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Dama d’água

No documento Estudos em homenagem a Margarida Losa (páginas 107-117)

(Baglady, 1985) de Frank McGuinness

(n. 1953, Donegal, Irlanda)*

A Mulher usa as roupas pesadas de uma camponesa: calças rudes, sobretudo escuro, botas. A única marca feminina é um lenço cinzento que lhe protege a cabeça, escon- dendo-lhe completamente o cabelo. Nas costas, transporta um saco cinzento, de lã. A Mulher caminha ao longo das margens do espaço de representação.

MULHER Uma vez, vi uma pessoa afogar-se. Transportava-os nos meus braços.

Quando olhei para trás, não estava lá ninguém. Dirijo-me para a água. Este lugar está cheio de água. O rio está por todo o lado. Aqui está a margem. Quero pôr uma coisa lá dentro. Se te aproximares demasiado, podes cair. Uma vez vi uma pessoa afogar-se. Vi. Mas não contei. Conta-me agora. Conta-me à água que te levou. Atira isso lá para dentro.

A Mulher canta enquanto continua a caminhar.

Quem está à janela, quem? Quem está à janela, quem?

Um homem mau, muito mau com um saco às costas Que vem para te levar.

Quem está à janela, quem? Quem está à janela, quem?

Vai-te embora, homem mau, com o teu saco às costas, Hoje não me levas contigo.

*Esta tradução foi originalmente realizada para um espectáculo produzido pelo Ensemble – Socie- dade de Actores, em 2001, e deve muito à colaboração activa e cúmplice do encenador Nuno Carinhas. São devidos agradecimentos ao autor, Frank McGuinness, por ter autorizado graciosamente a publicação desta tradução do seu texto.

A Mulher pára.

Vai-te embora, deixa-me ficar. Não olhes para mim. Não te aproximes. Eu não estou suja. Estás a ouvir? Vai-te embora. Vou contar ao meu pai o que tu me chamaste. Ele é um homem muito respeitado neste lugar. Um homem decente. Vai mandar prender-te pelas histórias que tu contas sobre mim. Ele ouve-te. Ele ouve tudo. Vai-te embora.

A Mulher caminha.

Tive um sonho. Fui-me deitar. Quente. Aconchegada. Toda eu era sangue. A minha mãe limpou-me. O pano branco ficou vermelho. Quando estás limpa, eles assim não te conseguem cheirar. Não vêm atrás de ti. Ninguém te consegue encontrar. Só tu, sozinha.

A Mulher pára. De pé:

Quando estás sozinha, sabes tudo. Podes andar por onde te apetece. Olha para mim. Conheço este lugar como a palma das minhas mãos. (Estende as palmas das

mãos.) Estás a vê-las? Caminho em cima delas. A uma chamo casa e à outra aqui. Desta maneira não te podes perder. Repara quando as tuas mãos se encontram. Assim. É uma ponte, onde eu me demoro olhando o rio lá em baixo e as pessoas à minha volta atra- vessando a ponte para cá e para lá. Agora separo as minhas mãos. A ponte desapa- rece, mas o lugar, esse continua cá. Não tem nome porque está escrito na minha mão, e os teus dedos não conseguem falar. (Levanta os seus dez dedos.) Transporto lugares comigo. Estes são ruas. Percorro-as todos os dias a caminho do rio. Estão cheias de pessoas, também, mas eu não olho para elas. Só as transporto comigo. São a minha marca. Serão enterradas comigo. O meu pai está enterrado. Morto e enterrado. Também o transporto comigo, aqui nas minhas costas. Todos e cada um dos nós com que fiz este saco pertenciam-lhe. Enterrei tudo aquilo de que eu não precisava junto com ele. Um homem abastado, trabalhou muito para chegar onde chegou. Nunca me tocou, nunca me levantou a mão, nunca. Não tenho uma só palavra má a dizer contra ele. Jogava às cartas, mas merecia respeito. Respeita a sua memória. Só isso. Não toques no meu pai, não caminhes sobre a sua sepultura. Caminhar sobre uma sepultura é o mesmo que profaná-la. Transforma-nos em ladrões. Ladrão! Eu vi-te. Eu vi.

A Mulher caminha.

Tem cuidado por onde andas. O perigo está por todo o lado. Tudo cheio de recan- tos que não sabes o que escondem. Fecha as portas. Fecha sempre as janelas à noite. Fecha bem a tua casa. Se continuares a andar, ninguém vem atrás de ti, nem para aqui nem para casa. Podem olhar para ti, mas não vêm atrás de ti. Faço de conta que não vejo ninguém. Continuo a andar, indiferente. Deixa-os olhar. Eu não quero ninguém. Vivo na ponte. Olho para o rio lá em baixo. Vi uma pessoa afogar-se. Eu levava-o nos meus braços, começou a chorar porque abandonei a casa com ele. Quando foi isso? Não me lembro. Lembro-me que antes de partir estava a sangrar, mas de onde vinha aquele sangue todo? Não me lembro. Lembro-me da nossa casa cheia de gente. Pes- soas a conversarem, todas aquelas bocas e dentes, e vi a língua do meu pai. A rir-se, numa daquelas noites. Tinha ganho às cartas. O meu pai era um homem bom. Nin-

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guém lhe chegava aos calcanhares. Ninguém. Ninguém se atreva a dizer-me o contrá- rio. O meu pai era um senhor. Dou-lhe a minha benção. A nossa casa era branca, à noite tinha janelas pretas e a porta era vermelha. Nunca estava fechada. Éramos uma casa aberta. Durante o dia, os mendigos faziam fila à porta de nossa casa, olhando lá para dentro, para mim, para o meu pai e para a minha mãe. Um dos homens teve um ataque. Parecia um cão, um grande cão preto. Tinha água a sair-lhe da boca. Outro ou Aquele, era como ele se chamava. Eram uns pobres andarilhos. Pediam dinheiro. Lem- bro-me de grandes fatias de pão ainda quente nas suas mãos, a manteiga escorrendo do pão como o sangue de uma ferida. Aquele era aleijado. Caminhava apoiado numa muleta que tinha a forma de um homem com uma grande cabeça. A minha mãe disse- -me que Aquele era aleijado porque uma noite se embebedara e como não tinha casa vagueava pelas ruas. Uma noite encontrou o diabo. Estava tanto frio que Aquele deixou o diabo pôr-lhe a mão. Sentiu a mão do diabo a puxá-lo para o inferno. Ao pôr os pés no fogo do diabo, deu um salto tão grande para sair do inferno que deixou lá ficar parte de um pé, a arder. Era por isso que Aquele coxeava. Era por isso que quando via alguém à noite fazia o sinal da cruz, não fosse dar-se o caso de ser o diabo. Em nome do pai. E do filho. O meu pai não era o diabo. (Batida.) Eles dormiam no nosso está- bulo. Cheiravam ao gado. Palha na roupa toda. Quando se embebedavam, o Outro dava cabo d’Aquele. O Outro era mau, um bruto, mas Aquele nunca o abandonou. Nin- guém os conseguia separar. Quando Aquele morreu, o Outro grunhiu como um porco. Parecia uma mulher. Pareciam marido e mulher, dizia a minha mãe.

A Mulher pára de caminhar.

A minha mãe era casada. Era uma mulher casada. O meu pai e a minha mãe viviam na nossa casa. Branca, com uma porta vermelha, e com janelas pretas por todo o lado. Até a porta tinha uma janela. As janelas eram de vidro. Às vezes podias olhar para a janela e ver o teu rosto. Um rosto agitando-se, mas não como no rio, engolindo-te para sempre. Podias tirar o rosto da janela. Um dia olhei através do meu rosto na janela e vi o meu pai e a minha mãe. A minha mãe não estava lá, e o meu pai estava a mexer- -se. Chamou-me pelo nome. Era o nome da minha mãe. A minha mãe. A minha mãe deitava cartas. Lia a sorte das pessoas. Os seus rostos contavam-lhe histórias.

A Mulher caminha.

Consigo caminhar durante quilómetros sem coxear. Nunca paro. Olha as minhas mãos, fazem uma ponte quando as junto. Por baixo delas há água a correr. Fico de pé em cima da ponte e observo. E vejo. Vejo o rio. Corria ao lado de nossa casa. Quando estava junto ao rio, a nossa casa parecia-me muito longe. Era onde eu morava, e o meu filho morava no rio. Senta-te, eu vou-te contar da casa.

Do bolso do casaco, a Mulher tira uma fatia de pão e uma garrafa cheia de um líquido vermelho (refrigerante/sumo). Senta-se, a comer e a beber.

Tínhamos luz eléctrica em casa. Uma cor diferente em cada quarto. Da que eu gos- tava mais era do vermelho. A mesma cor desta bebida. Não, o vermelho nunca é igual, depende sempre de como e onde o vemos. Com o sangue é a mesma coisa, quando

se faz um corte muito grande na cabeça. A luz eléctrica também tem um vermelho dife- rente. Nunca ficava escuro quando acendíamos a luz. Podíamos olhar para fora pelas janelas, mesmo à noite. E podíamos olhar para dentro. Eu costumava respirar para o vidro e escrever os nomes da minha mãe e do meu pai no vidro. De manhã nunca lá estavam, os nomes. O sol apagava-os. Também era vermelho. Mas uma pessoa não pode beber o sol, nem o sangue, nem a luz eléctrica. Isto é a única coisa que eu bebo. E a única coisa que como é pão branco. Gosto destas cores. É preciso dinheiro para comprar as cores. O meu pai tinha dinheiro. Maços de notas em cima da mesa ou a cheirarem-lhe nas mãos. Às vezes havia o retrato de uma mulher no seu cheiro. Pare- cia uma louca, vestida de forma muito estranha, toda de verde. Uma dama verde. Segu- rei-a uma vez nas minhas mãos, da única vez que me confiaram algum dinheiro, porque o dinheiro era uma responsabilidade do homem. Quando te casares, assegura-te que é com um homem que conheça o valor do dinheiro. Se não te casares e tiveres dinheiro, então desfaz-te dele. Desfaz-te dele porque o dinheiro é uma coisa de homem. Observa o modo como o dinheiro avança para as mãos de um homem. Notas de cinco, dez, em cima da mesa. Eu não o quero. Cheira mal. Afasta-o de mim. Não te aproximes. Vou fazer queixa de ti. Tínhamos luz eléctrica em nossa casa. Iluminava a sala toda. Eu con- seguia ver tudo. Conseguia ver o dinheiro. Não o quero. Não apagues a luz. Não me deixes na sala às escuras. Se não conseguir ver, não consigo falar, e se não conseguir falar, não consigo contar. E eu vou contar, vou contar.

A Mulher enterra o rosto nas mãos, depois fala com as mãos.

O meu pai deu-me dinheiro. Onde está? O que é que eu fiz com ele? Será que o perdi? Onde é que o poderia ter gasto? Achas que devo atirá-lo ao rio? Como é que me livrei dele? Respondam-me. Vocês sabem. Vocês estavam lá. Perderam a língua? Também perderam isso? Vou dar cabo de vocês. Corto-vos a língua, se não me disserem o que me aconteceu. Contem-me tudo. Contem. Batam palmas se me forem contar. Batam. Batam.

A Mulher bate palmas.

Dirigias-te para a água. Levavas alguma coisa nestas mãos. Tentámos dizer-te para não o fazeres. Não conseguias ouvir o que levavas contigo. O teu pai estava contigo. Imaginando que o levavas a ele. Por isso, libertou-se dos teus braços e dirigiu-se para o rio, transformando-se num cão preto, sacudindo a água do pelo. Estendeste-nos na direcção do cão, mas ele não parou. Lembras-te? Já podemos parar de contar?

Pára de bater palmas. A Mulher levanta-se subitamente.

Vai-te embora. Deixa-me. Leva esse cão embora. Odeio cães. É um assassino. Salta para cima de ti e devora-te. Leva-o embora. Vermelho. Vermelho. Fora da minha vista. Pé. Mão. Agitando-se no rio. Não o deixes aproximar-se. Enxota-o. Estômago. Sangue. Pescoço. Deixou de se mexer. Foi-se embora. Diz que o cão se foi embora. Não o deixes vir atrás de mim. Dou-lhe um tiro. Afogo o canalha. Quero paz. Eu mereço paz. Não me interessa o que aconteceu, só quero paz. Tira isto da minha vista.

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A Mulher desfaz o pão em bocados e espalha-os à sua volta.

Dissolve-te.

A Mulher senta-se.

Quando nos arrancam uma coisa, é para nunca mais. Quando te roubam uma coisa, nunca mais a consegues recuperar. Podes tentar, mas que te adianta? Olha, estás a ver aquele cão que continua atrás de mim, achas que ele anda à procura do quê? Será que quer comer? Não tenho nada para lhe dar. Ele sabe, mas achas que se vai embora? Não. Então, o que é que ele quer? Estará à espera que eu lhe diga alguma coisa? Ou estará ele a dizer-me a mim? Estás a pedir ou a dizer? É disto que estás à procura?

A Mulher tira do bolso um baralho de cartas. Ajoelha-se. A Mulher ergue o rei de ouros.

Aqui está o teu começo. É sempre um sinal de água. Seja qual for a carta, diz sempre a mesma coisa. Porque é que te afastas de mim? Tens medo da água? Tens medo do nascimento? Tens mais medo do nascimento do que da morte? Ou será que alguém morreu em águas agitadas? Tens a mão a tremer. Estás a tentar apanhar o quê?

A carta cai da mão da Mulher.

Ouviste-a cair? O que se partiu? Pode ter sido o teu coração, pode ter sido a tua cabeça. Fosse lá o que fosse, o som era de partir, como um vidro a cair no chão. Podes tentar saber? Diz-me quem está ali, à espreita? Consegues ver? Eu vejo o reflexo de um homem. É parecido contigo. Podia ser o teu pai. Espera. Está outra pessoa com ele, a seu lado. É outro homem. Um homem mais jovem do que tu. Poderão ser pai e filho? Posso estar enganada, mas têm algumas parecenças. E o mesmo nome. Um nome de família. Tu não tens nome. Não és casada. Não tens família. Poderão estes homens ser irmãos? Nesse caso, serão amigos agora? Porque é que um deles está encharcado? Está a chorar? E o outro, está morto? Mas qual deles está a chorar? Tem cuidado com a água.

A Mulher ergue outra carta.

O cinco de paus. Uma carta má. Não te preocupes, já passou. É a juventude. Mas representa o sofrimento, significa dor. Cinco feridas negras de dor. Estão a cicatrizar porque são pretas, mas tens uma coisa para confessar. Aconteceu há muito tempo atrás. Alguém fez uma coisa e tu também. Houve alguém que te disse para tu não dizeres nada, ou foste tu que imaginaste que era a tua voz? Quando tentaste contar, talvez nin- guém te tenha acreditado, por isso deixaste de acreditar, embora tenhas assistido a tudo?

Pousa a carta.

Talvez as cartas te digam que a culpa não foi tua. Perdoarás. Esquecerás. Acontece- -nos a todos. Esquecer, digo eu. Viver é isso. Esquecer. Eu acredito em ti. Eu perdoo-te.

A Mulher ergue a rainha de copas.

Esta é a dama de copas. Sem rei, nem valete. Sozinha, esta é uma carta de sorte, porque mostra que tens bom coração, um coração de mulher. Faz perguntas inespera- das. Sabe que tens alguma coisa escondida no teu coração, um segredo que ela pode- ria adivinhar, mas não o fará. Tudo o que dirá é que também ela teve um filho. E que o levaram. Disfarçada de mendiga, a dama deixou o seu reino em busca do filho. De cada vez que chegava ao lugar onde esperava encontrá-lo, sempre a mesma resposta. O teu filho está morto, o teu pai matou-o. Ela não podia dizer o meu filho é o meu pai e o meu pai é o meu filho. Não podia dizer, mas isso era a única coisa que possuía, a verdade. Ela quer que tu a recebas. Ela conhece-te. Olha. Olha quem vem a seguir.

A Mulher ergue a rainha de espadas.

Uma dama negra. Amarga. A carta do silêncio. Mantém-se à distância porque está zangada, e ninguém sabe qual é a origem dessa ira. Tem o rosto de um cadáver. Será mesmo uma mulher? Subsistem algumas dúvidas. Lembra-te alguém? Recordas-te da dama de copas? Ela tinha um filho. Era parecido? Terá sido por isso que o pai o matou? Estás a ver a cara desta aqui? Tem uma marca. Pode ser a marca de um punho. Esta mulher recebeu um golpe que a silenciará para sempre, mas estará contigo até ao fim dos teus dias.

A Mulher exibe o sete de ouros.

O sete da sorte, e este é de ouros. É casamento. Já sei quem vem a seguir. Um homem de negro.

A Mulher exibe o valete de paus.

Estás a ver, já sabia que íamos ter um padre nesta história. Quando um padre te pede para fazeres uma coisa, não podes dizer que não. Tanto podemos encontrá-lo num funeral como num casamento; pouca diferença há entre uma coisa e outra, casa- mentos e funerais, estão ambos ligados a dinheiro. Deixa-me ver de qual se trata aqui.

A Mulher olha para o ás de espadas.

Oh, meu Deus, vejo morte. Vais a um funeral. O funeral de uma jovem ou de uma criança. É de certeza alguém jovem. Não entres em pânico. Olhando para as cartas que saíram, diria que as notícias são boas. Não devia ter falado na morte. Mas eu vi-a. E aquilo que vejo tenho de contar. Tenho de dizer.

A Mulher começa a dispor as cartas no chão seguindo determinados padrões.

Uma vez conheci um homem, Deus o tenha em descanso. (Levanta uma das sete

cartas.) Aqui está ele.

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Enquanto conta a história dele, a Mulher manipula as cartas como personagens.

Seria de pensar que ele tinha tudo. Era quem mandava lá em casa. A mulher e a filha caminhavam com medo do seu corpo e da sua força. Tinha tanta força que ainda queria mais. Queria a mulher e queria a filha. Às vezes, à noite, transformava-se num cão preto e saía para caminhar. Calcorreava quilómetros, caminhava até cair de can- saço, caminhava para o seu túmulo. Quando o homem morreu, o cão sobreviveu-lhe. Enlouqueceu de dor. Sabia quem era o senhor e um dia este cão agarrou a filha do homem pela garganta. Ela ficou histérica, mas o cão não a largou. Acorrentou-a. E depois, uma noite, o cão transformou-se novamente no homem. Quando falou com a filha, ela pensou que ele era o diabo. Ele disse-lhe que ela era a sua mulher. E que tinha regressado por causa dela. O choque foi tão grande que ela deu um salto, mas como estava acorrentada e o salto foi tão violento, arrancou a cabeça do corpo dei- xando atrás de si a pele e os ossos. O homem chamou o cão com um assobio e o cão apareceu a correr. Lançou-o sobre o corpo da filha e o cão comeu tudo o que restava dela. (Batida.) O primeiro homem que eu vi nas cartas, o homem junto à água, o homem do teu começo, o homem com família, tenho agora a certeza que era o meu pai.

A Mulher recolhe rapidamente as cartas, junta-as às outras, baralhando-as rapi- damente.

Vejo o cinco de paus. Vejo a dama de copas, ela conhece a dama de espadas. Vejo um homem de negro. Esse homem não é o teu pai, mas tu tens de lhe chamar pai. A dama de espadas começa a sorrir. Ela pensa que é o teu pai. O cinco de paus é amor, mas vai trazer-te dor. Amarás o teu filho, mas tens de amar o teu pai. Em nome de. Em nome de. Meu Deus, ele está morto. O meu pai está morto.

A Mulher uiva. Do seu saco tira uma corrente de ferro. Bate violentamente com ela no chão à sua volta.

Sai da minha frente. Não estás a ouvir? Tiro-te do meu caminho com este rapaz se não te mexeres. Eu sou assim. Isto é o meu punho. Ensinar-te-á a respeitar o que eu digo. Olha por onde eu ando. Estou a caminho de um casamento. Este é o meu ves- tido. Custou uma fortuna. Estás a ouvir? É tudo o que possuo, por isso tem tanto valor. Deixaram-mo em testamento. Pessoas respeitáveis. Um homem bom. Uma boa mulher. Eu dei ao mundo uma criança boa.

A Mulher canta:

Quem está à janela, quem? Quem está à janela, quem?

A Mulher recolhe a corrente nos seus braços.

É teu. Olha bem para ele. É ele aqui à tua frente. Tanto teu como meu. Veio ver-te. Pega nele. É teu. (Deixa cair a corrente.) É o meu corpo. É o corpo da tua mãe. A tua mãe também está morta. (Apalpa as argolas da corrente.) Em nossa casa há um quarto

feito de janelas. Não me é permitido entrar, nem mesmo para olhar para fora. Mas eu consigo vê-lo claramente. É onde eles dormem, a minha mãe e o meu pai. O quarto só aparece quando eles estão deitados. Conseguem alterar a forma de toda a casa. Têm magia. Às vezes, a minha mãe é o meu pai e o meu pai também é o meu pai. Às vezes, transformam-me ora num, ora noutro, quando pensam que eu não sei o que eles estão a fazer, mas eu sei. Sei sempre. Observo-os. Vejo-os através da janela. De pé no pátio,

No documento Estudos em homenagem a Margarida Losa (páginas 107-117)

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