uso de mitos e fábulas, estórias de apelo moral e ética e uso de estruturas narrativas já consagradas no imaginário popular.
Em vista da posição ocupada por Realidade, em termos de pesquisas de imersão e sofisticação textual, a presente dissertação procurou avaliar os motivos que podem ser atribuídos à estruturação de sua linha editorial. Nesse sentido, a exposição do estudo segue uma perspectiva que parte de um macrocosmo, a análise do contexto sócio histórico no primeiro capítulo; passa pelo microcosmo, formado pela equipe inicial da revista, na segunda etapa deste estudo; e, por fim, alcança no capítulo final o indivíduo, o jornalista, o intelectual que pensava e produzia a publicação. Pretendese, assim, contemplar os patamares significativos do processo de produção jornalística do grupo precursor da revista.
O primeiro capítulo versa sobre o projeto Realidade no contexto sóciohistórico da década de 1960 e suas repercussões no projeto editorial. A produção jornalística é analisada sob a perspectiva do imaginário social dessa década, notadamente um período de quebra de paradigmas em vários âmbitos das manifestações culturais, das quais o jornalismo não se distanciou. Nesse capítulo, procurouse contemplar a produção jornalística de Realidade a lume das Teorias Construcionistas do jornalismo, pelas quais se admite a influência sociocultural na construção da notícia. Assim sendo, avaliouse os possíveis pontos de diálogo com manifestações artísticas como: o realismo mágico dos romances hispanoamericanos, que viviam um momento de intensa popularidade em várias partes do mundo; o Cinema Novo, especialmente a linha de documentários sociológicos a ele vinculados; a associação com o Jornal da Tarde, contemporâneo à publicação da Abril; e o vínculo aos jornais da Imprensa Alternativa, que iriam surgir na década seguinte, em 1970. Na etapa inicial do trabalho também foi abordada a controversa e recorrente associação entre o jornalismo feito por Realidade e o Novo Jornalismo, procurando, com isso, salientar a confluência com formas de expressão contemporâneas à revista que igualmente confrontavam modelos hegemônicos de discurso nos vários âmbitos culturais.
No segundo capítulo, a análise da publicação teve perspectiva na equipe inicial de produção em junção com o patamar histórico da imprensa brasileira no período estudado. Foram consideradas as decisões que compuseram a linha editorial, aliadas à força decisória conquistada pela equipe inicial perante a empresa. Com base no conjunto das decisões editoriais, procurouse categorizar o que se denomina nesse estudo de Elementos de Transgressão – Temáticos e Textuais – marcantes na publicação. Tais componentes evidenciamse pela contraposição às usuais normas canônicas dos textos jornalísticos incorporadas pelas redações brasileiras na década de 1950, como os ideais de isenção e imparcialidade. Procurouse compreender a publicação sob a ótica da sinergia particularmente libertária e contestadora que envolvia a equipe inicial de Realidade.
revista para a história pessoal dos participantes. Temse, assim, a análise da publicação sob o ponto de vista de cada um dos intelectuais remanescentes daquela equipe. Versase sobre a tradicional confluência entre o jornalismo e a literatura no Brasil e no mundo e a imanência de um jornalismo de autor na revista Realidade. A análise dos depoimentos dos jornalistas da equipe precursora aliase aos estudos das reportagens, gênero jornalístico que foi o grande mote da publicação e que encerrava um acentuado teor autoral com exploração dos estilos particulares dos jornalistas. Esta dissertação busca oferecer uma contribuição particular ao histórico das pesquisas já constituídas até então sobre a publicação da Abril. Nosso intuito, com isso, é chamar a atenção para o fato de que a revista era feita por pessoas, com suas respectivas bagagens intelectuais, calcadas no imaginário cultural brasileiro, vivendo em um contexto específico, a década de 1960. A precedência intelectual iria emergir imediatamente nas páginas de Realidade.
1 A REALIDADE DO MUNDO
1.1 UMA PUBLICAÇÃO REVOLUCIONÁRIA: VISÃO PANORÂMICA
Data de novembro de 1965 o número zero da primeira aposta da Editora Abril no setor de revistas de atualidades. A adjetivação “atualidades” acabou sendo muito mais que um critério de definição editorial, pois a revista Realidade repercutiu de forma contundente no cenário de ruptura e tensão pelo qual passava o país. Era um momento de transição. O Brasil, naquele período, ainda com características sobretudo agrárias e conservadoras, encontravase em desenvolvimento urbano e industrial. Além disso, acabara de passar por um golpe militar e, ao mesmo tempo, começava quebrar paradigmas no setores cultural e artístico. Impulsionado por uma combativa classe intelectual, o país passara a se repensar em sentido mais amplo: nas estruturas culturais, sociais e familiares. Era o começo da revolução dos costumes e o Brasil vivia esse impacto.
A Editora Abril acalentava o projeto de ter uma revista com notoriedade e tinha condição de investir nessa empreitada empresarial. O número piloto, impresso no final de 1965, demonstrava toda a expectativa do grupo e dos jornalistas em relação ao projeto, bem como os embates internos que ocorreram entre diretores e jornalistas acerca do direcionamento da linha editorial. Os conflitos ficaram patentes na própria capa. Três fotografias disputam o mesmo espaço: um planador; a mão de um adulto segurando a de uma criança, ensinadoa escrever; e a fotografia de um feto em gestação. As manchetes anunciavam: “Homem voa sem motor”, “Um Brasil mal educado”, e “A vida antes de nascer”.
Esse número zero, assim como os demais pilotos que o sucederam, serviram tanto para testar as características da revista que se pretendia fazer quanto para definir a equipe que produziria Realidade durante os primeiros dois anos e nove meses. Posteriormente, a partir de
abril de 1966, quando foi lançada a primeira edição mensal, a revista decolaria para uma experiência de ousadia e inovação que a tornaria uma experiência jornalística marcante na história da imprensa brasileira. O número piloto foi impresso com 5 mil exemplares. Em abril de 1966, quando a revista inaugurou periodicidade mensal, foram impressos 251.250 exemplares, os quais foram esgotados em três dias nas bancas. Diante da repercussão perante o público leitor, a demanda cresceria a cada nova edição. Em maio do mesmo ano, contou com 281.517 e teve tiragem esgotada. O número três, de junho, teve uma tiragem de 354.030, um número considerado impossível até então. Na quarta edição, de julho, a revista chegou a 404.060 leitores. Na quinta, esse número saltou para 470 mil. Seguindo em acelerada progressão, o consumo da revista chegou ao recorde de 505.300 exemplares, em fevereiro de 1967 (Patarra, “A história das doze capas”, março de 1967). A significativa adesão do público leitor devese à sintonia da equipe produtora com a conjuntura e a cobertura de assuntos que estavam na “ordem do dia” naquele momento. O fator crucial do grupo de profissionais que produziu Realidade durante seus primeiros anos era o seu grande entrosamento afetivo e ideológico. Todos mantinham mais que uma relação de amizade, eram cúmplices em suas visões de Brasil e, principalmente, em suas expectativas quanto ao jornalismo que faziam. A coesão do grupo fazia frente à direção da revista. O sucesso de vendas alcançado já nos primeiros meses de produção demonstrou, aos poucos, à empresa, que as decisões tomadas pela redação, embora ousadas, alavancavam o empreendimento1. Por isso, nos primeiros anos, a equipe inicial encabeçada pelo jornalista Paulo Patarra gozou de significativa autonomia nas decisões.
Esses fatos contribuíram fortemente para a composição da política editorial da revista e serão o foco da análise do segundo capítulo. Importa, nessa primeira etapa de exposição, analisar a revista
1 O fato obrigou a editora a imprimir em um papel diferente e de pior qualidade a edição do
mês de julho, “menos branco e menos brilhante que o papelRealidade” como declara o editorial do mês de julho de 1966: “Esperamos que o leitor compreenda e perdoe essa solução de emergência. Estamos certos de que até setembro teremos recebido papel necessário para atender o crescimento vertiginoso de Realidade”.
em seu contexto sóciohistórico e de que maneira os fatores conjunturais repercutiram no tipo de jornalismo por ela apresentado. O período analisado compreende o intervalo de abril de 1966, início da produção regular e mensal da revista, até dezembro de 1968, quando a equipe inicial se desfez, em decorrência do quadro político que se instaurava no país antes da promulgação do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968. Durante esse período, a revista apresentou sintonia particular com o seu tempo e com a conjuntura política nacional. Dizse, aqui, particular, já que se pode considerar que o jornalismo sempre está atrelado ao seu contexto e que a notícia é sempre uma construção tributária da cultura e da sociedade em que é produzida. Em sinergia com o contexto de quebra de paradigmas instaurado na década de 1960, a revista apresentava uma proposta de jornalismo inovadora em linguagem e abordagem temática. O caráter revolucionário de Realidade equiparaa às demais formas de expressão cultural do período que igualmente contestavam modelos hegemônicos de discurso.
1.2 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DEFLAGRADOR DE REVOLUÇÕES NO JORNALISMO E NAS ARTES
1.2.1 IMAGINÁRIO E CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOTÍCIA EM REALIDADE
A revista Realidade (19661976) foi um marco na história da imprensa brasileira. Não apenas porque amplificou tudo o que era de mais pungente em seu tempo, mas também porque contribuiu para a construção da imagem de um Brasil moderno para o seus leitores ao divulgar os conceitos de uma nova moral e explorar os elementos culturais transformadores da estrutura social no Brasil da década de 1960.
Não obstante, o jornalismo da revista alcançou igualmente elementos da estrutura da ordem conservadora e autoritária. De acordo com Faro, a produção jornalística sempre reflete os elementos
conjunturais de mudança cultural ao longo de sua história, fato que se comprova através de momentos nos quais essa vinculação é bastante clara em vista da transformação da sociedade brasileira (1998, p. 19). A publicação representou uma dupla face de ação transformadora, refletindo e interferindo ao mesmo tempo no processo de mudanças socioculturais no país durante os revolucionários anos 60.
Em síntese, Realidade foi produto de uma situação social na qual as expectativas da classe média urbana, seu público alvo, gravitavam em torno de uma vontade de modernização, embora ainda atrelada aos valores tradicionais. Isso significa que a publicação da Abril desempenhou papel de difusor do imaginário social do período, abarcando parte significativa das vertentes libertárias de pensamento referentes àquele momento.
De acordo com Baczko, o imaginário social é um arcabouço de referências simbólicas relacionadas a uma determinada cultura, época ou sociedade, às quais as coletividades recorrem para obterem certa representação de si, estabelecerem seus valores e crenças, suas modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar. Usandoo também para determinar as suas formas de funcionamento social,
O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e sociais. O imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele tornase o lugar e o objeto dos conflitos sociais. (Baczko, 1985, p. 309)
O imaginário social simboliza esta “ordem do mundo” na qual as sociedades balizam um conjunto de valores significantes para a manutenção da própria vida em sociedade. Para Castoriadis, o papel das significações imaginárias é fornecer respostas para perguntas como:
Quem somos nós como coletividade? Quem somos nós uns com os outros? Onde e em que somos nós? Que queremos, que desejamos, o que nos falta? Sem resposta a estas perguntas não existiria mundo humano, nem sociedade ou cultura e tudo iria parecer um caos indiferenciado. As respostas a elas não podem ser encontradas nem na realidade nem na racionalidade, já que a sociedade tornase algo fazendose e pensando se. Isso significa que:
A sociedade se constitui fazendo emergir uma resposta de fato a essas perguntas em sua vida, em atividade. É no fazer de cada coletividade que surge o sentido encarnado a resposta a essas perguntas, é esse fazer social que só se deixa compreender como resposta às perguntas que ele próprio coloca implicitamente. (Castoriadis, 2000, p. 177) As significações imaginárias que instituem a sociedade estão em constante processo de estruturação e reestruturação provinda do próprio ato de se pensar como coletividade por parte dos indivíduos. O parecer de Castoriadis remete à efetividade dos indivíduos na instituição imaginária da sociedade, já que “A instituição da sociedade é instituição do fazer social e do representar/dizer social (Castoriadis, 2000, p. 405). Segundo Baczko, o imaginário social tornase inteligível e comunicável através da produção dos discursos “nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa linguagem” (1985, p. 311). Isto é, os discursos são responsáveis tanto pela difusão quanto pela construção deste imaginário social. No caso dos discursos midiáticos, dos quais o jornalismo é um exemplo, este imaginário social é capturado da sociedade e amplificado. O conceito de imaginário social, dessa forma, entra em consonância com as Teorias Construcionistas do jornalismo. Nelas, preconizase que a notícia é uma construção social, isto é:
As notícias são histórias que resultam de um processo de construção, linguística, organizacional, social, cultural, pelo que não podem ser vistas como
o espelho da realidade, antes são artefatos discursivos não ficcionais que fazem parte da realidade e ajudamna a construir e reconstruir. (Sousa, 2004, p. 125)
Tendo em mente que a notícia é um artefato tributário da cultura, da sociedade e da história em que foi construída, é patente que o jornalismo de Realidade tenha repercutido a conjuntura do Brasil na década de 60, bem como tenha afetado a instituição imaginária social daquele período. Como atesta o jornalista Carlos Azevedo: “O tempo todo a revista era muito ligada nas coisas que estavam acontecendo e as coisas que estão acontecendo não só influenciam a revista como a revista em seguida influencia essas coisas, esses movimentos todos” (p. 4, anexo 5). Opinião similar tem José Hamilton Ribeiro, que também vê associação entre a fórmula adquirida pela revista Realidade e a conjuntura:
Realidade surgiu no ano de 66. E nos anos 60 aconteceram tudo o que tinha que acontecer no mundo. Era muita agitação cultural, existencial. Movimentos de estudantes, movimentos de operários, a “pílula”, Beatles, movimento feminista... Aqueles tempos eram tempos de efervescência intelectual e existencial e isso se refletia na gente e agente refletia isso na revista. (p. 2, anexo 3)
A década de 1960 no Brasil e no mundo foi particularmente um momento propício à quebra de paradigmas e às manifestações contraculturais. Neste momento histórico, as principais bases de sustentação da sociedade tradicional existentes antes da Segunda Grande Guerra (19391945) foram vigorosamente abaladas. Todos os tropos contraculturais ocuparam as ruas em alto e bom som ao mesmo tempo, isto é, foi um período em que expressão e comportamento fundiramse com uma crescente sensação de responsabilidade coletiva pelo fim das guerras, da pobreza e da injustiça. Havia um desejo súbito de criar uma nova sociedade que fosse, ao mesmo tempo, humana e arrebatadora (Goffman, Joy, 2007, p. 272).
Inúmeros focos de revolução começaram a explodir em todos os âmbitos sociais. Os sistemas capitalista e socialista foram questionados. O primeiro por favorecer a exploração e a concentração de renda, principalmente nos países subdesenvolvidos. O segundo pelo totalitarismo e pela tirania desenfreados. As estruturas familiares tradicionais foram questionadas no que diz respeito à submissão feminina e à inferiorização moral e intelectual do jovem. Os tabus sexuais, tema bastante delicado para a época, foram combatidos em várias frentes, tais como o sexo antes do casamento, o homossexualismo e a sexualidade feminina. Enfim, todo tipo de repressão à natureza humana e conservadorismos ligados ao status quo social foram alvo de discussões e combates, que iam às vias de fato nas ruas, tornadas campos de batalha.
O progresso das sociedades capitalistas ocidentais, aliado ao estabelecimento de uma Indústria Cultural, que, de certa forma, estimulou o conflito de gerações, criou um terreno propício para o desenvolvimento do que foi uma marca dos anos sessenta do século XX: a explosão da contracultura. Contudo, essa vertente de pensamento não era uma novidade. Nos Estados Unidos remontava à denominada geração beat da década de 1940. Importa dizer que idéias que contestavam o estilo de vida nas sociedades capitalistas vieram em um processo de crescimento vertiginoso até eclodirem nos anos 60.
São muitos os exemplos de fatos e conflitos que demonstram esse alastrar dos movimentos contraculturais pelo mundo durante o período. O ano de 1968 concentrou uma série de acontecimentos que concretizavam esses ideais. O mês de maio de 1968, na França, foi o mais notório entre eles. Ele começou com manifestações estudantis nas universidades francesas de Nanterre e Sorbonne. O estopim da insurreição estudantil foi a rigidez moral do sistema educacional e logo as manifestações se espalharam como rastilho de pólvora para outras instituições de ensino, envolvendo inclusive a classe operária em uma grande mobilização.
Nos Estados Unidos, inúmeras manifestações vinculadas à Nova Esquerda e aos hippies, eclodiram em virtude da defesa dos direitos civis dos negros, e da emancipação das mulheres e contra as
atrocidades da guerra no Vietnã. Entre os protestos contra esse conflito, o mais marcante foi o do Central Park, em Nova York, que reuniu inúmeros manifestantes em abril deste mesmo ano de 1968.
Nos países da América Latina, os confrontos envolveram estudantes e intelectuais que se posicionavam contra as ditaduras e a favor de reformas educacionais. No México, na Argentina, Uruguai, Colômbia e Venezuela, estudantes ocuparam universidades, decretaram greves e se envolveram em intensos confrontos com policiais e forças do Exército, o que gerou um intenso e progressivo processo de repressão.
Na então Tchecoslováquia, um programa de reformas políticas concebido para humanizar o sistema de governo, desagradou a então União Soviética. Denominado "Primavera de Praga", propunha uma série de mudanças que descaracterizariam o sistema socialista e incluía o restabelecimento da liberdade de imprensa. A exURSS decidiu coibir a emancipação ideológica da Tchecoslováquia e assim, em novembro, vários cidadãos, que protestavam nas ruas de Bratislava, foram duramente reprimidos pelas forças do exército do Pacto de Varsóvia (Aliança Militar dos Países do Leste Europeu).
No Brasil, havia um clima de efervescência revolucionária nos âmbitos artístico e político, ocasionado pelo rescaldo da onda nacionalista e desenvolvimentista vivida durante o período de intervalo democrático. Era um momento em que várias forças se aliavam: i) nas cidades, o movimento operário, que havia crescido desde o início da década de 50 e levado a um fortalecimento da sindicalização dos trabalhadores; ii) no campo, o movimento das Ligas Camponesas, que suscitavam a questão da reforma agrária; e iii) a juventude, que se mobilizava em torno da União Nacional dos Estudantes (UNE), funcionando como um catalisador do Movimento Estudantil.
Vinculados à UNE, os Centros Populares de Cultura (CPC) iriam promover iniciativas de produções teatrais, cinematográficas e editoriais, arregimentando artistas e intelectuais em torno de uma idéia de arte revolucionária. A arte engajada é também elemento aglutinador para os cineastas do Cinema Novo e para os músicos e compositores da Tropicália. Essa movimentação tem o seu auge no mês de junho de
1968, quando aconteceu no Rio de Janeiro o maior protesto contra a ditadura militar, conhecido como a Passeata dos Cem Mil, na qual participaram intelectuais, artísticas, religiosos e estudantes, dentre outros. O acontecimento em si demonstrou a aliança entre a arte e a militância política bem como o fortalecimento de um tipo de intelectual de esquerda. Analisa Heloísa Buarque de Hollanda:
Um novo tipo de artista, “revolucionário e consequente, ganhava forma. Empolgados pelos ventos da efervescência política, os CPCs defendiam a opção pela “arte revolucionária”, definida como instrumento a serviço da revolução social, que deveria abandonar a “ilusória liberdade abstratizada em telas e obras sem conteúdo”, para voltarse coletiva e didaticamente ao povo, restituindolhe “a consciência de si mesmo. (Hollanda, 1982, p.9)
As revoluções sociais e culturais explodiram durante a segunda metade no século XX e tiveram razões bem definidas para ocorrer naquele exato período. O historiador Eric Hobsbawm alia estas explosões de revolução na sociedade a um conjunto de acontecimentos modernizadores que se desencadearam em efeito cascata. Para Hobsbawm, estão atreladas a uma mesma conjuntura histórica a morte do campesinato; o aumento do número de pessoas com educação média ou superior por consequência da urbanização e industrialização das sociedades; o declínio da classe operária, em decorrência da transposição das velhas indústrias de base dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos; a entrada das mulheres no mercado de trabalho; assim como o aumento da instrução intelectual de nível superior feminino, impulsionado pelas lutas de emancipação das mulheres. O historiador ainda ressalta que, “para 80% da humanidade, a Idade Média acabou de repente em meados da década de 50; ou talvez melhor, sentiu se que ela acabou na década de 1960" (2008, p. 283).
A expansão da educação superior não significou necessariamente uma garantia de enquadramento social para inúmeros graduados. A consequência mais imediata e direta foi uma inevitável tensão entre a massa de estudantes que ingressou nas universidades e as
instituições que não estavam física, organizacional e intelectualmente preparadas para tal influxo, como aponta Hobsbawm. O fato gerou uma grande onda de insatisfação por parte dos estudantes que já eram contados aos milhões em todo o mundo. Desta forma, na década de 60 tornouse inegável que os estudantes tinham constituído, social e politicamente, uma força muito mais importante do que jamais haviam sido, o que foi comprovado em 1968 com as explosões de radicalismo em todo o mundo. Eles conseguiram expor esta problemática aos governos e à sociedade como um todo, tal como analisa Hobsbawm:
À medida que uma crescente proporção de população em idade escolar tinha oportunidade de estudar, ir para a Universidade deixou de ser um privilégio especial que já constituía uma recompensa em si, e as limitações que isso impunha a jovens adultos deixavamnos mais ressentidos. O ressentimento contra um tipo de autoridade, universidade, ampliavase facilmente para o ressentimento contra qualquer autoridade e, portanto, inclinava os estudantes para a esquerda. Assim, não surpreende de modo algum que a década de 60 se tenha tornado a década da agitação estudantil par excellence. (Hobsbawm, p. 295) A revolução social foi acompanhada pela revolução cultural, que repercutiu em transformações na estrutura familiar tradicional e em mudanças relacionadas à sexualidade, não mais relegada à posição de tabu. Estatisticamente, houve um declínio da família nuclear básica ocidental e um aumento considerável no número de divórcios, de casamentos informais, de pessoas solteiras, de mulheres que eram chefes de família, assim como cresceu o número de pessoas que manifestava sua orientação sexual declaradamente ou que optava por não ter filhos.
Durante a década de 1960 também houve uma revolução do comportamento jovem, ou seja, o avanço de uma cultura juvenil específica e extraordinariamente forte, que indica uma profunda mudança na relação entre as gerações. O crescimento desta cultura
jovem teve forte participação da Indústria Cultural, sua grande animadora e beneficiária. O público jovem se tornou um agente social independente e árduo consumidor das indústrias fonográfica, cinematográfica e de moda, além de ter se tornado alvo preferido da maioria das campanhas publicitárias. Um outro fenômeno inerente à cultura jovem foi a guinada para as culturas antes marginalizadas, ou seja, a indústria cultural voltouse para a cultura popular, sendo a explosão de popularidade do rock um bom exemplo.
Esta guinada para o popular, no mundo anglosaxão, encontra paralelo no Brasil na década de sessenta, tanto pela revalorização do samba, música de gueto inicialmente, por nomes como Chico Buarque de Hollanda, Nara Leão e Vinicius de Moraes, assim como pelo movimento Tropicalista, reconhecidamente uma manifestação artística que recolhia e readaptava os elementos da cultura kitsch, da cultura popular brasileira e da estrangeira. Lançar os holofotes para os estilos informais, não eruditos, foi uma maneira conveniente de rejeitar os valores das gerações passadas, ou de buscar uma linguagem em que os jovens podiam encontrar meios de lidar com a vida, cujas regras e valores dos mais velhos não lhes eram mais relevantes.
A conjuntura políticocultural da década de sessenta no Brasil também se destacou por intensos protestos contra a ordem conservadora identificada na época com os valores tradicionais e com o Estado autoritário. A motivação das elites intelectuais, políticas e artísticas era a modernização. O país acabava de sair de um processo de renovação e agitação cultural que começou no início dos anos 50 e foi fortalecido pela eleição de Juscelino Kubitschek à presidência da República em 1955, governo que propagou pelo país a ideologia desenvolvimentista2 e inaugurou no CentroOeste uma nova e moderna Capital Federal, Brasília. Sendo assim, o intervalo democrático entre o governo Kusbitschek e o golpe militar em abril de 1964, foi um período 2 A ideologia desenvolvimentista, com sua base populista, foi usada como um meio de garantir a estabilidade do sistema e como forte catalisador de mobilização e legitimação. Embora o desenvolvimentismo, ideologia explicitamente nacionalista, fosse eficaz em mobilizar o apoio popular, também foi muito paradoxal, pois o governo jogava com os sentimentos nacionalistas do povo e ao mesmo tempo baseava sua política econômica no influxo do capital estrangeiro. (Johnson, 1982, p. 64)
essencialmente otimista, pois se acreditava que o Brasil iria sair finalmente do seu subdesenvolvimento. Estava sendo reconhecido no exterior devido às repercussões da Bossa Nova e do Cinema Novo. As cidades estavam em pleno desenvolvimento de urbanização, o crescimento industrial expandiase e o nacionalismo era impulsionado pelas manifestações artísticas que se propunham a redescobrir criticamente a brasilidade. De acordo com a pesquisadora, Heloísa Buarque de Hollanda, viviase uma conjuntura marcada pela articulação, nem sempre estável, da nova ordem democrática, em que a intensificação do processo de industrialização enchia de otimismo o imaginário das elites que anteviam a realização do sonho do desenvolvimento econômico (1982, p. 32).
O golpe militar de abril de 1964 acontece em um momento em que preponderam a influência das estratégias militares norteamericanas vinculadas à Guerra Fria para conter o “perigo comunista” nos países da América Latina e um quadro político instável no cenário brasileiro. O golpe causou estarrecimento da classe intelectual e artística que esperava um protagonismo do povo na reação. Essa perplexidade também vai tomar a classe média pelo progressivo endurecimento do governo ditatorial com a promulgação sucessiva dos atos institucionais até o famigerado AI5. A indignação era evidente principalmente nos quatro primeiros anos, quando os setores culturais e a mídia gozavam de certa liberdade para discutir a situação de impasse vivida pelo país. Os Festivais de Música Popular Brasileira patrocinados por emissoras de TV são flagrantes desse momento. Eles demonstravam a ruptura entre a canção politicamente engajada, que trabalhava com o repertório nacional, com a música caipira e o samba, e a música que começava a se filiar a elementos estrangeiros, em especial o rock norteamericano, com a adesão à guitarra elétrica. As composições populares nesse período seguiram o caminho da canção de protesto nos moldes do protest song norteamericano, representado por Bob Dylan. No país, ela teve o auge com o musical “Opinião”, em 1964, e com o compositor Geraldo Vandré, autor de “Para não dizer que não falei das flores”, composição sedimentada em nossa cultura como símbolo de uma época.
as manifestações artísticas brasileiras no contexto da atualidade. Para os tropicalistas, a verdadeira conquista não era se opor à música importada; o interessante era consumir e reelaborar influências estrangeiras e locais, como indicava a ideologia antropofágica preconizada pelo modernista Oswald de Andrade. O teatro de “vanguarda”, representado pelo Arena e pelo Oficina, fazia coro a essas questões por meio de peças como: “O rei da Vela”, de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso Martinez e “Gota d'água”, de Chico Buarque.
Esses ideais são reiterados no Cinema Novo, que já havia sido saudado e acolhido pela crítica internacional na década anterior. A tendência do Cinema Novo era “a realização de filmes 'descolonizados', vinculados criticamente à realidade do subdesenvolvimento, capazes de traduzir a especificidade da vivência histórica de um país do Terceiro Mundo (Hollanda, 1982, p. 37)”, fato que ficará marcado com a “profissão de fé”, de Glauber Rocha, com seu manifesto da Estética da Fome. A revista Realidade não apenas iria cobrir esses assuntos como faria parte de todo esse processo de engajamento dos setores culturais, como sustenta o jornalista Carlos Azevedo:
Movimento de 68 na França, por exemplo. Não é que ele inspirou o do Brasil. No Brasil aconteceu ao mesmo tempo. O movimento estudantil estava acontecendo aqui e estava acontecendo lá. Só que lá teve uma dimensão muito maior, levou o movimento operário a se manifestar. Aqui não, porque a ditadura já tinha devastado o movimento operário quatro anos antes. Mas a gente vivia esse clima. Então você vê, na literatura era assim, no cinema era assim, na política era assim. Era uma efervescência muito grande. Nós, em Realidade, passávamos o tempo todo discutindo o que fazer para levar à população essa idéia, levar esta transformação da sociedade. E da participação, do protagonismo do povo. Você vai ver em Realidade muitas reportagens procurando mostrar as pessoas simples do povo, na sua vida, em suas dificuldades. (p. 3, anexo 5)