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Estudos em homenagem a Margarida Losa

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Academic year: 2021

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Ficha Técnica

Título: Estudos em Homenagem a Margarida Losa Organização: Ana Luísa Amaral e Gualter Cunha Edição: Faculdade de Letras da Universidade do Porto Ano de edição: 2006

Concepção Gráfica: Maria Adão

Composição e impressão: Rainho & Neves, Lda. – Santa Maria da Feira N.º de exemplares: 300

Depósito Legal: 236733/05 ISBN-10: 972-8932-12-X ISBN-13: 978-972-8932-12-1 ISSN: 1646-0820

Os artigos publicados são inteiramente da responsabilidade dos seus autores.

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Índice Geral

Nota dos Organizadores . . . 7 Tábua Bio-bibliográfica

Margarida Lieblich Losa . . . 9 Testemunho para Margarida

Maria Alzira Seixo . . . 13 Henry Miller. Pintura e escrita. Algumas notas breves em torno

de To paint is to love again

Diogo Alcoforado . . . 15 Vislumbres fotográficos em “Viewfinder”, de Raymond Carver

Diana Almeida . . . 25 “Somethings cannot be taught”: criatividade e imaginação em The Professor’s House

Isabel Alves . . . 35 Afinidades electivas (cinco poemas: tradução)

Ana Luísa Amaral . . . 45 O sussurro e o grito em Mary Wollstonecraft

A. João Seabra do Amaral . . . 53 Voices of Absorption: reading Karl Kirchwey’s A Wandering Island

Mário C. Fernandes Avelar . . . 65 Do Modernismo em William Faulkner:As I Lay Dying

Carlos Azevedo . . . 71 João Cristino da Silva e o tema da paisagem na literatura portuguesa

de meados do século XIX

Helena Carvalhão Buescu . . . 99 Dama d’água (Baglady, 1985) de Frank McGuiness (n. 1953, Donegal, Irlanda)

Paulo Eduardo Carvalho . . . 107 “Chorar é coisa tão pouca” – Emily Dickinson

Maria Helena de Paiva Correia . . . 117 Uma Filosofia para a Faculdade de Letras

Gualter Cunha . . . 119 “Por vozes nunca dantes ouvidas”: A viragem pós-colonial nas ciências humanas Jeroen Dewulf . . . 131 A Story with a Twist: Cunningham responde a Woolf – Mrs. Dalloway e The Hours

Maria de Deus Duarte . . . 141 “To be, or not to be, is still the question”: Identity and “Otherness”

in D. H. Lawrence’s Work

Isabel Fernandes . . . 155 “Manacled to a rock he was”: Exhausted Patriarchy in Between the Acts

Luísa Maria Rodrigues Flora . . . 169 A inveja nas relações sociais e familiares em The Mill on the Floss

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Edgar Allan Poe in Portuguese: A case-study of “Bugs” in translated texts

Margarida Vale de Gato . . . 195

Hamlet: a peça e o livro

Rui Carvalho Homem . . . 213 Justice or Iniquity?: Lei e carnaval em Measure for Measure

de William Shakespeare

Daniela Kato . . . 227 “America Again?” Locating “Global Culture”

Martin A. Kayman . . . 239 A metáfora da peste na obra de Charles Brockden Brown

Maria Antónia Lima . . . 251 Cartografias do Silêncio

Ana Gabriela Macedo . . . 261 Mestiçagem, linhagem e sexo nos romances de Rudolfo Anaya

João de Mancelos . . . 267 Duplos e metades: funções da complementaridade na construção

da personagem queirosiana

Rosa Maria Martelo . . . 275 Entre o poder da palavra e a palavra do poder: A importância

da imprensa na ficção histórica pós-moderna

Adriana Alves de Paula Martins . . . 285 Katherine Vaz e a re-inscrição de Mariana Alcoforado na história literária

Ana Paula Coutinho Mendes . . . 293 Vestida para matar:The Unvanquished

Paula Mesquita . . . 309 O Golem

Joana de Mello Moser . . . 323 Emerson and the Gist of The Conduct of Life

Joseph Eugene Mullin . . . 337 Viagem, demanda e regeneração social em The Italian, de Ann Radcliffe

e em Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano

Alexandre Dias Pinto . . . 349 O silêncio em Samuel Beckett

Maria Margarida C. P. Costa Pinto . . . 361 The Self and the World or the Spirit of America in Walt Whitman’s “Song of Myself” Maria João Pires . . . 367

Todos os Nomes: José Saramago e a poesia lírica

Maria Irene Ramalho . . . 377 Essa rara coisa que somos numerosa e una

José Eduardo Reis . . . 389 Stevens and Pessoa/ Caeiro: Poetry as “Degree Zero”

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A figura do gato como capa para considerações mais profundas: Lope de Vega, E. T. A. Hoffman, T. S. Eliot

Maria Cândida Zamith Silva . . . 423 Absurd Language in the Theatre and Arts in the 20th Century

Filomena Aguiar de Vasconcelos . . . 437 In the Gap: Space, Language and Feminine Roles

in The Playboy of the Western World

Mary Gualtnev Vaz . . . 447 A verdade do socialismo segundo William Morris

Fátima Vieira . . . 459 Resumos/ Abstracts . . . 469

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Nota dos organizadores

A morte é uma curva na estrada. Morrer é só não ser visto.

Fernando Pessoa Margarida Lieblich Losa foi um ser humano extraordinário. A sua actividade de docente e investigadora na Faculdade de Letras do Porto estendeu-se durante vinte e quatro anos e as suas qualidades como colega e amiga foram sempre consentâneas com o rigor, o empenho e a dedicação que colocou quer nas aulas, quer na investiga-ção, quer ainda na participação no funcionamento da Escola. Quem a conheceu não pôde ficar imune à sua influência. Quem com ela mais privou não pode deixar de se sentir, ainda hoje, numa situação de privilégio por ter podido partilhar da sua amizade.

Margarida Losa acreditava nas possibilidades da acção individual como forma de transformação das coisas e das pessoas e, por isso, nunca se furtou a manter, dentro do meio académico, uma postura de idoneidade e intervenção cívico-política que necessariamente influenciou as próprias políticas universitárias. Foi docente de várias disciplinas na FLUP, onde exerceu também o cargo de Presidente do Conselho Peda-gógico. Uma das grandes responsáveis, em Portugal, pela implementação da Literatura Comparada (tendo sido, durante vários anos, Presidente da Direcção da Associação Portuguesa de Literatura Comparada), figura altamente respeitada nos meios académi-cos portugueses e internacionais, Margarida Losa não perdeu nunca de vista o exercí-cio da solidariedade e da humildade. A curiosidade intelectual, o interesse em desco-brir e estudar temas novos, a dádiva aos outros (fosse a colegas, a jovens assistentes, ou a alunos) foram características que pautaram a sua vida académica e pessoal.

Com esta colectânea, o Departamento de Estudos Anglo-Americanos da FLUP vem prestar a Margarida Losa uma homenagem que necessariamente ficará sempre aquém do devido. Esta homenagem pretende ser uma maneira de a recordar, sobretudo junto das gerações de docentes mais jovens, que não tiveram o privilégio de a conhecer. A colectânea reúne ensaios e textos que tocam as áreas em que mais trabalhou: a Litera-tura Inglesa, a LiteraLitera-tura Norte-Americana e a LiteraLitera-tura Comparada. Porque se revelava impossível organizar tematicamente os vários textos, os organizadores entenderam que a melhor forma de os apresentar ao público seria seguir a ordem alfabética. Uma excepção foi aberta para o texto de abertura, da autoria de Maria Alzira Seixo, por se tratar de um poema evocativo em memória de Margarida Losa. Para além dos ensaios, há a assinalar a presença de algumas traduções, que nos parecem encontrar justificação na própria génese do que é a literatura comparada: uma área de troca, de hesitação e re-visitação de textos e contextos diversos.

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Queremos deixar o nosso agradecimento a todas e a todos os que colaboraram nesta antologia. Ao Conselho Directivo da FLUP desejamos agradecer o apoio finan-ceiro que permitiu a sua publicação. Uma referência especial a Marinela Freitas (que, por se encontrar a iniciar a sua dissertação de doutoramento em Literatura Comparada, se tornou também, de alguma forma, discípula de Margarida Losa), pelo trabalho de organização, revisão e formatação dos textos.

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Margarida Lieblich Losa

(31 de Março de 1943 – 25 de Janeiro de 1999)

Tábua Bio-bibliográfica

Habilitações académicas:

1965 – Formatura em Filologia Germânica, Univ. de Lisboa

1967 – Grau de Mestre ("Master of Arts") em Literatura Anglo-Americana, Univ. of

Rhode Island, Kingston, RI, USA.

1971 – Licenciatura em Filologia Germânica, Univ. de Lisboa (Tese na área da

Lite-ratura Inglesa).

1988 – Grau de Doutor ( Ph. D.) em Literatura Comparada, New York University, New

York, NY. USA.

1988 – Equivalência ao Grau de Doutor em Literatura Norte-Americana, Univ. do

Porto.

1995 – Provimento definitivo como Professora Associada da Faculdade de Letras da

UP.

Actividades lectivas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto: 1975/77 – Assistente estagiária. Docente de Introdução aos Estudos Literários,

Socio-logia da Literatura e Literatura Comparada.

1977/78 – Assistente. Docente de Introdução aos Estudos Literários e Literatura

Com-parada.

1978/81 – Equiparada a Bolseira. 1981/83 – Assistente. Co-regente e docente de

Lite-ratura Inglesa I.

1983/86 – Assistente. Co-regente e docente de Cultura Inglesa. 1986/89 – Assistente. Co-regente e docente de Literatura Inglesa I.

1989/94 – Professora Auxiliar. Regente e Docente de Literatura Inglesa I e Literatura

Comparada.

1992/94 – Co-responsável pela criação do Curso de Mestrado em Estudos

Anglo-Ame-ricanos. Docente de três seminários nas áreas do romance do séc. XIX, da cultura dos sécs. XVIII e XIX e da narrativa do séc. XX.

1994/95 – Professora Associada. Regente e docente de Literatura Inglesa I.

Responsá-vel por um seminário de mestrado na área do romance e correntes ideológicas do séc. XIX.

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1995/96 – Licença sabática.

1996/97 – Professora Associada. Regente e docente de Literatura Inglesa I.

Responsá-vel por um seminário de mestrado em cultura anglo-americana ("Utopia, Distopia e Natureza Humana, sécs. XVIII, XIX, XX").

1997/98 – Professora Associada. Regente e docente de Literatura Inglesa e Literatura

Comparada. Responsável por um seminário de mestrado de orientação de teses, e orientadora de cinco teses de mestrado.

Outras actividades na Faculdade de Letras do Porto: 1975/99– Membro do Instituto de Estudos Ingleses.

1990 – Membro da Comissão Organizadora do Encontro Comemorativo do 150º

Ani-versário do Nascimento de Thomas Hardy, Porto, 30-31 de Out.

1995/98 – Presidente da Direcção do Instituto de Estudos Ingleses. Associações profissionais e científicas:

1974/99 – Ass. Int. de Literatura Comparada (ICLA/AILC). 1979/99 – Ass. Port. de Estudos Anglo-Americanos (APEAA). 1987/99 – Ass. Port. de Literatura Comparada (APLC). 1989/99 – European Society for the Study of English (ESSE). 1990/99 – European Association for American Studies (EAAS).

Cargos exercidos nas referidas associações: 1989/91– Presidente da Direcção da APEAA.

1989/91 – Membro (por inerência) da Direcção da ESSE. 1987/93 – Membro do Conselho Fiscal da APLC.

1991/94 – Membro do Conselho Executivo da ICLA/AILC, eleita em Tóquio. 1992 – Presidente da Comissão Organizadora do XIII Encontro do APEAA, Porto, 19 a

21 de Março.

1993/96 – Presidente da Direcção da APLC.

1994/97 – Membro do Conselho Executivo da ICLA/AILC (2° mandato), eleita em

Edmonton, Canadá.

1995 – Presidente da Comissão Organizadora do II Congresso da APLC, Porto, 3 -6 de

Maio.

1996/99 – Presidente da Direcção da APLC (2° mandato).

Cargos exercidos no âmbito da gestão da Universidade: 1987/89 – Vice-Presidente do Conselho Pedagógico da FLUP. 1989/91 – Presidente do Conselho Pedagógico da FLUP.

1989/91 – Membro (por inerência) do Senado da UP e da sua Comissão Pedagógica. 1991/92 – Membro eleito da Comissão Cultural do Senado da Universidade do Porto.

Dissertações académicas:

1971 – "As Trevas e o Romance Women in Love: Perspectivas para um Estudo da Obra

de D.H. Lawrence". Diss. de Licenciatura em Filologia Germânica. Lisboa: FLUL.

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1988 – "From Realist Novel to Working-Class Romance: An Introduction to the Study

of the Brazilian, Italian, and Portuguese New Social Realist Novel, 1930-1955, in light of New Critical Theory on Realism, Fiction and Reader-Response". Diss. de Doutoramento em Literatura Comparada. Nova Iorque: NYU. 402 páginas. (Publ. Michigan Microfilms.)

1994 – "Literatura Inglesa I: Programa, Conteúdos, Métodos." Concurso para Professor

Associado do 3° Grupo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Publicações:

1971 – "D. H. Lawrence: A Secondary Bibliography for Portugal". Em colaboração. D.

H. Lawrence Review. no. 4. pp. 314-317.

1973 – "Tempos no romance de Almeida Faria”, Humboldt, no. 28. pp. 62-72. 1975 – "Fernando Pessoa, the saudosista". Luso-Brazilian Review. no. 12. pp. 186-212. 1978 – Tradução do alemão de A Teoria Poética de Fernando Pessoa de G. R. Lind.

Porto, 1978. Reeditado em Estudos sobre F. Pessoa do mesmo autor. Lisboa, 1981. pp. 13-346.

1981 – "Don Juan, ameaça do patriarcado", Colóquio/Letras, nº 64. pp. 10-20. 1982 – "A desumanização da arte e da crítica: Extrapolações a partir de Ortega, Lukács,

Barthes e Marcuse", Teoria da Literatura e da crítica. Lisboa: F. C. Gulbenkian. pp. 225-232.

1982 – "The collective hero in the new social realist novel: From Zola and Gorky to

Pratolini, Amado and Redol", The Evolution of the Novel. Innsbruck. pp. 225-232.

1984 – "Para que serve o romance: Empenhamento, escapismo e catarse",

Humani-dades(FLUP) 4. pp. 51 -60.

1986 – "A(s) qualidade(s) e a(s) quantidade(s) do ensino do Inglês em Portugal". Em

colaboração. Os Estudos Anglo-Americanos e o Ensino do Inglês em Portugal:Actas

do VII Encontro da APEAA. Ofir. pp. 67-102.

1987 – “Ficção e Realidade”, Actas do VIII Encontro da APEAA. Coimbra. pp. 45-53. 1989 – "O herói colectivo: Um aspecto da estratégia romântica do romance

neo-rea-lista", Vértice (Dezembro). pp. 33-42.

1991 – "O desejo da realidade e a realidade do desejo no romance dos sécs. XIX e XX”,

Dedalus. n° 1. pp. 157-168.

1991 – "Michael Henchard versus Elaine Showalter: Another reading of The Mayor of

Casterbridge", Thomas Hardy: Cadernos Temáticos da Revista Portuguesa de

Estu-dos Anglo-Americanos. Porto. pp. 61-68.

1992 – "The Mother Unknown Syndrome: Further Considerations about the Origins of

Fiction and Family Romance". Dedalus. n° 2. pp. 191-196.

1994 – S. Bassnett, Comparative Literature: A Critical Introduction. Recensão.

Deda-lus. n°3/4 (1993-94). pp. 285-286.

1995 – "Proletarian Idylls", Dramas of Desire/ Visions of Beauty. Proceedings of the

XIII Congress of the ICLA. Vol. I. Eds. Ziva Ben-Porat et al. Tokyo: Univ. of Tokyo Press. pp. 250-259.

1995 – "Presentificação e Efeito de Empenhamento". Línguas e Literaturas (Revista da

FLUP), vol. XII. pp.275-286.

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1996 – "O herói", Vértice. n°75 (Dezembro). pp. 32-37.

1996 – Co-Organizadora de Literatura Comparada: Os Novos Paradigmas. Porto: Ass.

Port. de Literatura Comparada.

1997 – "Literatura e Desejo", Revista de Cultura (Macau). n°29. pp. 25-36.

1997 – "Literature and Desire", Cultural Dialogue and Misreading. Eds. Mabel Lee and

Meng Hua. Sydney: Wild Peony. pp. 278-289.

1997 – "The new metamorphosis of Don Juan", Parodia. Pastiche. Mimetismo. Ed.

Paola Mildonian. Roma: Bulzoni. pp. 393-401.

1998 – “O Romance Familiar em Women in Love”, Estudos Ingleses: Ensaios sobre

Lín-gua, Literatura e Cultura. Org. Gualter Cunha. Coimbra: Minerva. pp. 95-113.

2001 – “D. H. Lawrence: Women in Love, Literatura Inglesa III. Org. Gualter Cunha.

Lisboa: Universidade Aberta. pp. 403-433.

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Maria Alzira Seixo

Universidade de Lisboa

Testemunho para Margarida

Eu estava em Washington Square e chorava. Foi em 1982, falaras-me um pouco antes em Lisboa com esse modo decidido, vertiginoso, a corta-mato,

vamos fundar uma associação, comparatismos, coisas dessas, e eu a pensar esta mulher é doida.

Achava mesmo louco esse teu ar despenteado, sorridente,

o teu cabelo encaracolado e louro de miúda mal comportada, o vestido pingão, a tua passagem marcada e veloz pelas coisas,

passos de pensamento leve e mão detida, a agir fundo, a escrever cartas longas e cheias como o coração que abrias e nunca esvaziavas.

E tinhas razão. Foi em Washington Square, não pudeste ir e eles deixaram-me sem bolsa,

era uma vez na América, quem havia de dizer, uma futura presidente e dez anos antes eu ali perdida, entre a casa do Miller e a NYU, pensava em ti quando o Guillén passou,

pôs-me o braço no ombro, que há pasado Maria?, tinhas razão, tudo começou naquela ponta de Manhattan, onde afinal os desastres.

Tudo tão diferente então do estudo sereno dos anos sessenta, mesmo as greves de sessenta e dois, bem comportadas e estudiosas, a revolução fazia-se com seriedade e competência,

éramos assim. Deixei de chorar com o tempo, e a loucura foi sempre a tua, de cabelos no ar e sorriso insistente, não sei como uma associação surgiu mesmo, engrandeceu-se, vieram projectos, e mandatos, e combinações, propostas

e respostas, sempre disposta a tudo, inventando, inventariando, contrariando, aparecendo não se sabe quando nem donde,

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de Washington Square, afinal foste tu, Liberty Valance, quem aportou aqui.

Nunca mais deixaste ninguém descansar.

Há quem diga que fui eu mas não é verdade, e tu sabes, foste tu. Ficaste connosco definitivamente doze anos depois,

lembro-me de uma conversa ao fim da manhã nos Lodi Gardens, tramámos tudo nas tuas costas e sorriste uma vez mais

já nas Montanhas Rochosas (tão índias que nós éramos!), cedi o passo a essa marcação cerrada que impunhas.

Não sei como tudo mudou. A tua voz ficou séria

subitamente ao telefone, um dia, houve silêncios na conversa que não havia meio de continuar, e eu pensei: como se grita? As tuas cartas nunca mais foram longas

e o coração foi desaparecendo

no sorriso mais quieto, e mesmo o teu cabelo ficou liso. Quando vou a Odense

o ar do Báltico traz-me a tua última presença na ansiedade de uma travessura incessante

quando te detinhas nos campos com Tânia e Ziva, o verde da chuva aparecendo ao sol, o mármore dos palácios na ilha, um ar de Hamlet

e o sorriso flutuava ainda, a claridade no cabelo, mas o corpo desaparecia.

Ficaste ali na memória de todos, nas flores de Ofélia deslizando, Svend Erik estampou-se no carro, e o susto geral

foi afinal o de ver-te partir.

Disseram-me que foste numa pequena caixa

que ficou contendo as tuas certezas e tantos passos por dar e, bem o sei, aquela dúzia de camisolas que compraste

ao mercador da rua em Veneza, anos antes, eram compras de Natal, e não cabiam na mala do regresso.

Ilhas de um arquipélago que vai desaparecendo,

deixamos o mar livre para as lágrimas de quem vier no mapa, e nas cartas que traçaram as derrotas

só encontra o olhar vago da sombra

persistente, em Nova Iorque e em toda a parte.

14 MARIAALZIRASEIXO

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Diogo Alcoforado

Universidade do Porto

Henry Miller. Pintura e escrita.

Algumas notas breves em torno

de To paint is to love again

1. "Como que obcecado, o meu pensamento não deixava de girar em volta de certos nomes: Rouault, Miro, Chagall, Max Jacob, Seurat. E quase lamentava que não me tives-sem pedido ilustrações, em vez do texto”, escreveu Miller, reflectindo sobre o magní-fico exercício que The Smile at the Foot of the Ladder (Miller, 1973: 114)1 constitui, e sobre quanto o terá suscitado. Escrito a pedido de Léger, para acompanhar as ilustra-ções deste sobre 'O circo' (Épilogue, 113),2 ele marca o relacionamento de Miller com meios plásticos europeus de vanguarda e algumas das suas figuras paradigmáticas; e se este relacionamento se pôde estabelecer, para tal convite uma feliz conjugação de dados teria, ainda, ocorrido: por um lado, o circo, recorrente no pintor francês como matriz de muitos dos seus trabalhos, surgia como campo de interesse do escritor dos

Trópicos, que em tal espaço e acção podia encontrar, sobretudo na figura do clown, um personagem admirável; por outro, entre o americano antes viajante em França e o francês conjunturalmente emigrado na América, haveria os laços que comuns conheci-mentos de pessoas e lugares determinam; finalmente, a actividade plástica de Miller vinha-se desenvolvendo desde 29, com um possível carácter reservado, mas com a

1Henry Miller, 'En guise d'épilogue au Sourire au pied de l’échelle', in Peindre c'est aimer à nou-veau suivi de Le sourire au pied de l' échelle. Trad. G. Belmont. Paris: Éd. Buchet/Chastel, 1973.

Todas as referências quer a este texto quer ao texto principal Peindre c'est aimer à nouveau serão indicadas apenas por Épilogue e por Peindre, seguido do número da página da edição aqui citada. Por sua vez, a utilização desta edição francesa decorre de questões meramente conjunturais: foi aquela a que tive acesso e onde pude conhecer, muito recentemente (e não obstante os anos em que foi produzida...), o texto de que aqui me ocupo.

2Significativamente, e como é citado na Bibliografia das obras de H. Miller, inserida em Perlès, 1956: 270, The Smile at the Foot of the Ladder (A Merle Armitage Books; Pref. de Edwin Corle), acabou por ser publicado, e ilustrado, com reproduções de Picasso, Chagall, Klee, Rouault, Segonzac, ... A história desta alteração é curiosa, e mostra a dificuldade de alguns relacionamentos entre artistas plásticos e escri-tores: neste caso, terá sido, depois, Léger a redigir a 'introdução' às suas litografias (veja-se, a este res-peito, o artigo de Rebecca A. Rabinow no Catálogo da Exposição 'Cirque. Fernand Léger' (Rabinow, 1997), assim como o texto do Arq.º José Sommer Ribeiro, também aí inserido).

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constância de quem descobre aí um refúgio, ou um complemento, de quanto a prática de escritor, mais do que consentir, talvez pudesse ter exigido. Feliz conjugação, e con-vite, por certo; mas se tudo aparentemente concorria para a perfeita realização do pro-jecto, em terreno de consistente complementaridade, logo os acidentes da História se encarregariam de alterar quanto era suposto suceder, num dos múltiplos episódios curiosos que a aventura das práticas produtivas modernas nos entrega...

Ora, se o The Smile at the Foot of the Ladder é, hoje, bem conhecido, e irrompe, na sua simplicidade e despojada humanidade, como um dos mais admiráveis textos breves da literatura contemporânea, – menos conhecida parece ser quer a citada acti-vidade plástica de Miller3 quer um outro texto fascinante, terminado doze anos depois da pungente história de Augusto, e intitulado To paint is to love again.4 Escrito con-fessional, sob a forma de ensaio, ele revela as relações de Miller com a pintura, e com alguns problemas fundamentais que ela pode suscitar; mas, e por igual, instala um espaço reflexivo amplo, entrelaçando a própria disposição à prática plástica com posi-cionamentos específicos que o escritor, enquanto romancista, e ensaísta, necessaria-mente reflectirá.

2.

Lembro-me claramente da transformação que se operou em mim quando comecei a ver o mundo com os olhos de um pintor. As coisas mais familiares, os objectos sobre os quais tinha pousado o meu olhar durante toda a vida, eis que se tornavam para mim uma fonte de infinito encantamento, e que, ao mesmo tempo, estabelecia com eles uma relação afectiva. Um bule, um velho martelo, uma chávena rachada, qualquer objecto que me viesse às mãos, eu considerava-os como se os visse pela primeira vez. (Peindre, 24)

escreve Miller; e se esta referência a um novo modo de olhar as coisas (ou de

con-vivercom elas), vendo-as 'como se as visse pela primeira vez', parece significativo, tal decorre de um duplo facto assinalável: primeiro, ela corresponde a um posicionamento essencial no interior do processo reflexivo (e/ porque afectivo...) contemporâneo, com percurso que vai desde o Impressionismo a Dada, e irá encontrar na fenomenologia de Husserl, e em quanto por aí advém, um espaço de afirmação teórica de insubstituível importância;5 segundo, porque, e consequentemente, ela mostra a dimensão de incon-tornável presença de cada ente singular e concreto, ao outorgar-lhe um estatuto ôntico definitivo e irredutível a qualquer esquema englobante e redutor, – esquema que, a um tempo, o integrasse e o dissolvesse numa visão geral de que ele seria apenas um ele-mento entre inúmeros outros.

Ora, se esta posição corresponde a um posicionamento essencial no interior da

aventura moderna, ela arrasta consigo as consequências dinâmicas, e imparáveis, de

16 DIOGOALCOFORADO

3Contudo, e só até 1960, teriam já sido realizadas, pelo menos, vinte exposições de pinturas de Miller. 4A data apontada por Miller para a conclusão do texto é 12 de Fevereiro de 1960.

5É bem conhecido, e continuamente citado, com tudo quanto essa expressão implicará, um princí-pio básico – ou, mesmo, gerador... – da Fenomenologia: "É preciso voltar às próprias coisas"; entretanto, e em outro registo, é curioso notar como, antes de Husserl, o esforço maximamente realista que o Impressionismo visava se terá tornado, pela radicalização da aproximação aos dados que o real fornece, num fenomenismo marcado por uma profunda subjectividade, e de algum modo implicar uma dimen-são trágica que parece atravessar as mais significativas e radicais aventuras da modernidade.

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todo o acto separador e eminentemente analítico: ver o singular concreto é, também, ao vê-lo, isolando-o, descobrir a singularidade de cada acidente nele existente, reparar naquilo em que mais ninguém repara, abrir-se à multiplicidade de formas detectáveis, por mínimas que sejam, conhecer com minuciosa atenção, e perplexidade, quanto um corpo particular comporta, – e atribuir a cada um destes 'acidentes', também a eles, uma consistência ôntica especial. A esta luz, bule ou martelo, chávena ou..., são os lugares de uma manifestação exemplar: a que o real fornece, na simplicidade das mais simples construções, a quem tiver capacidade para o (e: as) olhar sem pre-conceitos, longe de atitudes valorativas onde apenas estratificações culturais, ou o preço ou a possibilidade do lucro, funcionem como critérios de avaliação. Estar com as coisas, é, também, ser com as coisas – numa relação de comum dependência. E se a passagem citada é importante, já antes Miller havia escrito:

Que há de mais intrigante que uma mancha no soalho da casa de banho, quando (...) a vedes tomar centenas de formas, de rostos, de silhuetas? Muitas vezes me encontrei de joe-lhos em vias de estudar uma mancha no chão, para aí detectar tudo quanto, à primeira vista, nela se escondia. Não há dúvida que o pintor que estuda o rosto do modelo que vai pintar, deve ficar espantado pelas coisas que descobre, subitamente, no rosto familiar que tem à sua frente. Ao observar atentamente um olho, lábios, ou uma orelha, – sobretudo uma orelha, este estranho apêndice do rosto! – ficamos estupefactos pelas metamorfoses que pode sofrer um rosto de homem. O que é, então, uma orelha ou um olho? Uma obra de anatomia dar-vos-á uma definição e muitos detalhes (...). (Peindre, 19)

e logo acrescenta: "Bruscamente, eis que vos pondes 'a ver', e já não tendes perante vós um olho ou uma orelha, mas um pequeno universo composto dos elementos mais extraordinários que nada têm a ver com a vista ou com o ouvido, nada de comum com a carne, o osso, o músculo ou a cartilagem" (ibidem). Assim, entre o estudo anatómico (e a observação que lhe corresponde...) e a observação do pintor, uma diferença fun-damental existe: esta parece instalar-se num campo de extrema autonomia, em que o direccionamento é determinado pelo fascínio que o que é observado impõe ao obser-vador, num trânsito onde, agora, as problemáticas essenciais da imitação e da

inten-cionalidade reciprocamente se implicam e se questionam. E, por uma e outra, se assim se pode dizer, é a problemática do amor que retorna: "Para ver como o pintor vê, é preciso olhar com os olhos do amor" (idem, 23) dirá Miller; e se este olhar "nada tem de possessivo” (ibidem), já que o pintor tem de 'partilhar' quanto é visto, algo não pode ser esquecido: é que, como acentua, e pensando já, por certo, em termos pro-dutivos, "Antes que um tema possa ser transformado esteticamente, é preciso devorá-lo e absorvê-devorá-lo” (idem, 64), – assim abrindo um percurso de infindáveis repercussões. De facto, se a disponibilidade de abertura ao insólito espectáculo que o real é podia encontrar já, em certas reflexões de Leonardo da Vinci, aspectos afins daqueles que aqui são propostos, o que parece agora irromper é uma atitude onde o acto de ver, e de fruir o que é visto, de algum modo, metaforicamente, 'devorando-o' e 'absorvendo--o', se sobrepõe a qualquer esquema constituído, a qualquer ordem preexistente e regrante (seja ela de índole gnosiológica, ética e, mesmo, estética), a qualquer preocu-pação com um sentido transcendente que importe desvelar e cumprir à custa de pes-soais reduções. Aqui, nenhuma teleologia de cariz escatológico, ou qualquer metafísica finalista: só o jogo das possibilidades e das referenciações, no interior das virtualidades

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gnosiológicas e afectivas que uma pura imanência determina. E, no interior desta, por misterioso desígnio, apenas o amor, o sempre citado amor, surge como operador deci-sivo: aquele que impõe não apenas o entrelaçamento receptivo mas a capacidade pro-dutiva, a constituição dos sinais emblemáticos, e simbólicos, de uma particular maneira de abraçar o Mundo.

Assim, os olhos do pintor vão ser, também, os determinadores necessários de uma prática de escrita específica: aquela onde cada elemento do real é, simultaneamente, parte e absoluto, em oscilações contínuas que a própria escrita define. Em Miller, entre outros aspectos, o que se torna impressionante é o relevo dado a pormenores aparen-temente irrelevantes, o modo como estes jogam na determinação (e na indetermina-ção...) das figuras, a capacidade de constituir campos a um tempo fragmentários e de hipercomplexidade orgânica, a sobressaliência outorgada a aspectos particulares e que como definitivos aparecem. E se este processo poderia surgir como um desejo trans-critivo de um real exterior e anterior, é a própria escrita, na atenção dada ao seu mate-rial gráfico e fónico que exige, ela também, a autonomização de elementos significati-vos, ou como tal tomados, a sua evidenciação, a sua maximalização no interior de, e pelo contraste com..., ritmos de irrecusável grandeza.6 O treino que uma agudeza obser-vativa teria desencadeado alastra por campos de expressão diferentes, e neles se revela esplendidamente; mas, também, no seu meio, continuamente se joga a dialéctica, tensa e preocupante, da consideração do todo e do fragmento, do englobante e do englo-bado, do exterior e do visualizado, do amplo e do restrito e particular. Toda a acção em tais oscilações se desenvolve; e, como um olho ou uma orelha, cada figura é um lugar de misteriosas descobertas, a sua descrição, e a do seu comportamento, uma aventura potencialmente interminável.

3. Ora, se To paint is to love again é de 1960, aí se descrevem os inícios da activi-dade plástica de Miller trinta e dois anos antes. "Quando volto a pensar no ano de 1928, ano em que fiz as minhas primeiras aguarelas, parece-me que se eu não tivesse des-coberto este exutório, teria enlouquecido" (Peindre, 68) refere; e se a pintura surgia então como compensação, ou somente como processo catártico, para problemas então prementes não apenas de escrita, e dinheiro, como, até, de índole doméstica, algo deve ser notado. Miller é, desde o princípio, um cultor da aguarela, quaisquer que sejam as limitações técnicas, sempre por ele reconhecidas, com que encontra. Por questões, ainda, de ordem económica? Por certo, tendo em conta o modo como em tal processo de realização se inicia, e a situação que com extrema força conta no seu texto. Mas se, a princípio, tal facto assumirá um papel central, outros aspectos não podem deixar de ser considerados: a aguarela, para lá, geralmente, do menor custo dos materiais e da facilidade do seu emprego, permite execuções rápidas e utilizações discretas, caseiras,

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6"Desde criança fui apaixonado pela música das palavras, pela sua magia, pelo seu poder encan-tatório. (...) Era capaz de inventar indefinidamente, com risco de levar o meu auditório ao limite da his-teria", escreve Miller (1970: 28). E quem desconhece sequências do tipo daquelas com que abre Nexus: "Woof! Woof woof! Woof! woof! / / Barking in the night. Barking barking. I shrieck but no one answers. I scream but no there's not even an echo./ / 'Which do you want – the East of Xerxes or the East of Christ?' / / Alone – with eczema of the brain. / / (...) / / Woof! Woof woof! / / (...)", e que atravessam toda a sua obra? (Miller, 1965).

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sem necessidade de recurso a espaços amplos, sem períodos de secagem longos, sem cheiros...;7 exige, em compensação, velocidade executiva, controle gestual, capacidade aguda de prever efeitos e de os aceitar, uma consciência rápida do espaço da folha e do seu preenchimento justo, ... Quando combinada com partes desenhadas a tinta (da China; ou de escrever), como Miller por vezes faz, aumenta as possibilidades combi-natórias dos dois materiais, os contrastes linha/ mancha, as penetrações. Mas escusado é pedir à aguarela o tipo de resultados plásticos que, por exemplo, o óleo ou a têm-pera permitem, no seu carácter denso e controlável, no trabalho de sobreposições ou de elaborações matéricas, na possibilidade da pincelada singularizada, no contorno apreensível que cada uma destas pode comportar; ao invés, a aguarela, na sua líquida fluidez, pode gerar escorrências, fusões, amplificações de mancha onde nenhuma pin-celada particular se define, zonas de maior ou menor evidência cromática consoante a impregnação que o papel consente e a quantidade de água que em certas reentrâncias da folha se possam acumular, ... De algum modo, o que marca muito do que de melhor a aguarela permite realizar é o que decorre de efeitos dificilmente programáveis, da surpresa que os próprios materiais impõem, do modo como o pintor joga com os suportes sobre os quais age. E se, como parece óbvio, os grandes aguarelistas assumem uma quase virtuosística capacidade de calcular e controlar o aparecimento das man-chas de tinta, e de as organizar rítmica e cromaticamente, – mesmo nesses casos grande parte do fascínio da sua prática vem da surpresa sempre esperada, da possibilidade de novas tentativas fazerem surgir novas soluções estruturais, do próprio modo como os materiais empregues, na sua variável quantidade, reagem ao gesto que os expõe.

Deste modo, se Miller, não obstante a confessada atracção pela pintura, sempre se reconheceu e quis um escritor que, em momentos singulares, e em condições especí-ficas, pintará, por vezes quase compulsivamente, – curioso seria pensar como, não obs-tante o carácter forte e provocatório da sua escrita, não obsobs-tante mesmo a forma sin-copada que organiza e estrutura múltiplas sequências dos seus textos, Miller é um escri-tor da escorrência e da fluidez, da interferência e da surpresa, até mesmo da cons-ciência do primado que uma base dada (o suporte, com todos os seus acidentes, no caso da pintura; o campo social e cultural, com todas as suas problemáticas, e a língua, com todas as suas virtualidades) tem sobre os actos e os efeitos a obter, e que com eles também joga, em processo de ambígua dependência. E depois, e ainda: um escritor que pode perceber claramente – à semelhança, talvez, do aguarelista... – como cada construção literária, não obstante a sua força e grandeza, é leve e distante do real que suscitou, que apenas o aponta, que sempre o discurso fica aquém do real fascinante, 'devorado' e 'absorvido', que suscita a obra: pela impregnação do escritor (ou do pintor...), pela exigência da devolução transformada do material 'absorvido', forma última, e pri-meira, de o reter e de o afirmar. E de se afirmar – por ele, com ele, contra ele.

A tal luz, a posição de Miller assume, por esta (talvez abusiva...) mediação, uma dis-posição e uma estrutura construtivas possivelmente afins daquelas que um pensador contemporâneo, e essencial, Deleuze, introduz no espaço reflexivo sob a designação

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7Talvez pelas mesmas razões, quando não tinha tintas, Miller confessa trabalhar com lápis, carvão, ..., – e utilizar até, eventualmente, o papel de embrulhar carne, tendo em conta alguns efeitos que se podiam tirar com o carvão sobre o papel manchado de sangue.

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de rizoma: articulação quase aleatória (ou resultante de estruturações inapreensíveis) de pontos referenciáveis, nodulares, eles mesmos irrompendo por virtualidades ima-nentes e conjunturais que um fundo (?) de determinações constituintes suscita (Deleuze, 1980). E se esta remetência para o filósofo francês recentemente falecido pode parecer estranha, uma outra ligação surgirá ainda como possível, não obstante o melindre que reveste: a que permitirá relacionar, por esta insólita via (e por aspectos que a reflexão sobre o acto de ver e sobre a prática da aguarela desencadeia...), o anteriormente citado Husserl a Deleuze, em trajectória que múltiplos outros aspectos tenderão a fazer definitivamente divergentes. Projecto de trabalho reflexivo que aqui não cabe, como parece óbvio, ele não deixa de ser estimulante e perturbador. E, talvez, iluminante-mente necessário.

4. Se a prática da pintura ocorre, o próprio Miller reconhece como o fascínio das formas plásticas o dominou desde cedo. Em To paint is to love again, confessa, quase no início:

No ângulo das ruas 27 ou 28 e da 5ª Avenida havia uma loja de arte. Nunca aí passava sem parar para examinar as reproduções que tinha na montra. Um dia ficava entusiasmado com Cimabue, no dia seguinte com Giotto ou Ucello; e cada semana me parecia descobrir um novo ídolo a quem adorar: eram sobretudo os Japoneses (Hokusai, Utamaro, Hiroshige), mas também Renoir, Whistler, Monet, Van Gogh, Boticelli, Marc Chagall, Holbein, Utrillo, Léon Bakst, Memling, Seurat, Modigliani, Rousseau, Breughel, Bosch, Van Eyck, Paul Klee, Kan-dinsky, e assim de seguida até ao infinito. (Peindre, 12-13)

E se a listagem dos autores citados (infinito à parte...?) é quase a mesma que, por exemplo, em Nexus é proposta (Miller, 1965: 8), e em outros lugares referida global ou parcialmente, – um perturbador aspecto terá de ser considerado: a atracção de Miller pela pintura, e a sua descoberta de obras de figuras emblemáticas, não parece impli-car que a permanência no entusiasmo se mantenha estável, ou que a figura de um autor resista a todas as novas aportações e mudanças experienciadas. "De tempos a tempos comprava uma reprodução e pregava-a na parede bem em evidência, o que era o melhor meio de destruir um ídolo" (Peindre, 13), acrescenta, em reflexão que parece implicar, a um tempo, obra e produtor; e se esta disposição instala a consciên-cia da mutabilidade afectiva, e valorativa, ela por igual aponta uma dimensão agónica capaz de romper com os critérios de qualquer estética formal, ou que numa dimensão formalista se resolvesse e acalmasse. Mais: o projecto de Miller, mesmo quando se encontra com pintores modernos, e essenciais, não é o do espectador que nas cons-truções produzidas encontrasse um lugar de exaltação, mas que na exaltação de tais objectos se sentisse realizado. Miller é ele mesmo, um autor moderno, marcado pela insanável vocação da procura – essa palavra-chave que, interligando a dimensão (e a tensão...) produtiva e metafísica, Baudelaire usa no trânsito para a sua caracterização da modernidade, e que atravessa (transversalmente, dir-se-á...), a vida dos grandes nomes da cultura do século XX. Constituir ídolos é, de algum modo, constituir para-gens, estabelecer regiões de inultrapassável grandeza, de regrantes construções: o con-trário do destino daquele que por si mesmo quer avançar, que descobre que a única atitude possível é a que decorre do movimento contínuo, que encontra nas obras alheias, independentemente do seu estatuto cultural, apenas mais uma sugestão para

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seguir em frente, independentemente dos resultados obtidos ou a obter. E, ainda: que procura em si as reservas energéticas para a si mesmo se ir fazendo por aquilo que faz, fruindo o que realiza, e disso tirando prazer e equilíbrio. De algum modo, para tais per-sonalidades, os únicos ídolos pensáveis são aqueles que, em vida, como anti-ídolos apareceram, agindo no fascínio da disponibilidade e da leveza infantis, adultos que puderam assumir uma incapacidade de cálculo que os tornou párias ou marginais – pares dessas crianças cujos trabalhos plásticos confessa serem fontes inultrapassáveis de encantamento, superiores mesmo aos daqueles artistas que mais fortemente terão marcado o seu espírito: os Japoneses. Espantará assim que, não obstante a confessada e progressiva 'imolação de ídolos', Rimbaud ou Van Gogh possam encontrar um lugar de referência assinalável (Miller, 1970: 67-80), talvez não tanto pelos objectos que pro-duziram mas pela vida e pela errância, e que a aventura de Miller com tais figuras se encontre recorrente e densamente? E espantará ainda a forma entusiasta como fala, por exemplo em Tropic of Capricorn, dos autores Dada e Surrealistas, do papel que eles assumem numa determinada época, das propostas que os seus manifestos veiculam? (Miller, 1961: 291-296).8 É que, agora, e aqui, nestes movimentos e nos autores que os integram, surpresa, acaso, imprevisto, ..., assumem um lugar central: menos que as escolhas definidas e voluntariamente controladas, é a descoberta e a aceitação maravi-lhada do que espontaneamente se dá, ou acontece, que irrompe com força e como sen-tido. E é o jogo das livres associações, das analogias de matriz subterrânea, das imagi-nativas construções alheias a qualquer controlo racional, do próprio sonho e do infi-nito desejo… – que instala um domínio de possível habitação do Mundo, domínio sempre separado dos quadros de valores estratificados, das crenças (tidas como) redu-toras, das referências anquilosantes...

5. Espantará, assim, e ainda, que a questionação sempre acrescida, pela agudização do sentido analítico e crítico das estruturações institucionais e dos valores que as infor-mam, deixem o homem numa situação estranha e difícil – aquela em que lhe cabe pro-curar, por si e pelas suas virtualidades imanentes, processos individuais de salvação ou de fuga? É que algo deve ser reconhecido: entre a capacidade aguda de ver e uma dis-posição analítica e fragmentadora forte há nexos imparáveis. Todo o exercício crítico se alimenta de uma observação aturada sobre uma informação tão ampla quanto pos-sível, de uma disposição activa para detectar aspectos particulares, e de reagir a eles com prazer ou desprazer; e se o processo se agudiza, um tal dinamismo gera um per-curso marcado por fragmentações sucessivas, por estilhaçamentos dolorosos, por dis-sociações dificilmente recuperáveis. De algum modo, a fragmentação (imagética; e não só) de quanto como real é dado só pode ser recuperado por construções utópicas, ou ideais, e de cariz algo aleatório, ou por um acréscimo de quanto, advindo das matrizes biológicas mais fundas, surja como concreto desejo capaz de recentrar o sujeito em algo que, premente, o sustenha e reequilibre. Entre o esforço filosófico e o erotismo há os nexos que, perdidos os grandes sistemas religiosos e explicativos, um dinamismo

HENRYMILLER. PINTURA E ESCRITA. ALGUMAS NOTAS BREVES EM TORNO DETO PAINT IS TO LOVE AGAIN

8Mas veja-se também, temperando alguns entusiasmos, o posicionamento que assume em "An Open Letter to Surrealists Everywhere", in The Cosmological Eye, de 1939, em português inserido em O Mundo do Sexo e Outros Textos (1987) (vide Miller, 1939).

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reintegrador determina; e a famosa interrogação kanteana, com a qual reduzia três outras questões antes postas: "Que é o homem?", permanece em aberto, – com sentido tão mais preocupante quanto todas as tentativas de satisfação cabal se tornaram difu-sas ou, mesmo, in-significantes.

É no interior deste campo cultural que, de uma forma ampla, e irrompendo de múl-tiplos sectores, vemos o Circo surgir como espaço de atracção irrecusável, e como pri-vilegiada metáfora. Ou: porque pripri-vilegiada metáfora. Espectáculo onde, para o espec-tador, o ver se centraliza e maximaliza, onde os gestos e as funções dos intervenientes não têm qualquer sentido outro que não o seu próprio aparecimento e diferença, em sequência rara de tipos e de habilidades, – o palhaço, o clown, assume aí um lugar central e definitivo. E lugar central e definitivo porque é, ele mesmo, a grande figura metafórica de um homem em situação de perda, obrigado, pela sua própria condição de homem, a rir da sua própria fragilidade, a agir e a sobreviver nos limites de quanto a sua finitude impõe. Quantos pintores se debruçaram sobre os temas do Circo e do

palhaço,quantos sobre eles escreveram, quantos invocaram um e outro metaforica-mente? Se o texto realizado por Miller, marca um desses momentos, logo o americano escreve, reflectindo sobre o próprio escrito que produzira: "Eu pensava na minha paixão pelo circo, – sobretudo o circo íntimo (...). Recordava como, concluídos os meus exames de saída, no liceu, tinha respondido, quando interrogado sobre o que queria fazer na vida: 'Ser palhaço!' Evocava aqueles dos meus velhos amigos cujo comportamento fazia pensar no dos palhaços; e eram aqueles que eu mais ternamente amava. E depois, des-cobri, para minha surpresa, que os meus amigos mais íntimos me viam a mim próprio como um palhaço" (Épilogue, 144-145); e depois, de algum modo justificando estas posições: "O palhaço exerce sobre mim uma profunda atracção (...) precisamente porque entre o mundo e ele se ergue o riso. O seu riso nada tem de homérico. É um riso silencioso, sem alegria, como se diz. O palhaço ensina-nos a rir de nós mesmos. E esse riso é gerado pelas lágrimas (idem, 148). Por isso, talvez por isso, o estilo, em múltiplos momentos agressivo, sarcástico, virulento, de Miller, se torna perturbador: pela ambiguidade que o atravessa, pela consciência que temos de que a violência exposta resulta de uma afim consciência de perda, de desamparo, do sentido de uma fragilmente comum humanidade. O impiedoso Miller parece, de algum modo, começar por ser, sobretudo, impiedoso para consigo mesmo – como os seus textos maiores, de matriz aparentemente autobiográfica, tendem a expor. O resto, é uma consequência: um desejo de sobrevivência, uma questionação contínua de valores e fundamentos, uma procura, talvez, desesperada...

É por razões deste tipo que o leitor de Nietzsche admira, desde muito cedo, Dos-toievski, e confessa-se marcado pela vida e obra de Rouault, o pintor católico; que aquele que, nos seus textos, clamando apresenta, como em extensas litanias, períodos e amplos posicionamentos históricos, se confronta com o espaço de uma pista circense, – fisicamente exterior, ou íntima; que aquele que leu, caoticamente talvez, milhares de livros (Miller, 1957)9 e admirava pintores em número 'até ao infinito', luta para se reve-lar pela mediação da escrita, e, modernamente, por quantos outros meios houver ao

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9Veja-se, sobretudo, e no interior de uma massa inesgotável de sugestões, e de referenciações, o cap. IX, KRISHNAMURTI, e a posição deste sobre a criação artística (Miller, 1957: 168).

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seu dispor; que aquele que tem capacidade para afrontar o Mundo, e para, entre a atenção e o distanciamento, sobreviver e ser capaz de transformar inúmeras vicissitu-des em Obra, – se reconhece, simplesmente, como individualidade que o palhaço fas-cina, ou que a si o chama. Que o pinta. "De todas as minhas pinturas, aquela que tinha tido mais sucesso era uma cabeça de clown, que eu tinha dotado com duas bocas, uma para a alegria, outra para o desgosto. A da alegria era vermelhão vivo,,, " (Épilogue, 145); mas, se o palhaço era o tema, se o vermelhão vivo era dito aqui 'cor da alegria', em construção quase ingenuamente simbólica, as 'grandes bocas vermelhas' pareciam exceder (por uma vez; por exigência incontrolável, como em toda a produção tende a ocorrer...) o simples plano apontado. Como foi já escrito: "Tudo o que sei é que Irene tinha uma grande boca vermelha e que Henry amava as grandes bocas vermelhas" (Perlès, 1956: 37). A pintura, agora, parece funcionar como dupla instância indiciativa, – por condensações, e por deslocações10 que são, a um tempo, expressões de máximo realismo e de máxima subjectividade: pintura que encontra nas constituições ditas 'sim-bólicas' uma equidistância e uma superação dos planos da referenciação e do desejo sem objectivação imediata. E por este processo, que é, sempre, de tradução e de cons-trução, a forma produzida aspira a uma dimensão actuante que apenas como

equipo-tencial11creio poder ser dito: conjunto de virtualidades que permitirá à forma consti-tuída assumir, perante o espectador, um poder de despertar emoções afins daquelas que foram experienciadas pelos autores perante os distantes e diferenciados estimuladores (corpos, séries de corpos, actos, objectos ou grupos de objectos, paisagens,...) que total ou parcialmente, e directa ou indirectamente, se representam, ou associadamente se invocam. Tarefa produtiva contínua, ela continuamente se abre e agudiza, – com exi-gências acrescidas, em esforço que o termo apontado: afins, levanta: como conseguir, ou sequer esperar, que as reacções do leitor, ou do espectador, tenham um estatuto idêntico ao que o autor experienciou, se não em tonalidade específica ao menos em intensidade? E se este processo e percurso, caro a todos os românticos, e a todas as reflexões que de princípios semelhantes se alimentam, encontra na modernidade um terreno de privilegiado desenvolvimento, é porque ele entrelaça a procura expressiva com a 'procura de si' do próprio Autor, o qual, na forma constituída, e apenas por ela, se tende a definir e a resolver.

7. A aventura de Henry Miller é hoje sobejamente conhecida. A sua Obra também.

To paint is to love againparece ser, dentro desse conjunto enorme, e multiforme, um texto menos referido ou avaliado. Talvez por isso, ou tão só por isso, e pelos interes-ses específicos que veicula..., o escolhi: aqueles interesinteres-ses que, claramente expostos ou apenas insinuados, apontam para o cruzamento e para a comparação das múltiplas manifestações produtivas do homem, para a sua fundamental dimensão poiética.

HENRYMILLER. PINTURA E ESCRITA. ALGUMAS NOTAS BREVES EM TORNO DETO PAINT IS TO LOVE AGAIN

10Para usar linguagem que à psicanálise convém...

11Termo que o próprio autor destas linhas terá introduzido, em tempos já recuados, no léxico que à Estética parece convir (vide Alcoforado, 1983: 412-422).

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BIBLIOGRAFIA

ALCOFORADO, Diogo (1983), "Em torno de duas afirmações de Paul Cézanne", Nova

Renascença, nº 12, pp. 412-422.

DELEUZE, Gilles (1980), Mille Plateaux, Paris, Éd. de Minuit.

MILLER, Henry (1939), "An Open Letter to Surrealists Everywhere", The Cosmological

Eye (1939), in Mundo do Sexo e Outros Textos (1987), trad. Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, Lisboa, Publ. Dom Quixote, Lisboa, pp. 149-185.

_____ (1957), Les Livres de ma Vie, Trad. Jean Rosenthal, Paris, Gallimard. _____ (1961), Tropic of Capricorn, New York, Grove Press, Inc.

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_____ (1970), Le temps des assassins: Essai sur Rimbaud, Trad. F.-J- Temple, Éd. Pierre Jean Oswald, Honfleur, Éditions Hallier.

_____ (1973), "En guise d'épilogue au Sourire au pied de l’échelle", Peindre c'est aimer

à nouveau suivi de Le sourire au pied de l' échelle, Trad. G. Belmont, Paris, Éd. Buchet / Chastel.

PERLÈS, Alfred (1956), Mon Ami, Henry Miller, Trad. Anne Bernardou, Paris, Éd. René Julliard.

REBECCA, A. Rabinow (1997), " 'Cirque': A Fernand Léger & Henry Miller Story”,

Catá-logo da Exposição 'Cirque. Fernand Léger', Lisboa, Fund. Arpad Szenes-Vieira da Silva.

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Diana Almeida

Universidade de Lisboa

Vislumbres fotográficos em “Viewfinder”,

de Raymond Carver

O realismo americano dos anos oitenta resulta da fusão de estratégias e temáticas pós-modernistas com um modo de representação que recorre a uma visão consensual (porque maioritária) da experiência quotidiana. Contudo, o pendor auto-reflexivo deste tipo de escrita e a natureza problemática de uma realidade desprovida dos mitos uni-ficadores que antes garantiam a coerência (e a hierarquia) do sentido aniquilam a crença do realismo tradicional no valor ético da experiência, como agente fundamentador da mundivisão proposta. Assim, as produções literárias desta década, denominadas por diver-sos epítetos que tendem a acentuar tanto o seu carácter fragmentário como o recurso a situações passíveis de serem reconhecidas pelo “homem comum”1, assemelham-se com frequência a fotografias descontextualizadas, às quais é difícil atribuir significado. Procurando analisar a preponderância da visualidade neste novo realismo, Stull (1985), Karlsson (1990) e Fluck (1992) apontam como suas precursoras as artes plásti-cas hiper-realistas da década de setenta, inspiradas pela visão fotográfica. Recordem-se as obras dos escultores Richard Estes (1936-) e John de Andrea (1941-) e do pintor Duane Hanson (1925-1996). Efectivamente, tanto este tipo de escrita, como o movi-mento artístico em causa empregam a verosimilhança extrema como meio de questio-nar a percepção da realidade. A ênfase na superfície realista, reconhecível como fonte de sentido, insinua a dissociação entre signo (verbal, ou visual) e referente, devido à ausência de dados contextuais que permitam conferir profundidade semântica a estes textos. Em ambos os casos, o recurso ao “efeito de realidade” pretende, pois, defrau-dar as expectativas interpretativas e conduzir a uma atitude reflexiva, promovendo a consciência exegética.2

Na área da fotografia, desde os anos setenta que Lee Friedlander (1934-) proble-matiza a linguagem fotográfica e o seu papel instrumental na criação de sentido na

con-1Minimalismo, “K-mart Realism”, “Dirty Realism” são alguns dos nomes associados à literatura dos anos oitenta nos Estados Unidos, vide Karlsson, 1990.

2Vide Fluck (1992: 77): “The aesthetic point of these pictures [texts] is not recognition, but, quite on the contrary, a formalist challenge to the viewer [reader] who is to gauge the familiar in order to assess the formal structure of representation”.

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temporaneidade. No seu excelente ensaio The Photograph (1997), Graham Clarke refere-se à obra deste fotógrafo em termos que se poderiam aplicar à corrente literária do novo realismo e em particular à escrita de Raymond Carver:

The extent to which many contemporary photographers have questioned the idea of a single representational space and made the reading of the photograph their subject helps to place all photography in the context of postmodern practice. (...)

One such photographer is the American Lee Friedlander (1934-). Friedlander’s photo-graphs are deliberately difficult to read, indeed, they make difficulty basic to their meaning as part of a larger critical process. (…) His eye roams the United States not as a Walker Evans intent on a vision of a particular cultural order, but as the recorder of a series of random events and images which, once questioned, fail to cohere. What emerges is a disparate world of chao-tic images and signs, signifying processes in which everything hovers about meaning but finally only declares itself as part of a larger problematic structure. (…) His images are not so much a record of what is, as visual essays on cultural representation. Highly self-conscious, they work through paradox, the play of absence and presence, radical perspectives, and the breaking up of photographic surface to create new and difficult relationships. (Clarke, 1997: 37)

Este paralelismo tem particular relevância por surgir num contexto em que o crítico tece considerações várias acerca de estratégias retóricas comuns às áreas artísticas da literatura, da pintura e da fotografia e também por apontar para o ensaio de Carver “On Writing”, incluído na antologia de contos e poemas Fires, publicada em 1983. Neste texto, o autor tece considerações várias acerca do novo realismo e afirma ser a visão o principal dom de um escritor, enfatizando o carácter visual da sua própria escrita. De facto, os seus contos são imagistas, no sentido que Ezra Pound atribui ao termo imagem – um complexo emocional e intelectual.

A um primeiro nível os princípios composicionais realistas configuram uma tessi-tura de imediato reconhecível; contudo a ambiguidade prevalece, devido à retórica da omissão. Inscrevendo-se na estética modernista da via negativa, o autor diz perfilhar o princípio da elipse como estratégia auto-reflexiva indutora de um olhar participativo que permitirá a emergência do sentido. A componente ética desloca-se para o nível da enunciação que, aliado a um processo exegético criativo, permitirá recriar a “superfície invisível” e dotar a narrativa de sentido.3 A literatura será uma propedêutica do olhar, como advogavam já alguns escritores e fotógrafos modernistas, tais como Ernest Hemingway e Paul Strand, que cunha o termo “straight photography” para designar uma abordagem reveladora do real.4 Carver recupera assim os princípios orientadores da estética realista, que procura cumprir um papel instrumental na revelação de uma nova perspectiva, como lembra Stull: “The object of realism remains simultaneously visual and visionary: to make you see” (1995: 8).

Num primeiro momento da sua escrita, correspondendo a Will You Please Be Quiet,

Please?, de 1976, e a What We Talk About, When We Talk About Love, de 1982 (dora-vante WWT), Carver utiliza o conceito de voyeurismo para apresentar personagens incapazes de significar, destruídas por relações familiares falhadas, pelo álcool e pela

26 DIANAALMEIDA

3Vide a tão comentada afirmação de Pound que Carver teria afixada na parede: “Fundamental accu-racy of statement is the ONE sole morality of writing” (apud Carver, 1989: 23).

4Recorde-se a ênfase com que Carver defende que a escrita não deve recorrer a “tricks” que falsi-fiquem a representação da realidade (ibidem).

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precariedade material; a possibilidade de sentido restringe-se ao acto de leitura. Numa fase posterior, o autor desenvolve um estilo mais “amplo”, apresentando figuras que por vezes conseguem encontrar soluções para o enigma do quotidiano. Contudo, mesmo nos textos representativos deste período, Cathedral (1984) e os últimos contos reunidos em Where I’m Calling From (1988), a linguagem verbal tende a ser substi-tuída por outras formas de comunicação, continuando a narrativa a organizar-se em torno do campo semântico da visão.

Em WWT, onde surge o conto “Viewfinder”, o choque (como total ausência de sen-tido) representa a percepção que as personagens têm do quotidiano e a violência marca por vezes os seus gestos, como sucede em “Tell the Women We’re Going” e “The Third Thing that Killed My Father Off”.5 Para mais, a reduzida capacidade de verbali-zação destas figuras é acentuada por um estilo paratáctico que tende a fragmentar a estrutura narrativa e a desarticular a sintaxe. Assim, a vocação sincrónica do conto enquanto género literário é hiperbolizada e a diegese concentra-se no presente da enun-ciação, apresentado e percebido pelas personagens como um momento autónomo, des-ligado do fluxo temporal e da possibilidade de sentido integrado. No texto em análise, porém, a imagem e a prática fotográficas geram potencialidades de sentido, após um momento inicial em que o protagonista se tornara presa do seu próprio voyeurismo.

Confrontado por um fotógrafo com ganchos de metal em vez de mãos que sobrevive vendendo polaroids de casas dos subúrbios, o narrador de primeira pessoa revela o seu fascínio pelo grotesco e convida o outro homem a entrar para beber café, clarificando sem pejo as suas intenções – “I wanted to see how he could hold a cup” (WWT, 10); note-se que a presença autoral é aqui traída pelo humor negro implícito na situação. Todavia, o fotógrafo contraria a perspectiva redutora que dele elaborara o protagonista, demonstrando possuir um elevado grau de autonomia e comportando-se com orgulhosa dignidade.

Tal é evidente nos pormenores que caracterizam as acções daquela personagem, como o facto de ajeitar o casaco após o esforço de se libertar das tiras de couro com que segura a máquina fotográfica – “Bending, hunching, he let himself out of the straps. He put the camera on the sofa and straightened his jacket” (ibidem); o seu brio pro-fissional, ao referir-se à fotografia que motivou o contacto com o narrador – “‘Personally, I think it turned out fine. Don’t I know what I’m doing? Let’s face it, it takes a profes-sional’” (idem, 11); e o à-vontade com que se arranja ao regressar da casa-de-banho, coroado por um gesto de inequívoca masculinidade – “He plucked at his crotch” (ibidem). Curiosamente, o efeito cumulativo dos detalhes acima enumerados acabará por confir-mar a percepção inicial do protagonista em relação ao outro homem – “Except for the chrome hooks, he was an ordinary-looking man” (idem, 10) –, o que indicia a possibi-lidade de identificação entre ambas as personagens. Note-se que o epíteto com que o narrador procura categorizar a alteridade enfatiza os seus parâmetros de julgamento – a aparência, aquilo que se pode constituir como objecto de um olhar pouco informado. Para mais, o fotógrafo revela ser um bom observador, e adivinha o estado em que se encontra o outro homem, invertendo os parâmetros da relação voyeurista: “He said,

VISLUMBRES FOTOGRÁFICOS EM“VIEWFINDER”, DERAYMONDCARVER

5Recordem-se as palavras de Kaufmann em “Yuppie Postmodernism”, artigo em que analisa a escrita americana da década de oitenta: “shock and enigma are seen as flatly mimetic of contemporary expe-rience” (1991: 107).

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‘You’re alone, right?’/ He looked at the living room. He shook his head./ ‘Hard, hard,’ he said” (idem, 11). Apesar da empatia demonstrada pela outra figura masculina, esta clarividência perturba o narrador, que se escuda numa atitude escapista para evitar res-ponder à pergunta com que se julga confrontado. Remete-se antes ao silêncio e acaba por sugerir um tema de conversa despropositado: “‘Three kids were by here wanting to paint my address on the curb. They wanted a dollar to do it. You wouldn’t know anything about that, would you?’” (ibidem).

Neste momento do conto, o fotógrafo encontra-se na posse de dados desconheci-dos tanto do narrador como do leitor, o que é evidenciado pelo seguinte excerto: “[he] smiled as if he knew something he wasn’t going to tell me” (ibidem). Na verdade, as implicações da sua pergunta são mais vastas do que aquelas que o termo “alone” pode-ria parecer denotar no contexto da interacção informal entre estas duas figuras. No entanto, tal só será esclarecido pela insistência com que o visitante procura recuperar a história que o outro homem silencia, fornecendo em simultâneo dados dispersos acerca do seu próprio percurso de vida.

Assim, a temática da solidão, relacionada com a ruptura familiar experienciada por ambas as personagens, vai sendo desenvolvida através das questões que o fotógrafo coloca e das suas afirmações lacunares, entrecruzadas com a tentativa de “fazer negó-cio” e vender a fotografia. Considere-se, a título de exemplo, o seguinte excerto:

I had a terrible headache. I know coffee’s no good for it, but sometimes Jell-O helps. I picked up the picture.

“I was in the kitchen,” I said. “Usually I’m in the back.”

“Happens all the time,” he said. “So they just up and left you, right? Now you take me, I work alone. So what do you say? You want the picture?” (idem, 12)6

As estratégias retóricas empregues na estruturação textual apostam na indetermina-ção e obrigam o leitor a reconstituir dados importantes, de modo a garantir a coesão e a coerência, conferindo à exegese o valor de co-enunciação e transformando a leitura num processo activo (quase detectivesco) de construção de sentidos.7 Para mais, a pro-gressão informacional é descontínua, justapondo acções pontuais, desarticuladas pela dicção paratáctica, com comentários descontextualizados e linhas de diálogo desen-contradas, como o excerto acima apresentado tão bem revela.

Também os espaços em branco que cindem o texto em cinco momentos parecem estar ao serviço da ambiguidade, visto a função que desempenham não ser clara – poderão enfatizar a incapacidade de o narrador articular logicamente os eventos, ou corresponder a uma pausa no contar, apontando para um enquadramento narrativo superior, no qual decorreria o storytelling.8 Efectivamente, o protagonista evoca várias vezes um interlocutor implícito (através dos pronomes you/ your), e o facto de “estar

28 DIANAALMEIDA

6A presença autoral é aqui novamente insinuada pelo efeito humorístico obtido com a referência à gelatina: esta revela a crendice inconsequente do narrador, tendo já antes traído o seu egoísmo infantil (ao esconder os doces das visitas).

7Para o conceito de indeterminação e de negatividade textual, consulte-se Wolfgang Iser (1978) e Jürgen Pieters (1992).

8Michael Trussler relaciona estes espaços com as declarações de Carver anteriormente citadas: “typographical gaps become a visible reminder of the invisible ‘landscape’ beneath the surface of the story” (1994: 31).

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a contar” a sua história justificaria o recurso a estratégias de textualização oriundas da oralidade. O narrador comporta-se ainda como se a “implicatura conversacional” esti-vesse preenchida e houesti-vesse, portanto, um contexto anterior partilhado entre ele e o seu interlocutor. Por fim, esta hipótese poderá ainda ser validada pelo facto de Carver recorrer com frequência ao encaixe de pequenos episódios dentro da narrativa princi-pal, relatados por uma personagem empenhada em comunicar.9

A tematização do acto narrativo é aliás feita logo no início do conto, através das palavras que o protagonista dirige à outra personagem, instigando-a a contar a história por detrás da sua mutilação – “ ‘How did you lose your hands?’ I asked after he’d said what he wanted”; o fotógrafo recusa-se, porém, a satisfazer a curiosidade do seu cliente, respondendo evasivamente: “ ‘That’s another story’” (WWT, 10). Esta história irá constituir um dos subtextos da narrativa, contribuindo para criar o sentido de ameaça latente que Carver afirma ser essencial num conto.

I like it when there’s some feeling of threat or sense of menace in short stories. (...) What creates tension in a piece of fiction is partly the way the concrete words are linked together to make up the visible action of the story. But it’s also the things that are left out, that are implied, the landscape just under the smooth (but sometimes broken and unsettled) surface of things. (Carver, 1989: 26)

Sob a superfície, esconde-se a violência de que o fotógrafo foi vítima, como este sugere a dado momento, dando a entender que os filhos foram os responsáveis pela sua amputação. Os ganchos metálicos que lhe servem de mãos são, pois, o correlativo objectivo do sofrimento provocado pelas crises conjugais e vivenciado também pelo pro-tagonista, que só perto do desfecho confirma as suspeitas do fotógrafo, declarando de modo algo lacónico: “ ‘The whole kit and kaboodle. They cleared right out’” (WWT, 11).10 Ironicamente, será esta figura destituída quem conduzirá o protagonista a uma nova visão, tal como sucede em “Cathedral”, onde um cego “guia” um narrador de primeira pessoa arrogante e egotista, construindo com ele uma experiência epifânica. Em ambos os contos o entendimento entre as personagens advém de formas de comunicação não verbais; em “Viewfinder”, porém, o percurso do protagonista é mais ambíguo e a sua aprendizagem sugerida por uma série de gestos simbólicos que nunca são por ele apre-sentados como tal.

A fotografia tematiza aqui o labor interpretativo para o qual o protagonista estará possivelmente impreparado, pois é um instrumento que aponta para os limites da super-fície apresentada e promove a busca de um nível de significação mais profundo.

Insti-VISLUMBRES FOTOGRÁFICOS EM“VIEWFINDER”, DERAYMONDCARVER

9De facto, o contar de histórias parece ser o único meio de estas personagens tentarem fazer sen-tido, sendo que em muitos casos apesar do esforço de partilha prevalece a incompreensão. Tal sucede em “Why Don’t You Dance?”, que antecede o conto em análise e cujo último parágrafo passo a citar: “She kept talking. She told everyone. There was more to it, and she was trying to get it talked out. After a time, she quit trying” (WWT, 9). Paradigmático é também o caso da narradora de “Fat”, o primeiro conto de Will You Please Be Quiet, Please?, que se empenha no relato de uma história da qual ela própria não detém a chave interpretativa, acabando por se arrepender de ter tomado a outra figura feminina como confidente: “I feel depressed. But I won’t go into it with her. I’ve already told her too much” (Carver, 1992: 8).

10Parece-me ainda que a prótese do fotógrafo lhe confere uma condição híbrida que o aproxima da máquina fotográfica. Também a descrição da maneira como as fotografias são tiradas e a utilização de lever para designar shutter button reforçam a simbiose entre o homem e a máquina.

Referências

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