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1. Câncer infanto-juvenil no Brasil: Percurso histórico

1.1. Desenvolvimento científico

1.1.1. Das primeiras evidências às teorias atuais

A primeira descrição conhecida do câncer é do médico egípcio Imhotep, que viveu em torno 2625 a.C (Mukherjee, 2012). Escrita em um papiro traduzido em 1930, o médico relata 48 casos de diversas doenças, sendo um deles uma descrição típica do câncer de mama, uma massa saliente no peito, fria, dura e densa, que se espalha insidiosamente debaixo da pele. Cada caso descrito no papiro é acompanhado de uma discussão concisa dos tratamentos, ainda que apenas paliativos, mas, com relação à massa no peito, ele apresenta apenas uma frase: “Não existe”.

Após essa descrição, o câncer praticamente desaparece da história da medicina antiga e somente no século IV a. C. que há a primeira definição da doença. Os escritos hipocráticos inauguram, na literatura médica, a palavra grega, karkinos, em alusão ao caranguejo, que o latim traduzirá em câncer (Mukherjee, 2012). A medicina inaugurada por Hipócrates representa a preocupação da sociedade grega com a mecânica dos fluidos (rodas hidráulicas, pistões, válvulas, câmaras, comportas) e, portanto, para qualquer doença, ele concebe a doutrina baseada em fluidos e volumes. Nessa concepção, o corpo humano é composto de quatro fluidos, chamados humores: o sangue, a bílis negra, a bílis amarela e a fleuma, com suas respectivas cores: vermelha, negra, amarela e branca, sua viscosidade e seu caráter essencial. No corpo normal, esses quatro fluidos mantém um equilíbrio, na doença, o equilíbrio é desfeito pelo excesso de um dos fluidos.

A teoria humoral de Hipócrates tem como principal defensor o médico Claudius Galeno, que, em seu estudo, intitulado “Tratado dos Tumores” (por volta de

160 d.C.), atribui a etiologia do câncer a um desequilíbrio da bílis negra, que se encontra estática, incapaz de circular no corpo, congelada em uma massa opaca (Imbault-Huart, 1985 e Mukherjee, 2012). Segundo a teoria de Galeno, o câncer é uma doença sistêmica, sendo os tumores suas manifestações visíveis. A ideia do desequilíbrio de fluidos se mantem presente na medicina ocidental até o século XVII, sendo que, a partir do século XV, a descoberta do sistema linfático modifica a visão relacionando a doença ao desequilíbrio da linfa nos organismos (Teixeira & Fonseca, 2007). Estabelece-se que o tratamento mais apropriado é o regime alimentar adequado, medicamentos e sangrias, contraindica-se a intervenção cirúrgica, pois, a bílis voltaria a fluir.

Almeida Filho (2014) lembra que a teoria dos humores marca as práticas médicas até final da Idade Média (século XV), sobretudo porque a dissecação humana é prática proibida na época, acarretando pouco conhecimento da anatomia e fisiologia humana. Foucault (1984) escreve que o processo que culmina no aparecimento da anatomia patológica marca o princípio da medicina científica moderna, no final do século XVIII.

Esse processo começa com o Renascimento, movimento iniciado no século XV, que, através da arte – pinturas e esculturas –, evidencia o corpo, ao retratá-lo nú, principalmente o feminino (Fernandes Júnior, 2010). Isso favorece a curiosidade de cientistas e médicos para tratar as doenças. Além disso, as Revoluções Burguesas (séculos XVII e XVIII) e a Revolução Industrial (século XIX) promovem uma nova fase da ciência baseada na metodologia e no empirismo, possibilitando invenções e descobertas, com significativo desenvolvimento e que lança as bases para os avanços tecnológicos do século XX (Romero, 2015).

Dois pesquisadores são responsáveis pelo desenvolvimento da anatomia humana e pela refutação da teoria galênica (Mukherjee, 2012). Em 1538, Andreas Vesalius, estudante belga de anatomia e patologia, diante da ausência de mapa dos órgãos humanos, produz um mapa anatômico para cirurgiões, desenhando sistematicamente cada vaso e nervo do corpo. Em 1793, Matthew Baillie, anatomista de Londres, publica “The morbid anatomy of some of the most important parts of the human body” (A anatomia mórbida de algumas das partes mais importantes do corpo humano), descrevendo cânceres de pulmão, de estômago e de testículos, em que apresenta nítidas gravuras desses tumores. Vesalius desenha a anatomia do corpo saudável e Baillie a anatomia do corpo doente e em nenhuma delas, os

humores são encontrados, desafiando a cientificidade dos conceitos anatômicos de Galeno.

Somente no final do século XVIII, o câncer é concebido como uma doença local que se manifesta no tecido em diferentes órgãos (Imbault-Huart, 1985). Para essa mudança os pesquisadores se apoiam nos estudos do anatomista italiano Giovanni Battista Morgagni (1662-1771), que enfatiza a localização corpórea das doenças em determinado órgão do corpo e na teoria dos tecidos do médico francês Marie François Xavier Bichat (1771-1802), que localiza as lesões nos tecidos como origem das várias patologias.

Outro importante avanço que direciona as investigações sobre o câncer é o emprego do microscópio para fins científicos, a partir da segunda metade do século XVII (Imbault-Huart, 1985). Em 1838, Matthias Schleiden e Theodor Schwann afirmam que todos os organismos vivos são formados por células. Com essa noção, o pesquisador alemão, Rudolf Virchow propõe a hipótese que o crescimento do organismo só pode ocorrer ou pelo aumento do número de células – hiperplasia - ou pelo aumento do tamanho delas – hipertrofia (Mukherjee, 2012). Assim como o crescimento normal, o crescimento patológico também pode ser alcançado por hipertrofia e hiperplasia. Observando o crescimento do câncer ao microscópio, Virchow descobriu um crescimento incontrolável das células, que ele chamou de neoplasia, uma palavra já existente, usada para descrever crescimento novo, inexplicável e distorcido.

Essa ideia do câncer como uma doença da célula se fortalece no século XX. Mukherjee (2012) situa que, no início do século, a teoria do câncer, que lentamente se solidifica, explica-o como uma doença de hiperplasia patológica, na qual as células adquirem poder autônomo e incontrolável para se dividir. Nessa concepção, a divisão celular descontrolada cria massas de tecido, os tumores, que invadem órgãos e destroem tecidos normais, podendo também se espalhar de um órgão para outro, causando metástase. A noção de metástase é introduzida pelo cirurgião francês Joseph Claude Anthelme Recamier, em 1829, ao observar um tumor secundário no cérebro de uma paciente inicialmente atingida por um câncer no seio. (Imbault-Huart, 1985 e Teixeira & Fonseca, 2007).

Sucessivamente, em 1912, tem início as investigações sobre o cancro orientadas no sentido do nó celular, que prossegue até os dias atuais, e corresponde a uma mutação do material genético da célula que deixa de obedecer às leis da

homeostase e se multiplica por sua própria conta (Imbault-Huart, 1985). Essa discussão se fundamenta na teoria de Theodor Boveri, construída no início do século XX, sobre as anormalidades cromossômicas que indicam a causa do crescimento patológico característico do câncer (Mukherjee, 2012). Porém, devido à teoria que sustenta uma causa viral para o câncer, considerada mais consistente pelos pesquisadores, sobretudo pela esperança de uma cura universal através de vacinas, somente em 1970 que os genes e as mutações voltam a interessar os estudiosos.

Em 1971, Judah Folkman descobre o papel central da angiogênese no crescimento do tumor e na sua metástase, demonstrando que um tumor pode formar uma rede de novos vasos sanguíneos e, assim, adquirir seu próprio suprimento de sangue (Fiocruz, n.d.). Essa teoria se torna bem estabelecida no final dos anos 1980.

As formulações sobre o mecanismo genético da célula normal e da célula oncológica culminam nas noções de dois principais tipos de genes que desempenham papéis imprescindíveis na origem do câncer:

O proto-oncogene, explicado por Harold Varmus e Michael Bishop. Segundo os pesquisadores, as mutações induzidas por substâncias químicas ou por raios X causam câncer não porque genes estrangeiros penetram as células, mas devido a ativação de proto-oncogenes endógenos. Assim, o proto-oncogene é precursor do oncogene, estão presentes nas células normais e quando ativados por mutação ou superexpressão, promovem o câncer. Essa teoria é publicada em 1976 e em 1989, Varmus e Bishop recebem o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina.

O Gene supressor de tumor, também chamado de antioncogene, descoberto por Stephen H. Friend, Robert Weinberg e Thad Dryja, em 1986, indica que o câncer também pode ocorrer pela desativação de um antioncogene (Fiocruz, n.d.). Os genes supressores de tumor protegem a célula contra uma fase no avanço para o câncer, quando sofrem mutação ocorre perda ou redução dessa função, assim, a célula pode avançar para o câncer, geralmente, em combinação com outras mudanças genéticas (Mukherjee, 2012).

A partir da década de 1990, a oncologia diminui suas expectativas de soluções universais e curas radicais e se empenha em aprofundar as pesquisas genéticas oncológicas, para explicar os princípios fundamentais que governam cada forma de câncer. Os proto-oncogenes e os genes supressores de tumor são

identificados em grande número no genoma humano, Mukherjee (2012) contabiliza cerca de cem. Os cientistas percebem que a ativação ou a desativação de qualquer gene provoca apenas os primeiros passos de um longo caminho rumo à carcinogênese, em que sucede muitas mutações em muitos genes e com muitas repetições. O autor citado resume que o câncer não é simplesmente genético em sua origem, ele é genético em sua totalidade, podendo conceber a vida do câncer como um resumo da vida do corpo, sua existência é um espelho patológico da nossa.