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4 PA’ QUE BAILEN LOS MUCHACHOS: DA RELEVÂNCIA DA MILONGA NOS

4.2 Das imbricações corpo-ambiente

Para melhor compreender como o tango se adapta aos novos espaços, apresenta-se a seguinte perspectiva sobre a relação corpo-ambiente. Como se apontou no capítulo anterior, a milonga é contaminada pelo ambiente assim como este é também transformado na ação. Observou-se que a Milonga Beneficente adotou características próprias dos bailes de salão de Salvador, assim como o ambiente das danças de salão foi contaminado pelo movimento tanguero da cidade.

Fabiana Dultra Britto (2008) afirma que são as propriedades das coisas que estabelecem suas condições de relacionamento, que não se constituem como a simples soma das configurações, mas como processos que acontecem em tempo e espaço:

São processos e, como tais, não ocorrem no vácuo, mas engendram- se pela ação da temporalidade que é ininterrupta e promove modificações irreversíveis nos estados das coisas.

Submetidas desde sempre à degradação imposta pela ação do tempo, as coisas existentes manifestam-se como sínteses transitórias dos seus processos relacionais com outras em seu ambiente de existência. Seus estados, portanto, são sempre circunstanciais, por mais estáveis que pareçam. E seus processos interativos bem menos nítidos do que se costuma supor. (BRITTO, 2008, p. 11)

Esta perspectiva considera as coisas na sua co-implicação contextual e contínua reconfiguração. A história do tango mostra que cada movimento de reterritorialização configura um novo tipo, com características específicas que lhe permitem sua adaptação ao novo ambiente. O ambiente é entendido aqui como o

conjunto de condições que possibilita o acontecer das interações. “Nessas interações, as coisas afetam-se reciprocamente e produzem sínteses que traduzem-se em comportamentos adotados, conforme a eficiência adaptativa que demonstrem nas situações em que operam.” (BRITTO, 2011, p. 5)

O tango, como qualquer outra ação humana, se desenvolve nestes processos de co-determinações, o que imprime nele características emergentes destes processos: um novo tango, como apontara Pelinski (2008). Desde esta perspectiva o tango pode ser entendido como um sistema dinâmico em continua transformação, como uma possibilidade infinita. As novas sínteses surgem como variações de uma continuidade. Neste sentido Britto afirma:

Ao reconhecer o caráter genuinamente criativo dos relacionamentos – porque configurador de estruturas – chega-se a um sentido de

continuidade totalmente avesso à noção conservacionista de

preservação da dita “identidade” das “coisas em si” – pois que a matéria não se conserva – e afeito à noção dinâmica de reorganização contínua das configurações existentes, pela ação dos relacionamentos que estabelecem com outras em seu ambiente de existência. (BRITTO, 2008, p. 13)

Baseada nos conceitos do biólogo Richard Dawkins, Britto (2008) aponta:

O design das coisas seria, então, simultaneamente causa e efeito da configuração (também transitória) do seu ambiente de existência que, assim, livra-se do sentido meramente topográfico para adquirir importância co-determinante das condições de historicidade – e de corporalidade. (BRITTO, 2008, p. 13)

O tango em Salvador, está referenciado no tango rio-platense, principalmente. Porém, nas milongas pesquisadas foi possível observar como as recriações de um mesmo roteiro se materializam de forma sempre diferente. Ela se configura de forma diversa a como acontece no Rio de la Plata e, logicamente, em outros ambientes ao longo do mundo. A comunidade tanguera de Salvador, no entanto, pode ser pensada como uma continuidade de um ambiente maior, constituído pelo tango rio-platense, bem como pelas suas variadas reescritas ao longo do planeta e viabilizadas pelo ambiente mediático.

Nas observações realizadas durante a pesquisa em Salvador, ficou também evidente que o tango dialoga com o ambiente das danças de salão, assim como Vagner Rodrigues observou na cidade de São Paulo. Porém, desde a perspectiva da

co-evolução, esta observação (das similitudes entre os processos de disseminação em uma e outra cidade) “embora permita deduzir possibilidades de conexão, não é suficiente para explicar seus procedimentos relacionais e tão pouco para prever o grau de ‘sucesso’ deles – a ressonância de seus efeitos”. (BRITTO, 2008, p. 12) Em outras palavras, aceitar a perspectiva da co-evolução não significa alcançar uma equação para prever as ações e os seus resultados, mas assumir que “a Dança, seja artística ou social, é sempre um evento instaurado pelo corpo em movimento e cuja ocorrência é situada espacialmente”. (BRITTO, 2008, p. 12). Pensando nos processos de transmissão do tango, a ideia de continuidade apontada por Britto (2008), permite pensar a prática não como uma reprodução de certa identidade a priori, mas como uma recriação co-determinada no ambiente específico de ação.

Na mesma linha de pensamento, o autor brasileiro Muniz Sodré, traz a ideia de ancestralidade para pensar os processos culturais na América Latina. Segundo o autor, a ancestralidade pode ser entendida como “princípio fundador” dentro das fases da História. Sendo a tradição constituída por formas ou conteúdos que podem ser repetidos, é possível “pela e na repetição, acionar os poderes da diferenciação da ancestralidade”. (SODRÉ, 1999, p. 67). Esta perspectiva deriva numa ideia de identidade como contínuo de transformações, como devir: “Ou seja, a identidade não é nada substancial, mas uma continuidade lembrada – por mensagens, apelos, respostas – e reinterpretada” (SODRÉ, 1999, p. 67) Sodré entende que na repetição é inevitável a transformação, questionando as posturas tradicionalistas que minam o pensamento colonizado. Sobre esta tradição conservadora Sodré aponta:

Tem sido utilizado pelo Ocidente para trabalhar tanto fantasmas próprios como alheios: os colonizadores europeus têm sido grandes fabricantes de “tradições étnicas” nos países do chamado Terceiro Mundo, com vista a uma melhor administração de contradições e conflitos. No ato de reelaboração da temporalidade alheia, redefinem- se valores e hábitos em função de parâmetros eticopolíticos compatíveis com a ideologia da colonização, ou seja, com um Igual administrável pela lógica do Ocidente. (SODRÉ, 1999, p. 69)

A ideia de ancestralidade aqui proposta, ajuda a compreender minha prática com tango na cidade de Salvador, já que mesmo reterritoriallizando-se aqui e se configurando nas relações com as características do ambiente local, o tango que emerge se relaciona também com uma continuidade espaço-temporal que se estende até o Rio de la Plata: uma ancestralidade em constante devir nas co-determinações

com o ambiente. Os processos de transmissão do tango são entendidos desde uma perspectiva não essencialista, mas que dá conta das relações entre o tango reterritorializado em Salvador, com um ambiente ao que se olha como referência: o tango rio-platense, presente nas memórias corporais. Neste sentido Fabiana Britto aponta:

As corporalidades, ou melhor, as corpografias (como já sugerimos denominar em outros trabalhos) expressam o modo particular de cada corpo conduzir a tessitura de sua rede de referências informativas, a partir das quais, o seu relacionamento com o ambiente pode instaurar novas sínteses de sentido ou, coerências. Desse modo, é possível tanto compreender as configurações de comportamento como memórias corporais resultantes da experiência de espacialidade, quanto compreender as configurações dos ambientes como memórias espacializadas dos corpos que os experimentaram. (BRITTO, 2011, p. 5).

Dito isto, é possível entender a prática a partir da ideia de co-implicação entre o corpo com suas memórias ativadas por “uma força propulsora, de fidelidade pela mudança” (SODRÉ, 1999, p. 66), e o ambiente de ação.

4.3 A relevância da milonga nos processos de transmissão do tango na cidade