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2 ATIVISMO JUDICIAL E FAMÍLIAS DE DIREITO AS RELAÇÕES ENTRE OS

2.4 DAS (PROBLEMÁTICAS) APROXIMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE OS

BRASILEIRAS

Malgrado as considerações até então tecidas sobre pontos fulcrais que diferenciam a lógica sob a qual operam tanto a civil law quanto a common law, com todos os reflexos daí decorrentes, é pertinente, na linha da inescusável aproximação entre tais famílias jurídicas, trazer algumas ponderações acerca da tendência percebida num ambiente constitucional democrático tal qual o brasileiro, ainda, de se exaltar a jurisprudência enquanto produto da prática jurisdicional, a ponto de pôr em questionamento a teoria das fontes do Direito, nos seus moldes tradicionais, em um sistema românico-canônico, tal como o pátrio, sem negligenciar quanto à inserção de institutos e mecanismo de uniformização de entendimentos, de observância obrigatória66.

Dessa forma, tem-se que a existência de súmulas vinculantes e os novos rumos encadeados pelo NCPC, em específico quanto à temática dos ‘precedentes’ e a busca pela coerência e integridade nesta nova ordem processual, denunciam, de certa forma, tentativas de “commonlização da família romano-germânica”, fenômeno descortinado em um cenário profícuo para construções acríticas, teses descontextualizadas e institutos desconformes com a estrutura e lógica operacional de um dado Direito. Neste prisma, releva salientar que a própria

[...] comparação entre a common law e a civil law torna-se ainda mais problemática porque esses direitos não apresentam a mesma estrutura: um se apresenta como um

66 “[...] é importante afirmar: aquilo que vem posto no Novo Código nos arts. 926-928 não deve ser enquadrado

como uma modalidade de ‘direito jurisprudencial’, mas, simplesmente, um esforço legislativo para criar maior consistência e previsibilidade nas decisões exaradas do Poder Judiciário” (OLIVEIRA, 2016, p. 37).

sistema de normas, o outro, como uma sequência ininterrupta de soluções práticas (GARAPON; PAPAPOULOS, 2008, p. 40).

De fato. Acompanhando-se os rumos que a prática forense pátria vem tomando, e, observando-se o teor do que muitas vozes acadêmicas vem entoando, é inegável que a tradição romano-germânica, mais precisamente no caso brasileiro, vem sendo amalgamada por entendimentos que pretendem fazer prevalecer na civil law alguns dos elementos encontrados no common law. De início, a proposta pode sim contribuir para um desenvolvimento considerável de nosso sistema de Justiça e de nosso próprio Direito, porém, não se pode negligenciar que muito vem sendo feito “[...] sem a proporcional necessidade de justificação. Enfim, o poder sem freios e contrapesos [...]” (STRECK, 2004, p. 511).

O caso das súmulas vinculantes e dos ‘precedentes’, que podem ser vistos como [...] um tipo de mecanismo vinculatório de decisões do poder judiciário que não estão legitimados por uma dimensão de historicidade [...] e, ao mesmo tempo, produzem um efeito muito mais parecido com a lei [...]” (OLIVEIRA, 2016, p. 36), é típico nesta toada. O dito instituto, como se sabe, ingressou em nossa ordem jurídica através da Emenda Constitucional n. 45/2004, vulgarmente conhecida como “Reforma do Judiciário”, por ter, a dita emenda, promovido consideráveis alterações no Sistema de Justiça brasileiro como um todo e, em específico, na apresentação deste instituto à comunidade jurídica, cuja edição só pode se dar a cargo do Supremo Tribunal Federal, adstringindo-se, seu objeto, à sedimentação da validade, interpretação e eficácia de determinadas normas.

O próprio dispositivo constitucional que trata das súmulas, em seus parágrafos, enuncia um dos elementos que devem preceder à edição de uma súmula vinculante (art. 103-A da CRFB), consubstanciado na existência de controvérsia apta a ensejar insegurança jurídica, com relevante multiplicação de processos no mesmo sentido. Por trás deste mecanismo que outorga ao Judiciário poder assemelhado ao legiferante, existem discussões que envolvem desde a constitucionalidade da edição de súmula vinculante pelo STF, perpassando pela (in)adequação da forma com que tal mecanismo vem sendo aplicado em nossa ordem jurídica, muitas vezes parecendo tentar assumir, a súmula, o compromisso de, se não sanar, ao menos reduzir problemáticas (e complexidades) que permeiam a praxe judiciária brasileira, muitas vezes em prejuízo de outros caracteres elementares em um sistema processual, democrático e constitucional tal como o nosso.

Problemáticas tais como o crescente e alarmante aumento de demandas, versando sobre temáticas inéditas, a envolver, por vezes, uma multiplicidade de áreas do conhecimento (medicina, economia, biodireito, etc.), associado ao número de magistrados e suas respectivas formações, e, no âmbito de crises paradigmáticas, o (não) entendimento acerca do papel do Direito e da Jurisdição Constitucional em um cenário democrático constitucional tal como o nosso, ensejando questionamentos sobre limites e possibilidades da própria decisão judicial, entre outros fatores, sem dúvida, tem fomentado as discussões sobre como pensar um sistema jurídico que almeje respostas isonômicas, eficientes, e qualificadas pela tão perseguida segurança jurídica, fugindo-se das contradições e antagonismos que, hodiernamente, são presença constante em nosso meio jurídico.

Neste teor, Abboud e Streck, quanto às circunstâncias que permeiam a cena brasileira, entendem que

a resposta principal que o sistema jurídico vem dando para a falta de integridade da jurisprudência (um problema, aliás, seríssimo, já que acarreta decisões contraditórias para casos semelhantes, ou seja: quebra o princípio da isonomia), tem sido a busca da uniformidade a partir das decisões dos tribunais superiores. A ideia é padronizar entendimentos a respeito de teses (e não causas, porque essas são prenhes de facticidade) e adiantar ao utente, já no primeiro grau, ou o quanto antes, a solução que ele haveria de receber anos depois. Com isso se privilegia o princípio (sic) da duração razoável do processo, consagrado no coração do sistema via Emenda Constitucional” (2014, p. 15).

De outra banda, Ramires (2009) entende que esta busca pela adesão aos precedentes jurisprudenciais em terrae brasilis guarda relação, também, com o entendimento raso e acrítico da antiga máxima “onde há a mesma razão aplica-se o mesmo direito”, perpassando pela facilidade de busca e acesso às decisões dos tribunais (que, em seus enunciados, tal como são publicizados, ocultam as peculiaridades do caso concreto), por meio da informatização e ferramentas de busca. Ainda, há uma tendência muito forte na promoção de uma espécie de gestão/administração judiciária, relacionada com a elaboração de metas de redução de demandas, julgamentos céleres, ritos abreviados e informais, institutos processuais que represam ou, ainda, inviabilizam a apreciação de demandas pelos tribunais superiores. Ainda, não se pode descurar que o apego à reiteração de precedentes pode vir a representar

[...] uma tentação de se desobrigar de formar convicção acerca das tão variadas questões jurídicas que são trazidas ao foro nesta sociedade complexa, o que os leva a

decidir repetindo os argumentos já assentados nos pretórios superiores. (RAMIRES, 2009, p. 14-15)

Todo este contexto, que pode vir (e vem) a desaguar no uso reiterado e indiscriminado de precedentes, fomenta uma praxe judiciária arraigada em “[...] ‘discursos prévios de fundamentação’ para resolver os assim-chamados “casos difíceis” por mero ‘acoplamento de sentido’” (RAMIRES, 2009, p. 15), fazendo com que constem nas demandas, ao invés de personagens reais e fatos concretos, “[...] estereótipos, entidades metafísicas, abstrações conceituais desprovidas de individualidade e de outro propósito que não o de ilustrar hipóteses jurídicas que parecem flutuar no ar.” (2009, p. 34). Sob outra perspectiva,

não há a preocupação de buscar a necessária ‘pertinência’ com os ‘precedentes’ invocados. Trata-se, pois, de uma simplista ‘categorialização’ do Direito. Tais ‘proposições’ vinculam de forma universalizante uma infinidade de casos, ‘igualandoos’ metafisicamente, a partir de uma ‘determinação’ do sistema de que tais ‘casos particulares’ devem ser ‘deduzidos’ das sobreditas ‘universalidades’, como se nestas estivessem contidas as ‘essências’ comuns a todos os casos particulares. É este, pois, o nó górdio do problema do efeito vinculante no direito brasileiro, O efeito vinculante, ao petrificar o sentido do texto, não deixa a alteridade vir à presença (STRECK, 2004, p. 636)

Neste sentir, Abboud e Streck (2014) atentam para o fato de que a súmula vinculante, assim como os ‘precedentes’ à brasileira, a pretexto de buscarem uniformizar a interpretação de dado texto normativo, são construídos a partir da abordagem de uma situação jurídica analisada em específico, cuja narrativa que dela se extrai passa a se revestir de critério objetivo e ser aplicada por mero exercício de comparação e adequação (superficial, diga-se de passagem) em face de futuras demanda.67 Em outras palavras, uma vez constatada a controvérsia e os elementos permissivos da edição de súmula vinculante, tornando-a um enunciado abstrato, tal como a lei, a ser aplicada mecanicamente diante de fatos que (ao menos superficialmente) se coadunem com as circunstâncias que regem a mesma, a pretensão de segurança jurídica, de abortamento inicial de demandas e posicionamentos contrários àquele entendimento, passa a ser alcançada. A partir deste momento a súmula passa a ter grau de abstração, generalidade e

67 Enquanto que “[...] lá [no sistema da common law], o precedente serve para resolver um caso passado [...]

(STRECK, 2014b, p. 104-105).

“coerção” tal como a lei, vindo a irradiar seus efeitos para todos os órgãos jurisdicionais e da Administração Pública e, a partir de então, afasta-se o fato do Direito de uma maneira jamais imaginável no sistema do common law.

Isso porque o uso de precedentes em solo brasileiro, conforme Ramires, tem se demonstrado aleatório, gerando um verdadeiro “[...] ecletismo improvisado entre duas tradições diversas, sem que haja uma real interlocução entre elas.” (2009, p. 15-16). E, pior, por vezes, vem desobrigando juízes de fundamentarem suas decisões. E, haja vista esse efeito reflexo à inserção das súmulas vinculantes no contexto jurídico brasileiro, as fronteiras a partir das quais condutas discricionárias, voluntaristas e ativistas tornam-se (ainda mais) permeáveis.

Nesse escopo, se em tempos mais pretéritos não haviam quaisquer mecanismos aptos a obrigar os magistrados a fundamentar suas decisões, conforme Ramires (2009), com a predominância do modelo de Estado de Direito e a necessidade de outorgar limites aos agentes estatais, incluindo-se, aí, os juízes, passou, a fundamentação das decisões, a ser vista como uma garantia contra arbitrariedades perpetradas pelo Estado-Juiz e, mais recentemente, como um direito que acompanha os administrados, sendo

[...]preciso compreender a obrigação de motivação da decisão judicial como garantia política e democrática. É freio ao arbítrio [...]É uma necessária comunicação entre a atividade judiciária e a sociedade, pois faz parte da responsabilidade dos juízes a sujeição de seus provimentos à ciência e à opinião das partes e do público, de forma transparente (2009, p. 23)

Assim, o uso e o emprego dos ditos precedentes à brasileira, tal como vêm se introjetando em nossa tradição, além de apresentar um risco grave de desrespeito constitucional ao dever de fundamentação, pode redundar e/ou avalizar arbitrariedades e ofensas levadas a cabo justamente pelo órgão encarregado de realizar o controle de compatibilidade das normas insculpidas em um dado ordenamento jurídico. Isto se revela ainda mais problemático se levado em consideração que nosso sistema de Justiça é extremamente complexo e multifacetado em face de outros sistemas, tais como os que acolhem a tradição do common law.

Pensar em coerência e unidade em um sistema de Justiça que conta com mais de 18 mil magistrados entre juízes, desembargadores e ministros (frisa-se, somente da Justiça Comum68), que laboram nas mais variadas entrâncias, sob as mais diversas realidades, no

68 Conforme Relatório Justiça em Números, retroativo ao ano de 2016, emitido anualmente pelo CNJ. Disponível

em < http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/09/904f097f215cf19a2838166729516b79.pdf> Acesso em 24 out. 2017.

âmbito da justiça comum ou especial, em um país que sequer transitou por todos os modelos de Estado, parece ser um desafio quase intransponível. Outra questão de risco apontado por Ramires relacionada com a

[...] má compreensão da teoria dos precedentes no Brasil é a da repristinação involuntária e inconsciente da jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), escola de positivismo normativista fundada por Georg Friedrich Puchta nos anos 1830, que preconizava que a atividade judicial criasse conceitos gerais através do obscurecimento dos dados singulares de cada problema concreto até chegar, por abstração, a um conceito universal e apto a compreender todas as situações individuais que lhes deram origem.” (2009, p. 29)

Empregar os precedentes tal como vem sendo feito no Brasil torna-se “o caminho mais curto para o esquecimento do mundo concreto e para o encobrimento dos fatos da vida [...]” (2009, p. 30) e para a normatização de práticas judiciárias enfraquecedoras do Estado Democrático de Direito brasileiro. Faz-se tudo às avessas em solo pátrio: a partir da resolução de um caso concreto edita-se um enunciado tão genérico, abstrato e sucinto quanto possível, sem descurar, é claro, da projeção de que tal enunciado, assim como uma lei editada pelo Parlamento, terá efeitos ultra ativos. Para conferir respaldo ao dito enunciado, a partir dos mecanismos jurídicos existentes para isso, se outorga, àquele, status de normatividade, sendo tão forte o poderio de tal enunciado que, no bojo da própria seara processual, demandas que o contrariem tornam-se natimortas.

A resolução de um caso o precede!69 Assim como o dever de fundamentação “pode” ser “flexibilizado” quando a controvérsia posta em juízo verse sobre matéria sumulada ou já abarcada por ‘precedentes’. Cindir o fato do direito, não se atentar às peculiaridades que subjazem uma determinada súmula ou precedentes antes de proceder à sua aplicação torna inviável, em última instância, a compreensão dos elementos circunstanciais que orbitam a praxe jurídica, e, o que ainda é mais grave, demonstra o quanto estamos arraigados a uma projeto filosófico e jurídico que há muito tempo foi sepultado:

69 Alerta Streck para o fato de que “há, também, uma consequência econômica muito clara, uma vez que a previsão

antecipada a respeito das decisões que serão tomadas no futuro permitiria aos agentes econômicos planejar melhor suas ações, bem como visualizar a consequência de seus atos. Criar-se-ia, assim, um elevado grau de certeza quanto ao resultado jurídico das relações econômicas. Nesse momento, o mercado é o grande interessado na afirmação da segurança jurídica. Do mesmo modo, podemos destacar, ainda, aspectos sociais importantes. No caso, a planificação jurídica estabelecida pela codificação funcionava como uma garantia de que os interesses burgueses, no caso francês, e que os interesses da aristocracia, no caso germânico, seriam, de alguma forma, preservados” (STRECK, 2014b, p. 149).

[...] é preciso compreender que o que efetivamente produzirá a resposta acerca do sentido do texto é a facticidade, uma vez que não existem conceitos sem coisas, por assim dizer. Portanto, é no plano da dupla estrutura da linguagem, isto é, na dobra da linguagem (nível apofântico e nível hermenêutico) que se dá o sentido (STRECK, 2014, p. 342)

Conforme já discorrido nos tópicos anteriores, todas estas características que permeiam os debates em torno das súmulas e dos precedentes brasileiro vão totalmente de encontro com a lógica do common law. Quando decidem casos, os juízes não estão antevendo os efeitos futuros de sua decisão. A busca por coesão e coerência dos julgados não decorre de lei, mas da consciência impregnada nos juristas acerca da necessidade indeclinável de respeito a uma tradição jurídica consolidada. Mesmo quando diante de precedentes, no common law, tais não têm o condão de valerem por si só, havendo, os juízes, que fundamentar suas inclinações tanto em caso do entendimento pela aplicação de um precedente a um caso concreto e, mais ainda, em caso de afastamento de um precedente, promovendo-se as distinções e considerações que justifiquem, em absoluto, a tomada de decisão em um ou outro sentido.

Na própria aproximação do fato com o precedente, os juízes do common law promovem um complexo trabalho de resgate das condições a partir das quais o dito precedente fora gerado (pois jamais o precedente se desprende do fato originário). Ainda com Ramires (2009), nem em casos de precedentes antagônicos podem, os juízes, se esquivarem da carga de tradição que carregam enquanto sujeitos inseridos num plano maior que é o ordenamento jurídico, promovendo-se um inteligível diálogo entre o passado e a questão posta no presente, sem negligenciar quanto ao fato de que o presente pode requerer uma guinada que o afastará do passado, o que também deve ser construído a partir de uma dialética temporal entre os pilares da tradição e a necessidade de evolução do Direito70, evitando-se os extremos, seja eles representados pela hiperintegração ou desintegração77.

Aproximando a discussão dos ‘precedentes’ e da súmula à temática do presente trabalho é possível intuir que ainda pairam em nosso sistema jurídico (e, é claro, no imaginário

70 Nas brilhantes palavras de Ramires: “[...] a tradição não implica uma repetição mimética do que foi dito pelos

outros anteriormente. Ao inverso, a postura do juiz frente à tradição é a de diálogo, não de submissão. A interpretação é uma fusão de horizontes: no que respeita aos precedentes, a interpretação se dá com a fusão do horizonte do intérprete com o horizonte do todo da prática jurídica estabelecida até então” (2009, p. 78). 77 Para

Ramires: “[...]hiperintegração, quando se tenta tratar casos distintos como objetos de uma mesma regra geral, ignorando que, embora deva ser íntegro e o coerente, o direito é também distinção e diferenciação. Desintegrar é ignorar que as partes estão conectadas em um todo. Hiperintegrar é esquecer que o todo é composto de partes” (2009, p. 82).

dos juristas), abissais contradições teóricas (muitas, inclusive, sem nenhuma razão para ainda subsistir), inescusáveis práticas solipsistas, destituídas de critérios unívocos e coerentes, julgamentos tendo por fundamento argumentos de política e não de princípio (conforme Dworkin, 2003, 2007). Isto tudo, não raro, com nítido intuito de correção das mazelas sociais e morais de um país como o Brasil, está aí posto o perigo de uma decisão ativista vir a se tornar cogente e obrigatória, com força de lei e sequer suscetível de questionamento pelos administrados, colapsando, de vez, o sistema democrático constitucional como um todo.

O próprio ferramental recentemente revogado, ou seja, o CPC de 1973, já trazia alguns mecanismos que conferiam certo grau de discricionariedade judicial, e autorizavam a não apreciação de demandas em determinadas circunstâncias. Basta recordar, por exemplo, que o aludido diploma processual civil excluía do duplo grau de jurisdição a possibilidade de questionar sentença, em recurso com efeito suspensivo, inclusive, decisão que estivesse em consonância tanto com jurisprudência oriunda do órgão Pleno do Supremo Tribunal Federal, com súmula advinda deste, ou, ainda do tribunal superior competente (consoante § 3º do art. 475).

Outro exemplo cuja (in) constitucionalidade fora questionada por uma diversidade de juristas desde o seu ingresso na ordem processual civil, e que também se insere no cerne da presente discussão, relaciona-se ao antigo art. 285-A, o qual previa a possibilidade de, em sendo a matéria controvertida exclusivamente de direito, e em havendo decisão anterior de improcedência em casos semelhantes ao propostos naquele momento, ser julgada de plano a demanda, “reproduzindo-se o teor da [decisão] anteriormente prolatada”, para nos restringirmos a estes exemplos. Além, é claro, do tão debatido “livre convencimento motivado” e outros elementos que sinalizavam de quanto poder o magistrado poderia lançar mão no curso do processo, e, pior, sem qualquer constrangimento, seja legal, seja jurisprudencial.

Com a edição do mais novel Diploma Processual Civil e suas ulteriores alterações, um novo e importante passo foi dado, de modo que “lido em sua melhor luz, o NCPC abre as portas para que se adote, finalmente, uma teoria da decisão judicial efetivamente democrática” (ALVIM; SALOMÃO; STRECK, 2016, p. 126). Dispositivos processuais reconhecidos notoriamente pelo papel discricionário atribuído aos juízes foram suprimidos, e dispositivos vinculatórios foram inseridos, muito embora reste consignado que “[...] o Código não incorporou um ‘sistema de precedentes’ mas, tão somente, um conjunto de provimentos

vinculativos” (ALVIM; SALOMÃO; STRECK, 2016, p. 09), contrariamente ao que outros respeitáveis juristas entendem, tal como Barroso e Mello (2016).

A inserção do dever de observância à coerência e integridade, nos termos teóricos traçados por Dworkin (2003, 2007), a vincular o Judiciário, desponta como um avanço considerável com vistas a fomentar uma cultura jurídica mais atenta, responsável e responsiva com a sua trajetória, de um lado, e, reforçar o compromisso daquele poder com os objetivos e fins constitucionais e democráticos traçados pela CRFB/1988, de outro, expungindo anomalias tais como as discricionariedades e a dita “jurisprudência lotérica”, de modo que “[...] aumentarse-á a responsabilidade política dos juízes [...]” (ALVIM; SALOMÃO; STRECK, 2016, p. 09). Mas será necessário uma conjugação de esforços para que este novo empreendimento processual possa, efetivamente, surtir todos os efeitos benéficos que dele se espera, o que passa, necessariamente, pelo correto entendimento, por parte dos juízes e tribunais, com a colaboração dos demais atores do Sistema de Justiça, acerca da integridade e coerência, já que ambas “[...] guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso” (STRECK, 2015, p.

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