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1. Câncer infanto-juvenil no Brasil: Percurso histórico

1.1. Desenvolvimento científico

1.1.2. Os caminhos para a cura

A teoria inquestionável da bílis negra para justificar o câncer divide os cirurgiões da Idade Média quanto à intervenção cirúrgica para remoção de tumores, considerada uma solução local para um problema sistêmico. Poucos são os médicos que se arriscam nesse tratamento, por exemplo, em 1320, Henri de Mondeville, notório por ser médico do Rei da França, Philippe IV le Bel, escreve: “Nenhum cancro se cura, a menos que seja extirpado por inteiro; com efeito, por pouco que reste, o mal cresce na raiz” (citado por Imbault-Huart, 1985, p. 179). No entanto, Ambroise Paré (1509-1590) opta pela sangria, não considerando útil a erradicação, exceto se o cancro é pequeno.

Outra teoria para definir a formação do câncer é formulada por Sennert (final do século XVI), afirmando que se trata de um mal contagioso (Imbault-Huart, 1985). Tal afirmação se mantem por dois séculos, obscurecendo os avanços científicos acerca da doença, pois grandes esperanças são frustradas na tentativa de criar uma vacina ou um soro. Outra consequência dessa ideia é a exclusão ou a recusa de acolher os cancerosos em muitos hospitais. Por isso, em 1740, em Reims/França, é fundado um asilo para cancerosos, destinado a recolher os doentes para aliviar o sofrimento físico e moral. Teixeira e Fonseca (2007) citam outros exemplos europeus de instituições voltadas à proteção aos doentes de câncer, referindo que, na impossibilidade de tratamentos eficazes, a assistência aos desamparados é a principal ação contra a doença.

Uma descrição clássica sobre o tratamento e o sofrimento provocados pelo câncer no seio é retratado entre os anos de 1601 e 1666, conforme Imbault-Huart (1985) ilustra. A rainha-mãe da Áustria é tratada pelo seu médico Ailhaut com

emplastros (preparação terapêutica adesiva para uso externo) à base de cicuta (planta venenosa), pó de pedra cinzenta e pó de escamónia.

No ano seguinte, o seu estado piora: a rainha-mãe sofre de uma erisipela nos seios, que se complica com gangrena. É necessário encharcá-lo em narcóticos e fazer, por várias vezes, a incisão com lâminas dos tecidos mortificados. Cinco meses mais tarde, a rainha agoniza. O cheiro das chagas é tal que é necessário colocar junto dela saquinhos com misturas perfumadas para a acalmar. Vendo uma das mãos um pouco inchada, diz baixo [...] “a minha mão está inchada. É tempo de partir”. A rainha-mãe entrou em agonia, que foi longa, muito dolorosa. [Esta] tornou-se tão violenta que, sentindo aumentarem as dores e diminuírem as forças, o sentimento da natureza que odeia o sofrimento fez-lhe dizer, com muita dificuldade “Sofro muito, será que não morrerei em breve?” (p. 179).

O câncer de mama é o mais abordado explicitamente pela história, confundindo-se habitualmente com a própria doença (Costa, 2011).Mesmo após a contestação da teoria dos humores, no final do século XVIII, a extração cirúrgica de tumores continua sendo prática rara, pois a dor e as infecções são um risco de vida.

O desenvolvimento das técnicas de anestesia e antissepsia, iniciadas em 1846 e 1867, respectivamente, apoia a cirurgia como recurso terapêutico confiável (Mukherjee, 2012). Assim, o período de 1850 a 1950 é de grande desenvolvimento da cirurgia contra o câncer, tendo como principal nome William Halsted, nos EUA, pela sua defesa e aprimoramento da cirurgia radical (Mukherjee, 2012). Seu principal objeto de interesse é o câncer de mama, desenvolvendo a mastectomia radical, no sentido latino de raiz. Frustrado pelas constantes reaparições tumorais, ele objetiva desenraizar o câncer de sua fonte, realizando uma cirurgia extensa e desfigurante para não lidar com a reincidência da doença.

Em meados dos anos 1890, quando a mastectomia radical supera os dez anos de procedimento, um estudo estatístico de longo prazo, promovido pelo próprio Halsted aponta que a cirurgia não cura o câncer de mama (Mukherjee, 2012). Apesar disso, Halsted e seus alunos continuam ampliando os preceitos da cirurgia radical para outros cânceres, refletindo o pensamento cirúrgico do começo dos anos 1930, o que impede a visibilidade de avanços importantes em procedimentos cirúrgicos menos radicais para o câncer. O fim das cirurgias radicais se concretiza em 1981, ao término de um estudo de uma década, que envolve múltiplas instituições dos EUA e Canadá, cujos resultados apontam não haver diferenças estáticas relacionadas à reincidência de câncer, mortes e metástases entre os três grupos tratados com: mastectomia radical; mastectomia simples; e cirurgia complementada por radiação.

A descoberta dos raios X ocorre em 1895 e, em 1898, o casal Curie - Pierre Curie e Marie Sklodowska - descobre o elemento rádio (Teixeira & Fonseca, 2007). Assim, a radioterapia é elaborada e, a partir de 1904, os médicos começam a experimentá-la contra as mais variadas doenças, principalmente o câncer, o que altera o conceito da terapêutica contra o câncer: biologia, medicina e física se unem para uma investigação multidisciplinar. Isso determina a criação do Institut du radium, em Paris, em 1903, e de centros anticancerosos, sobretudo após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), quando a Liga Francesa contra o Câncer patrocina a criação dessas instituições em diversas cidades do país.

Ao fim da década de 1910, os médicos se entusiasmam com a possibilidade de curar o câncer com a radiação, acreditando ser a cura definitiva para todas as formas de câncer:

Conferências e associações sobre terapias com alta dose de radiação foram organizadas com grande alvoroço. O rádio era inoculado em fios de ouro e costurado em tumores, para produzir doses locais ainda mais altas de raios X. Cirurgiões implantavam tabletes de radônio em tumores abdominais. Nos anos 1930 e 1940, os Estados Unidos tinham tanto rádio que sua venda era anunciada para leigos nas últimas páginas dos jornais. A tecnologia do tubo de vácuo progredira paralelamente, e versões desses tubos podiam emitir formas potentes de energia de raios X em tecidos cancerosos. (Mukherjee, 2012, p. 99 e 100)

Porém, essas promessas não estão isentas de perigos. A irradiação, indiscriminada, cega e marca os pacientes com cicatrizes e queimaduras provocadas por doses que ultrapassam os limites de tolerabilidade. Além desse efeito, as mãos de Marie Curie sofrem queimaduras da radiação que penetra a medula óssea e ela morre de leucemia em 1934. O uso indiscriminado do radio para outras finalidades não terapêuticas, provoca leucemia em operários de fábricas estadunidense. No ano de 1928, Herman Muller usa moscas de frutas para mostrar que os raios X aumentam a taxa de mutação genética, uma das formas de desenvolvimento de câncer (Fiocruz, n.d.). A radiação comprovadamente causa câncer e isso diminui o entusiasmo inicial dos especialistas.

No final da segunda década do século XX, a utilização do rádio no tratamento do câncer do colo do útero passou a ser cada vez mais freqüente na Europa. Trabalhos posteriores possibilitaram uma maior precisão na dosagem radioativa do produto, permitindo seu uso de forma mais segura. A difusão da radioterapia acabou por originar um novo grupo de profissionais voltados para o câncer: os radiologistas, encarregados da pesquisa e aplicação de terapias radiativas nos pacientes. Esse novo campo médico, na maioria das vezes, atuava em consórcio com a cirurgia. (Teixeira & Fonseca, 2007, p. 18)

Imbault-Huart (1985) também destaca que a possibilidade de utilização terapêutica dos raios X e do rádio na regressão de tumores marca um período de transformação que é considerado o nascimento da cancerologia experimental, potencializando o interesse no câncer pela medicina ocidental.

O respaldo dessas descobertas científicas gera otimismo frente à possibilidade de controle do câncer, porém a causa da doença permanece desconhecida pelos pesquisadores (Imbault-Huart, 1985). Os primeiros conhecimentos sobre a etiologia do câncer são desenvolvidos, sendo a teoria viral a que ganha mais notoriedade, representando uma atualização da hipótese do contagio do câncer. A teoria do vírus cancerígeno responde aos anseios da medicina, sobretudo porque sendo um agente exógeno e infeccioso, há a perspectiva de cura única para o câncer através de vacinas.

Nessa direção, Francis Peyton Rous é o precursor. Em 1911, ele elabora a teoria viral do câncer através de experimentos transplantando sarcoma em aves (Fiocruz, n.d.). Vários outros estudos são realizados, buscando uma etiologia infecciosa do câncer através de um vírus, porém as descobertas são com animais e apresentam dados discordantes (Mukherjee, 2012). Somente em 1958, depois de um esforço de três décadas, o cirurgião irlandês, Denis Burkitt, descobre uma agressiva forma de linfoma denominada linfoma de Burkitt, que ocorre endemicamente entre crianças no cinturão de malária da África subsaariana. As análises realizadas nas células linfomatosas apontam para um vírus cancerígeno humano, o Epstein-Barr – EBV.

Essa descoberta e o desenvolvimento de novas vacinas para doenças tidas como incuráveis, por exemplo, a vacina da poliomielite lançada em 1952, incentivam mais pesquisas com o objetivo de identificar os vírus causadores da doença em seres humanos, tanto que, no começo dos anos 1960, o National Cancer Institute (NCI), nos EUA, lança o Special Virus Cancer Program, com alto investimento em busca de encontrar o vírus cancerígeno (Mukherjee, 2012).

Apesar dos relevantes avanços que balizam a terapia anticancerígena, o fato de não haver um tratamento único que promova a cura do câncer decepciona a medicina da área (Mukherjee, 2012). Em 1932, Willy Meyer, importante cirurgião oncológico, escreve um documento sugerindo um novo rumo para a pesquisa do câncer através de um tratamento sistêmico biológico para ser utilizado posteriormente à cirurgia. Isso indica a busca de uma droga que mate o câncer.

O desenvolvimento da quimioterapia tem sua origem com Paul Ehrlich, no início do século XX, ao desenvolver substâncias químicas para o tratamento de doenças diversas (Mukherjee, 2012). Outro grande estímulo para o desenvolvimento de drogas anticancerígenas se devem a dois estudos realizados com os sobreviventes dos acidentes envolvendo o gás mostarda nas duas grandes guerras mundiais. Esses estudos demonstram que os sobreviventes apresentam uma enfermidade da medula óssea, que provoca anemia, contrai infecções com facilidade e necessita de constantes transfusões de sangue.

Em 1946, Louis Goodman, Albert Gilman e Gustav Lindskog publicam a regressão do linfoma em um paciente tratado com doses intravenosas contínuas do nitrogênio mostarda, revelando que a quimioterapia pode induzir a regressão do tumor, apesar das recaídas posteriores (Fiocruz, n.d. e Mukherjee, 2012). Para Imbault-Huart (1985), o desenvolvimento da quimioterapia possibilita, pela primeira vez na história de uma doença, concentrar e coordenar, em um mesmo espaço, os esforços conjugados de físicos, biólogos, médicos e químicos com objetivos terapêuticos para a doença (raios x, cirurgia, quimioterapia), representando a concepção moderna do câncer.

Com a queda da cirurgia radical como procedimento único contra o câncer e os efeitos adversos da radioterapia, a quimioterapia se mostra como importante aliado no tratamento (Mukherjee, 2012). Mas, assim como as outras modalidades terapêuticas, seus defensores também têm objetivos extremistas de eliminar o câncer. As pesquisas com a quimioterapia será priorizada posteriormente, ao dissertar sobre o câncer em crianças.

Considera-se importante observar que, somente em agosto de 1947, o Código de Nuremberg é formulado, tratando sobre as experiências que envolvem seres humanos (Mukherjee, 2012). Esse documento defende a exigência do consentimento explícito dos pacientes na sua participação em pesquisas científicas de forma voluntária, assim esses tratamentos descritos aqui, até o período, não necessitavam da autorização nem do paciente nem de seus responsáveis.

Outro importante ramo que contribui para a cura do câncer é a prevenção da doença, defendida com vigor a partir de 1980, através de um artigo publicado nos EUA por John Bailar, em que afirma ser a intervenção mais eficiente para reduzir a mortalidade de qualquer doença. Em voga nos Estados Unidos desde os 1930 e defendida pelas diretrizes da Organização Mundial de Saúde/OMS, criada em 1948,

segundo Mukherjee (2012), a prevenção e a detecção precoce do câncer são estratégias secundárias desenvolvidas pelos centros oncológicos, que objetivam, com afinco, abordagens para a cura, a reabilitação e o cuidado contínuo. Para Costa e Teixeira (2010), a elaboração das campanhas e dos programas de prevenção tem como base as concepções de saúde pública americanas, popularizadas pela Fundação Rockefeller, privilegiando as ações relacionadas ao meio ambiente, às condições de trabalho, aos hábitos saudáveis e ao diagnóstico precoce. Atualmente, denomina-se prevenção primária as ações voltadas para a promoção da saúde e a proteção de doenças específicas e prevenção secundária o diagnóstico precoce de doenças.

Assim como a prevenção, que é pensada a partir das limitações dos tratamentos tradicionais ofertados, o tratamento de cuidado paliativo para cânceres avançados se fortalece nos anos 1980 (Mukherjee, 2012). Embora seja elaborado no fim dos anos 1940, na Inglaterra, pela enfermeira Cecily Saunders, durante muito tempo, o tratamento paliativo é visto como uma oposição à terapia do câncer, uma admissão de fracasso frente às possibilidades de cura. Em 1967, Saunders funda o St. Christopher's Hospice, uma casa de repouso, em Londres, dedicada especificamente a doentes terminais. Nos EUA, o primeiro centro de cuidados paliativos é fundado no Yale New Haven Hospital, em 1974. No começo dos anos 1980, instituições para pacientes com câncer fundamentados no modelo do hospice de Saunders são construídos em diferentes países, principalmente no Reino Unido.

Para finalizar este breve relato dos tratamentos direcionados ao câncer, é importante fazer referência aos esforços científicos atuais para desenvolver vacinas terapêuticas contra o câncer, que têm o objetivo de estimular o sistema imune a ser mais eficiente, reconhecendo e destruindo as células cancerosas nos tecidos, mesmo após o fim do tratamento convencional (Hofe, 2013). Dissociada da teoria viral, esta ideia tem sua origem em experimentos realizados por William Coley, que, no final do século XIX, injeta bactérias mortas em pacientes terminais de câncer e observa que há um prolongamento no tempo de sobrevivência deles. A substância formulada recebe o nome de Toxina de Coley e sua hipótese é que a febre ativa o sistema imune de seus pacientes, que reconhece e ataca os crescimentos anormais em seu organismo. Em 2010, a Food and Drug Administration / FDA, nos EUA aprova a primeira vacina para tratamento de câncer, no caso, o de próstata.

Para Miceli (2013), a cancerologia firma-se como disciplina após meados do século XX, quando o câncer se torna cada vez mais prevalente e a evolução técnica e tecnológica da medicina prolonga a vida do paciente. Assim, os avanços nos tratamentos (preventivos, curativos e paliativos) permitem que o câncer se transforme em doença crônica. Porém, o câncer continua a desafiar os profissionais em busca do aperfeiçoamento de tratamentos mais eficazes. Isso se deve pelo incremento da incidência da doença, em virtude do controle das doenças epidêmicas, que permite uma observação mais acurada do câncer, do aumento da expectativa de vida da população e da exposição a agentes cancerígenos.

Mukherjee (2012, p. 533) questiona se o câncer será a nova normalidade das sociedades atuais e conclui: a “questão nesse caso não é se teremos um encontro com essa doença imortal em nossa vida, mas quando”. Assim, também é preocupação dos profissionais de saúde amenizar os efeitos adversos da doença e do tratamento, muitas vezes associados a dor, a fragilidade e a mutilação, geralmente de longa duração, e que atinge o paciente e a sua família. Neste sentido, concorda-se com Costa (2011) quando afirma que o câncer é uma enfermidade esquiva e angustiante, constituindo atualmente como o arquétipo da impotência, científica e social, em referência ao controle da doença e da morte.