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Darmo-nos tempo para entendermos o tempo do outro: quanto tempo temos? As

CAPÍTULO V – A discussão dos dados

5.1 Darmo-nos tempo para entendermos o tempo do outro: quanto tempo temos? As

Inicialmente indivíduos, enfermeiras. Com trajetórias distintas, enxergando o cuidar com lentes diversas, por vezes contraditórias. Um coletivo que se disponibilizou a criar um grupo-sujeito, incitando o devaneio de criar um modo de cuidar similar a esse modo de pesquisar. Mas, sobre isso falaremos mais adiante. Nesse momento, tratamos de sintetizar o estabelecimento do GP.

O GP foi instituído. Sim, conseguimos após longos meses de sensibilização e convocação, recuos e desistências, reunir enfermeiras para discutir o cuidado prestado as pessoas internadas no hospital psiquiátrico.

Pesquisas afirmam que os concursos e processos seletivos são feitos para selecionar enfermeiros, independentemente de sua especialidade (Silva & Ferreira, 2011). O perfil do GP reitera esses estudos ao asseverar uma preocupação com a especialização profissional, ainda que em outras áreas de conhecimento, e não em psiquiatria/saúde mental, o que talvez possa ser explicado pelo programa de aprimoramento profissional existente no cenário em voga, que prevê benefícios financeiros mediante a comprovação de determinadas horas de capacitação em cursos de saúde geral.

Não obstante à complexidade da vida moderna, ao fato de profissionais da saúde trabalharem em mais de um lugar para composição de suas rendas mensais, e, assim, do real contratempo da instituição do GP, pareceu-nos, por meio das respostas dadas no momento do convite, que a motivação das enfermeiras ao encontro era idêntica a justificativa de outras que não participaram: pensar o cuidado. Pois, acrescido à falta de tempo outra resposta, fora anunciada: “Não quero pensar o trabalho, me desculpa. O que eu ganho em troca? Nada

nessa instituição vai mudar!”

Essa escuta durante o processo de constituição do GP provocou estranhamento sobre o valimento do cuidado, e os embaraços para equalização daquilo que as enfermeiras pensam e do que realizam. A dualidade que buscamos a todo instante nos distanciar se fazia presente, teoria e prática, reflexão e ação. Pois, ainda que as enfermeiras conclamassem por um espaço para dizer, dado que incitavam conversas livres sobre a temática, afirmavam, ao mesmo tempo, não desejar pensar o trabalho e apenas executá-lo. E, finalizavam dizendo que ainda que desejassem, não teriam tempo. Uma ressalva: todas as enfermeiras que constituíram o GP possuíam mais de uma jornada de trabalho à época da produção de dados.

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Depreendemos com a instituição desse GP que a temática tempo reverberava nesse grupo, e quiçá nas nossas vidas. Despontado pela ausência, ou pela dificuldade de organizá-lo. O tempo que parece determinar as atitudes dos profissionais, é, concomitantemente, e, curiosamente, o mesmo tempo decisivo para a internação psiquiátrica das pessoas. Ora marcado por uma incontinência verbal, ora por uma aceleração comportamental, sintomas não cabíveis no tempo de fala e movimento da sociedade fomentam a resistência do hospital como espaço para cuidar daquilo considerado intolerável pelo social.

Pál Pelbart (1993) afirma que o desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Não se libertar do tempo, como quer a tecnociência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. No tocante à loucura diz ser preciso dar-lhe tempo. Um tempo que não é o tempo do relógio, nem o do sol, nem o do campanário, muito menos o do computador. Um tempo sem medida, amplo, generoso. Um tempo que nós mesmos não temos.

Vimos a sociedade refutando aqueles que não conseguem atender ao tempo da produção capitalista. Qualquer contratempo pode exprimir descompromisso, incapacidade de seguimento as regras, elevando inclusive o índice de internações psiquiátricas. Ao virmos o desvio não cabendo na sociedade, lançamos outras indagações: quem cabe? Partindo do pressuposto que cada indivíduo possui seu próprio tempo, há possibilidade de construirmos um tempo comum? Como banir a intolerância ao diferente da nossa sociedade?

Pál Pelbart (1993) sugere uma crítica ao capitalismo que instituiu o lema "tempo é dinheiro", tornando preciso fazer o máximo no mínimo de tempo, maximizar a produtividade, deslocar-se na maior velocidade possível. Precisaríamos resistir à essa busca inalcançável, uma das responsáveis pelas formatações castradoras precursoras da loucura.

Uma passagem de Nietzsche (1995) subsidia a ruptura, ou, minimamente fomenta o distanciamento dessa busca pela formatação, pelo enquadramento de todos no mesmo ritmo.

[...] o maldito idealismo – é a verdadeira fatalidade em minha vida, o estúpido e supérfluo nela, algo de que nada bom resultou, para o qual não há compensação ou contrapartida. Como consequência desse ―idealismo‖ explico a mim mesmo todos os desacertos, todos os grandes desvios do instinto. [...] quando estava quase no fim, pus-me a refletir sobre essa radical insensatez de minha vida – o idealismo (NIETZSCHE, 1995, p. 39).

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Na contramão desse idealismo, emerge o caráter intervencionista da Sociopoética! A instituição do GP registrou a criação de um tempo partilhado, ainda que pontual, intermediado pelo poético, sensível e humano. A valorização do intuitivo como um dos pilares da ciência. A defesa de que a diferença produz conhecimento, vida e respeito a um tempo mais singularizado. Contudo, não desconsiderando o dito por Pál Pelbart (1993) que, em geral, temos muita pressa, que não temos tempo nem paciência para sustentar o ponto do surgimento do tempo, pois somos amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro já embutido no presente.

Nessa contradição, introduzimos o cuidado, referimo-nos àquilo que podemos criar para/com o outro, de maneira oposta a meramente tamponarmos seus sintomas. Sem a idealização do análogo. Segundo Tonelli (2008), viver em sociedade significa construir relações entre tempo e espaço como orientadores fundamentais para o convívio, tendo o movimento continuamente presente, seja o do próprio corpo, seja o da Terra.

O GP anuncia a urgência de perfilarmos relações de cuidado em respeito aos tempos. Pál Pelbart (1993) menciona que a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo é uma necessidade para o pensamento, para as artes, mas principalmente para a loucura.

A questão seria saber como as propostas alternativas em saúde mental pensam preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho (PÁL PELBART, 1993, p. 31).

O autor nos ajuda a entender que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou uma velocidade de outra ordem), mas, também solicita uma desaceleração. A loucura é a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma de colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro tempo (PÁL PELBART, 1993). Desse modo, destaca-se a inevitabilidade de pensarmos a relação desse GP com o tempo.

Não nos esquivando que o lugar que ocupamos precisa ser considerado, as reflexões aqui apresentadas passam pelo que somos e fazemos, do quanto nos autorizamos a ser e estar, e do quanto consideramos imprescindível às enfermeiras, por meio do cuidado, fomentarem como na canção de Gilberto Gil esse tempo-rei.

141 [...] Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Oh Tempo Rei! Transformai

As velhas formas do viver Ensinai-me

Oh Pai!

O que eu, ainda não sei Mãe Senhora do Perpétuo Socorrei!...

Na direção de que talvez não seja mesmo possível fomentar um tempo comum. Os tempos das pessoas são distintos e a convivência com o diferente a questão nodal, a complexidade da vida (seria esse o achado?). Imbuídas do devir-revolucionário-pesquisador, tencionamos que, assim como esse GP criou tempo para os encontros de produção de dados, porventura poderão, gradativamente, estabelecer relações diferentes com o tempo, e consequentemente, construírem tempos possíveis para o cuidar.