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5. ENSAIO ENERGIA NO CARNAVAL

5.2 C ARNAVAL E SUAS TECNOLOGIAS

5.2.1 Dança como mobilização de energia

Nos estudos do professor e teórico da dança Rudolf Laban o conceito de Energia carrega duas acepções. Na primeira é uma característica do movimento, a resultante das qualidades Expressivas, e desenvolvida por ser atualizadores como Expressividade e Esforço68; e na segunda é um fluido universal, presente na

natureza, do qual o ser humano também se constitui e pode sentir fluir através do movimento.

Na análise de Ciane Fernandes (2006), é possível “identificar os conceitos de energia em todos os termos utilizados em LMA, inclusive e além da categoria Expressividade” (FERNANDES, 2006, P.119) Em sua leitura sobre a Análise Laban/Bartenieff em Movimento (LMA)

Em LMA, este chi ou energia é denominado Fluxo, determinado pelo movimento dos líquidos corporais (Forma Fluida) e conectando Corpo – Expressividade – Forma – Espaço. (FERNANDES, 2006, p. 320)

Energia é o modo como o movimento se estrutura no corpo humano e o efeito desse modo na percepção de si, por isso Dee Reynolds (2007) salienta uma diferença fundamental para o entendimento do termo energia na dança como diferente dos conceitos da física clássica. Energia cinestésica, em contraste à

68 O termo esforço produz a falsa compreensão de que há um gasto excessivo ou difícil, por isso

energia cinética refere à energia como é experienciada por um sujeito. Portanto, sua forma de lidar com o conceito de energia se dá em termos de seu uso pelo agente ou espectador do movimento na dança e teatro.

Essa “energia” é cinestésica como oposto à cinética. Ambos termos são etimologicamente relacionados ao movimento (grego Kinei, mover). No entanto, energia cinética pode ser quantificada em descrições científicas e inscrita em objetos inanimados em movimento, os quais não experienciam o movimento. (REYNOLDS, 2007, p.4)69

O termo energia cinestésica coloca em primeiro plano a experiência do movimento e da pausa, e em geral será trazido pela minha experiência. Apesar de seu estudo ser voltado para conectar as qualidades energéticas dos movimentos, às ideias de seus contextos, em suas conclusões, ela afirma que os trabalhos que discutiu resistem a subordinar a energia para produção de objetivos quantificáveis (inclusive significados discursivos), e ao invés “celebra a dança ela mesma como fonte de energia, a qual eles renovam e intensificam.”70 (REYNOLDS, 2007, p.208 –

209).

Os movimentos “intensificam sensação de vida como efeito material que é transmitido para o espectador sem cálculo de recuperação em sentidos codificáveis, abstraídos do corpo” (REYNOLDS, 2007, p.209)71 e por isso não podem ser

reduzidos a significados discursivos, apesar de poderem ser a estes relacionados.

Os usos inovadores de energia na dança podem curto-circuitar os habituais, inculturados padrões de esforço em um momento de

depensé que interrompe a cadeia de significados e excede a

contabilização da capacidade de comunicação discursiva.72

(REYNOLDS, 2007, p. 208)

69 Tradução da autora para o texto original: “This energy is ‘Kinesthetic’ as opposed to ‘kinetic’. Both

terms are etymologically related to movement (Greek kinein, to move). However, Kinetic energy can be quantified in scientific descriptions and ascribed to inanimate objects in motion, which have no experience of movement.”

70 Tradução da autora para o texto original: “(...) celebrate dance itself as a source of energy, which

they renew and intensify”. (REYNOLDS, 2007, p.208 – 209)

71 Tradução da autora para o texto original: “amplify and intensity sensations of ´life´ as material

effects that are transmited to spectators whiout calculation of recuperation into codifiable meanings, abstracted from the body”. (REYNOLDS, 2007, p.209)

72 Tradução da autora para o texto original: “The use of energy in depensè, wich pits expenditure and

loss against recuperation and profit, also resists recuperation of meaning and affirms instants os non-discursive communication” (REYNOLDS, 2007, p. 208)

Dessa forma, Reynolds afirma a importância do estudo da energia cinestésica como parte ainda pouco explorada da pesquisa em dança. Em seu doutorado Goretti Rocha (OLIVEIRA, 2017) apresenta uma análise coreológica do frevo. Para ela, o fluxo-livre prevalece no frevo, sendo que a “qualidade de energia é rápida e forte”.

Eu posso concordar que o sentido geral da dança do frevo envolva o Fluxo Livre, principalmente quando dançado despretensiosamente em relação a utilização do vocabulário tradicionalizado. Porém dois motivos me levam a propor que a análise de Expressividade (Esforço, Dinâmica ou Energia do Passo) se oriente não apenas para sua globalidade mas também para suas especificidades.

Primeiro, como a dança é construída a cada realização por uma relação direta com a música, dialogando ou aderindo a diferentes elementos dinâmicos desta, a forma de realização dos movimentos varia em sua dinâmica de acordo com essa relação. Segundo porque, apesar de uma tendência ao fluxo livre, o frevo tem a base rítmica constante a qual sempre se retorna. Inclusive, a maioria dos passos são construídos marcando ou o tempo ou o compasso musical. Há, portanto uma alternância constante entre o fluxo livre e contido73.

Como exemplo apresentarei uma abordagem de energia cinestésica de alguns movimentos tradicionalizados. Nascimento do Passo apontou em entrevista a Goretti Oliveira (2017) que os movimentos tradicionais do Passo antes do processo de escolarização eram poucos: tesoura, saca-rolha, parafuso, dobradiça, chã de barriguinha. Analisarei estes que emergem nessa virada de século, a partir do que hoje nomeamos com esses termos. Nesses movimentos, o vai e vem é parte de um modo de viver um aqui e agora que é ao mesmo tempo passado e futuro, lá e cá. Experiências de instabilidade, com molejo, sacolejo e afirmação. Cada passo com sua energia criando um modo de reconhecer a própria liberdade e os limites da autonomia.

73 Conforme apontado pela prof. Ciane Fernandes (FERNANDES, 2010), o uso do Perfil de Análise

Kastemberg, ao proporcionar uma percepção mais complexa das flutuações de fluxo permitiriam uma análise aprofundada. Discípula de Laban, Kastemberg desenvolveu ums estrutura de combinação de fatores de movimento e atividades neurológicas básicas que evidenciam a necessidade de combinação de formas de leitura da Expressividade/Esforço.

Figura 29 Mestre Wilson fazendo o passo Dobradiça.

Dobradiça é um movimento realizado frontalmente, através das dobras possíveis das articulações. Colocando o peso nas pontas dos pés, os joelhos dobram-se e o troco pende para trás desde o quadril. Esta “pose” composta por duas flexões é um momento do movimento. O outro momento se realiza pela extensão das articulações de pés e pernas e flexão do quadril. Parte do peso do corpo passa para o calcanhar, estica-se o joelho e o tronco dobra-se para frente construindo uma posição de frágil equilíbrio, ao que os braços organicamente respondem se abrindo e levantando.

A dobradiça é realizada em tempo acelerado, geralmente acompanhando pontuações da música. Realizado com velocidade, a sensação é de solavancos. Realizado de forma sustentada, cada “pose” traz uma sensação diferente. A dobra nas pontas dos pés traz uma sensação jocosa de desmantelo, com o peso nos calcanhares o corpo estica-se em busca de apoio no ar e há uma sensação de perigo de queda.

O tônus não é realizado com peso muito forte. Na verdade, quanto mais hábil nessa coordenação motora menos se exige força muscular. Esta fica localizada nas musculaturas de sustentação, no caso, abdômen e coxas. A variação do fator peso fica a cargo da escolha do passista, da qual resulta sua expressividade. Por exemplo, a dobradiça pode ser realizada como ação de chacoalhar (espaço direto, peso leve, tempo acelerado) ou de socar (espaço direto, peso forte, tempo acelerado), em fluxo mais livre ou em estacato (criando pausas maiores entre os

movimentos). As sensações dessas Energias remeterão a um Sacolejo, um Supapo ou uma suspensão.

Figura 30 Mainee Ingrid fazendo o Parafuso e apertando a porca. Foto: Valéria Vicente.

Parafuso se organiza com uma perna cruzada na frente da outra com joelhos dobrados. Apenas um pé apoia o peso do corpo, o outro pé toca o chão com a parte de cima, conhecida como peito do pé, oposta a outra parte conhecida como planta do pé. O movimento consiste em brincar de transferir o peso de um pé para o outro, o que faz o corpo torcer e retorcer. A imagem de um parafuso enroscando e desenroscando é bastante evocativa do percurso formal que o corpo desenvolve. A pessoa experimenta uma dinâmica instável sem cair. A relação espacial é tridimensional pois todos os planos são ocupados ao mesmo tempo. O centro do corpo varia de uma diagonal para outra, mas o tronco se mantém numa orientação para frente. Nesse movimento eu posso experimentar níveis de instabilidade possíveis, deslocando mais ou menos o quadril lateralmente e níveis de flexibilidade, dobrando ou esticando os joelhos. Esses deslocamentos de peso provocam em mim uma alegria pueril.

O movimento da tesoura está mais formalmente ligado à estrutura da capoeira. Pode ser lido como duas gingas intervaladas por um pequeno salto abraçando o corpo. Seguindo o pulso da música é uma ginga extremamente acelerada em relação a como praticada na capoeira. Na capoeira, a ginga mantém a posição frontal, no frevo cada ginga é feita na direção oposta e para isso, o movimento de perna ao invés de voltar para frente (na posição de base paralela), cruza por trás da outra perna fazendo o corpo girar. Assim o corpo dobra-se para frente, a cada vez para uma direção diferente, num abraço a si mesmo e abre-se expandindo os braços e pernas. A passagem de um momento de abertura para outro funciona como um salto rasteiro para a posição das pernas dobradas e cruzadas e braços cruzados na frente do tronco. Expansão e contração ampliam o espaço da minha cinesfera. O equilíbrio precário da ginga é firme. O espaço é sentido como circular, tridimensional, devido às variações de ocupação. Sensação de potência, força, flexibilidade, alerta. Provoca uma atenção multifocal.

Com estes exemplos, vê-se que cada passo tem uma estrutura formal que indica um direcionamento espacial. Dependendo desta estrutura e direcionamento há uma predominância de Dinâmica.

Assim como a música, o passo e a forma de fazê-los envolvem uma multiplicidade. Cada passo é, ao mesmo tempo, único e múltiplo. Três camadas de percussão – o bombo em ritmo binário, o caixa cheio de repiques e o pandeiro com inúmeras variações; um naipe de metais que desenvolvem uma linha melódica e um naipe de palhetas que responde à primeira melodia com outra lógica. É como se a cada quatro compassos um discurso diferente fosse emitido por sobre a base percussivas complexa. A música desses metais e palhetas são rítmico-melódicas e, portanto, criam pontuações e paragens que constroem o ritmo sincopado característico do frevo.74

Um dos motivos que Goretti Oliveira atribui ao contágio dessa música, relatado pelos passistas e pesquisadores, advém do ritmo “motor sincopado” pois “os ritmos sincopados sempre instigam o envolvimento entusiasmado do corpo” (BARTTENIEFF e LEWIS, 1997, p. 71 apud OLIVEIRA, 2017).

O passista como ser livre, usufruidor da condição de liberdade, responde a seu contágio a seu bel prazer, compondo uma dinâmica própria a partir dessas

dinâmicas75. Essa característica, que fez o frevo ser considerado “a dança mais

arbitrária que existe” (OLIVEIRA, 1985), parece ter se diluído ao longo do processo de sistematização dos movimentos tradicionais e da criação de novos. Mesmo assim, um olhar apurado verá que mesmo em escolas que privilegiam dançar no pulso, vez por outra os movimentos “seguem” as dinâmicas e acentuações dos instrumentos melódicos.

Eu vivo o frevo como uma dança de alternância e irregularidade dentro de uma estrutura com regularidade. As formas do movimento alternam-se entre abrir e fechar, esticar e encolher, torções para direita e para a esquerda, torções entre a parte superior e inferior que vão e voltam (torcem e retorcem), agachamentos e saltos, encolher e esticar, pois grande parte dos passos é composto por dois movimentos – a ida e a volta.

Se cada pessoa, ao ressoar fisicamente a afetação do frevo no seu corpo, se torna passista, o passo em primeira análise é a materialização dessa afetação. O passo é corpo energeticamente modificado através de uma dinâmica específica. Ao se aproximar dessa energia através do passo a pessoa ativa um complexo de sensações que não apenas lhe são próprias, mas que estão sendo construídas naquele momento. O corpo pessoal (físico, energético, cognitivo), ativado pela vibração do movimento sente a si. Então, o significado atribuído será desse momento singular, de uma pessoa singular, num momento singular, porém direcionado pela estrutura que o passo trás enquanto organização possível.

É na combinação com a música que se encontra as energias potenciais de cada passo. O acontecimento do Passo junto às orquestras de frevo constitui um momento em que essas energias são mobilizadas e atualizadas. Posso relacionar esta dinâmica com a compreensão de Renata Lima sobre o estado Liminar e Jogo que observa na capoeira e samba de roda:

o estado de jogo, promovido, pela relação paidia e ludus, isto é, a entrega e envolvimento potencial do brincante estimulada ou mesmo propiciada pela estrutura do evento, a saber – a musicalidade, as relações de jogo e as matrizes corporais. Nesse contexto, a paidia diz respeito à disponibilidade do brincante de se envolver com o evento de forma espontânea, com abertura para que as

75 Devo a Jaflis Nascimento esta compreensão do passista como mais um instrumentista,

corporeidades próprias da capoeira angola e dos sambas de umbigada se atualizem. (SILVA, 2010, p.98)

É nesse sentido que fazer o passo se distancia da compreensão de execução de movimentos e se coloca como um meio de ativação das fontes de energias coletivas e individuais ao mesmo tempo.

O que pode ser também compreendido na afirmação de Wilson Aguiar que costuma dizer que com o frevo ele pratica a felicidade: "No frevo é que eu consigo exprimir toda a minha alegria. Naquele momento em que estou fazendo o passo, é o êxtase, é o cume do meu estado mental. Ali, eu estou no plano intermediário entre a alegria e a felicidade". Na compreensão do passista Ferreirinha, criador do projeto Frevosofia, “Apesar da exibição, eu danço para meu regozijo. Depois que comecei a tomar consciência do frevo, da riqueza que ele tem e do instrumento que ele é para intensificar meus impulsos vitais, tenho mais disposição, tranquilidade, percepção, equilíbrio” (FERREIRINHA apud VICENTE, 2017).

Esta investigação me fez focalizar em como uma disposição corporal pode ser mobilizadora de diferentes dinâmicas energéticas. A leitura energética, a partir de um engajamento somático com o ambiente, pode ser vista como ferramenta para transformação da compreensão da dança do Frevo, e de sua prática, pois aponta para um modo de ativar o repertório tradicionalizado potencialmente libertador. Atualmente, quanto mais me conecto com os impulsos musicais do frevo mais me sinto conectada com as descrições do frevo no início do século. Um “esperneio no meio da rua” (OLIVEIRA, 1985, p.11), um desmantelo imprevisível que se faz e desfaz. O frevo, como uma prática da liberdade guia agora, mais amplamente, meu jeito de brincar carnaval.

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