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Ativismo, jurisdição constitucional e estado democrático de direito brasileiro: o Supremo Tribunal Federal entre guardião de promessas e legislador de toga

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUI

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Curso de Mestrado em Direitos Humanos

KARINE DE CASTRO KOTLEWSKI

ATIVISMO, JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: O SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL ENTRE GUARDIÃO DE PROMESSAS E

LEGISLADOR DE TOGA

Ijuí (RS) 2018

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KARINE DE CASTRO KOTLEWSKI

ATIVISMO, JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: O SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL ENTRE GUARDIÃO DE PROMESSAS E

LEGISLADOR DE TOGA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade

Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Dr. Doglas Cesar Lucas Ijuí (RS) 2018

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K87a Kotlewski, Karine de Castro.

Ativismo, jurisdição constitucional e Estado democrático de direito brasileiro: o Supremo Tribunal Federal entre guardião de promessas e legislador de toga / Karine de Castro Kotlewski. – Ijuí, 2018.

234 f. ; 29 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.

“Orientador: Doglas Cesar Lucas”.

1. Jurisdição Constitucional. 2. Estado Democrático de Direito Brasileiro. 3. Ativismo Judicial. 4. (I)legitimidade. I. Lucas, Doglas Cesar. II. Título.

CDU: 342.1(81)

Catalogação na Publicação

Eunice Passos Flores Schwaste CRB10/2276

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UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Direito

Curso de Mestrado em Direitos Humanos

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

ATIVISMO, JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENTRE GUARDIÃO

DE PROMESSAS E LEGISLADOR DE TOGA

elaborada por

KARINE DE CASTRO KOTLESWKI

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas (UNIJUÍ): _________________________________________

Prof. Dr. Osmar Veronese (URI): ________________________________________________

Profª. Drª. Anna Paula Bagetti Zeifert (UNIJUÍ): ____________________________________

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RESUMO

O presente trabalho tem por escopo realizar uma abordagem teórica entrelaçada com o estudo pragmático (de casos concretos) a fim de identificar a presença, os contornos e a possível (i)legitimação do ativismo judicial no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro. Inicialmente, buscou-se resgatar os diferentes papeis assumidos pelo Estado e Jurisdição no transcurso da evolução dos paradigmas Liberal ao Democrático de Direito, trazendo à lume pontuais considerações sobre a realidade da jurisdição na trajetória do “acontecer” históricoconstitucional pátrio. Em um segundo momento, optou-se por abordar o distinto papel e importância conferidos à legislação e à jurisdição, como também à natureza da função interpretativa nas duas maiores famílias de direito (romano-germânica e anglo-saxã), demonstrando, com isso, a paradoxal aproximação destas famílias, sobretudo, pelas trocas e apropriações reciprocamente verificadas entre ambas. Adiante, pretendeu-se trazer à apreciação o fenômeno da judicialização, muito próximo ao ativismo, mas com este inconfundível, bem como as correntes jusfilosóficas do substancialismo e procedimentalismo, a conferir diferentes perspectivas no que tange aos limites e possibilidades à atuação da jurisdição constitucional, sobretudo, no espectro do controle judicial de constitucionalidade. No quarto e último momento da pesquisa, logrou-se selecionar e apresentar casos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal no exercício de suas diversas funções (tanto enquanto Corte Constitucional como de instância ordinária - competência originária ou recursal), de modo a identificar elementos e características na sua jurisprudência que permitam concluir pelo enraizamento do ativismo neste cenário, tecendo pontuais considerações. Vencidas todas as etapas desta pesquisa, que pode, igualmente, ser enquadrada na grande categoria da pesquisa qualitativa, tendo sido empregado o recurso da pesquisa bibliográfica e documental, e, feito o manejo do método hipotético-dedutivo, concluiu-se que, dado o estado d’arte da teoria do Direito e praxe jurisdicional ‘tupiniquim’, práticas ativistas têm se tornando frequentes em terras brasileiras, além de estarem se autolegitimando e se retroalimentando a partir de discursos - não raro populistas e, de certa forma, “emotivos” -, e fundamentações baseadas em argumentos e categorias muitas vezes estranhas ao Direito, acarretando em uma grave crise de legitimação do próprio Judiciário, e, a denunciar, sobretudo, as insuficiências teóricas e o grave estado de natureza hermenêutico que assombra a prestação jurisdicional brasileira, integrante de um projeto maior, qual seja, o de um Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Jurisdição Constitucional. Estado Democrático de Direito Brasileiro. Ativismo Judicial. (I)legitimidade.

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ABSTRACT

This paper had as scope to develop a theoretical approach intertwined with the study of concrete cases in order to identify the presence, the boundaries and a possible (il)legitimation of the judicial activism in the context of the Brazilian rule of law. Initially, this paper sought retrieving the different roles undertaken by the state and the Jurisdiction in the course of the evolution from the paradigm of the liberal state to the rule of law’s one bringing punctual considerations about the jurisdiction’s reality in the trajectory of the homeland’s constitutional history happening to light. In a second moment, we opted to address the distinct role and the importance given to the legislation and the jurisdiction as well as to the nature of the interpretative function in the two largest legal families (the Romano-Germanic and the Anglo Saxon), thereby showing the paradoxical approximation of such families, in particular for the exchanges and the appropriation mutually verified between them. Then, this study intended to address the judicialization phenomenon, very close to, yet different from, activism, as well as the jusphilosophic ideas of proceduralism and substantialism as to provide different perspectives in what regards to the limits and possibilities to the constitutional jurisdiction practice, especially on the spectrum of the judicial control of constituality. At the fourth and last moment of research, we managed to select and present the cases examined by the Federal Supreme Court, in the exercise of its several functions (both as a Constitutional Court and as an ordinary instance - original or appellate jurisdiction), in order to identify in its jurisprudence components and characteristics that allow the conclusion for the foundation of activism in this setting, outlining punctual considerations. Having accomplished all the moments of this research, which may be equally set in the large category of qualitative research once documental and bibliographical research were used and the hypothetico-deductive method was applied, it was possible to conclude that, considering the state-of-the-art of the legal theory and the “tupiniquim” jurisdictional praxis, activist practices have become frequent in Brazil, besides being self legitimizing and feeding on themselves through discourses - often populist and, to some degree, “emotional” -, and reasoning based on arguments and categories often unfamiliar to the Law, which imply a grave legitimation crisis in the Judiciary itself, and report the theoretical insufficiencies and the grave state of hermeneutical nature foremost, which haunts the Brazilian adjudication, part of a larger project, that is, the rule of law.

Keywords: Constitutional Jurisdiction. Brazilian rule of law. Judicial Activism. (Il)legitimation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

1 A FUNÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS TRIBUNAIS NAS DISTINTAS FASES DO ESTADO MODERNO...14

1.1 PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO LIBERAL ... 14

1.2 PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO SOCIAL ... 29

1.3 PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ... 45

1.4 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: ENTRE CRISES E DESAFIOS ... 58

1.4.1 Jurisdição brasileira entre crises e desafios: algumas considerações...75

2 ATIVISMO JUDICIAL E FAMÍLIAS DE DIREITO. AS RELAÇÕES ENTRE OS PODERES NOS DISTINTOS SISTEMAS JURÍDICOS ... 81

2.1 ATIVISMO JUDICIAL: APORTE HISTÓRICO E TENTATIVA CONCEITUAL .. 81

2.2 2.2 ALGUNS DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS QUE FUNDAM E CARACTERIZAM A FAMÍLIA ROMANO-GERMÂNICA...91

2.3 ALGUNS DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS QUE FUNDAM E CARACTERIZAM A FAMÍLIA DO COMMON LAW ... 101

2.4 DAS (PROBLEMÁTICAS) APROXIMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE OS DOIS SISTEMAS: O CASO DAS SÚMULAS E DOS ‘PRECEDENTES’ EM TERRAS BRASILEIRAS.... ...112

3 ATIVISMO JUDICIAL, JUDICIALIZAÇÃO E PERSPECTIVAS JUSFILOSÓFICAS: DOS LIMITES E POSSIBILIDADES À INTERVENÇÃO JUDICIAL A PARTIR DAS VISÕES SUBSTANCIALISTA E PROCEDIMENTALISTA ... 121

3.1 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL: ESTUDOS A PARTIR DA MATRIZ JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA ... 121

3.2 SUBSTANCIALISMO DE DWORKIN E A CRÍTICA HERMENÊUTICA DE STRECK...138

Perspectiva interpretativa e vinculativa em Dworkin: Direito como interpretação construtiva, vinculação do julgador à metáfora do romance em cadeia – integridade e coerência...140 3.2.1 Argumentos de política e de princípio; cláusula de igual consideração e

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3.2.2 respeito e leitura moral da Constituição...148 3.2.3 A crítica hermenêutica de Streck: aportes da hermenêutica filosófica como 3.2.4 imites à atividade decisória dos juízes...154 3.3 DAS PROPOSTAS PROCEDIMENTALISTAS DE JOHN HART ELY E JURGEN HABERMAS...163 3.3.1 O controle de constitucionalidade procedimental de John Hart Ely em "Democracia Desconfiança"...163 3.3.2 Considerações acerca do procedimentalismo discursivo de corte habermasiano em “Direito e Democracia”...168 4 ATIVISMO JUDICIAL: IDENTIFICAÇÃO DO FENÔMENO NO ÂMBITO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL...176 4.1 UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO JUDICIAL COMO

4.2 ENTIDADE FAMILIAR ... 176 4.3 INTERVENÇÃO JUDICIAL EM MATÉRIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS: O CASO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO ... 186 4.4 ABORTO DE FETO ANENCEFÁLICO E CRIAÇÃO JUDICIAL DE CAUSA

EXCLUDENTE EM DIREITO PENAL...195 4.5 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E TRÂNSITO EM JULGADO E A RECENTE

GUINADA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO...201 4.6 ATIVISMO JUDICIAL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DECISÕES JUDICIAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES...206 CONCLUSÃO ... 215 REFERÊNCIAS ... 220

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INTRODUÇÃO

Há cerca de quatro anos, durante as leituras iniciais em busca da definição de um tema para elaboração de projeto de pesquisa, na graduação, a problemática do ativismo judicial se destacou sobremodo como objeto de pesquisa a instigar a autora. Veio a despertar uma dupla sensação: curiosidade e inquietação, o que viria a se constituir em verdadeiro combustível para o desenvolvimento da pesquisa. Dessa primeira trajetória sobreveio a monografia intitulada “a (i) legitimidade do ativismo judicial no Estado Democrático de Direito: uma abordagem tendo como parâmetro jurisdicional, o Supremo Tribunal Federal”, apresentada no ano de 2015.

Dadas as limitações inerentes a uma monografia de conclusão de curso, e, considerando que quanto maior era o aprofundamento teórico, mais agigantava-se a motivação, o encorajamento e a instigação pelo tema pesquisado, buscou-se, agora, a nível de Mestrado, adentrar ainda mais o dito tema. Em vista do fato de que o ativismo judicial tem sido discutido com mais fervor em casos concretos que envolvam minorias, parcela populacional estigmatizada pela sociedade, e, levando em consideração que sua incidência é constatada com clareza em casos que envolvam políticas públicas insuficientes ou até mesmo inexistentes, denotando, igualmente, a preocupação da Justiça com o cenário brasileiro de violações a direitos individuais e coletivos constitucionalmente previstos - demonstrando uma preocupação em concretiza-los via provimento jurisdicional – a presente pesquisa, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), insere-se na linha de pesquisa “Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos”.

Eleita a linha, e, neste caminhar acadêmico voltado para a pesquisa sobre a temática eleita, tem-se que o próprio “discorrer” sobre ativismo judicial hodiernamente se revela em um grande desafio, devido ao caráter multidimensional e multifacetário do “fenômeno”, eis que implica em adentrar questões caras tanto à teoria como à filosofia do Direito, perpassando pela problemática inerente à decisão jurisdicional, à sobrelevação de paradigmas, aos “choques” culturais entre as famílias de Direito, além de uma infinidade de outros temas que são correlatos com o ativismo. Sim, pois o ativismo possui o condão de pôr em tensionamento questões inerentes à democracia e ao constitucionalismo, questões jurídicas e extrajurídicas, como também conclama a todos a requestionar papeis, funções, legitimidades, limites e possibilidades da relação entre legislação e jurisdição, Estado e suas crises.

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Discutir a presença e (i)legitimidade do ativismo tendo em conta a realidade brasileira representa um desafio ainda maior, eis que estamos versando, em suma, sobre os possíveis papeis que podem ou não ser assumidos por um Poder Judiciário tradicionalmente fechado a sua exterioridade, engendrado para conflitos individuais e de pouca complexidade; preparado para dirimir controvérsias de razoável previsibilidade, denotando a proposta de um Judiciário de visibilidade social e política classicamente neutra e descomprometida com qualquer ideal de modificação do status quo. Acrescenta-se, a este enredo, a dramática realidade inerente ao Estado brasileiro (de promessas incumpridas, de extensa institucionalização e juridicização de demandas sem a esperada contraprestação em termos concretos/efetivos; de mazelas sociais, de uma frágil democracia acompanhada por uma constitucionalidade de baixa intensidade...).

Entre descompassos e instabilidades, omissões e insuficiências, incompreensões e crises de racionalidades, a revolver temas de política, de filosofia, de direito, de democracia, de sociedade, de crenças etc., todos os caminhos têm conduzido à contemplação do Judiciário como a terceira via, a última possibilidade de ser ouvido, a única tentativa de receber alguma significação ou tratamento – mesmo que dentro da lógica, do rito, do símbolo, da temporalidade, enfim, do “jogo jurisdicional”.

É inegável que com os eventos a partir do Segundo Pós-Guerra, tanto a democracia quanto o Estado e o constitucionalismo receberam novos contornos. Inquestionavelmente o Judiciário saiu desse processo com nova roupagem e as Cortes Constitucionais passaram a ocupar uma posição estratégica dentro das renovadas democracias-constitucionais. A par disso, à luz de um Estado cujo atendimento de suas obrigações mostra-se extremamente deficitário, diante de um cenário institucional que permite a provocação jurisdicional em uma gama infinita de matéria, o Judiciário passa a receber um destaque inédito na cena política, e até mesmo midiática.

Até então, as questões relatadas, pode-se dizer, são consequências conjunturais, sistêmicas. O problema reside - e é a partir desta perspectiva que se enfrenta o tema de pesquisa eleito – nos limites e possibilidades de atuação jurisdicional neste delicado e extremamente complexo contexto. Como decidir? Como interpretar? Subsunções e deduções são adequadas para o deslinde de questões jurídicas tão complexas? As vontades (da lei ou do legislador) são suscetíveis de resgate? Interpretar é desvelamento do já previamente posto, ou possui natureza criativa? Em caindo por terra dogmas como completude e unicidade dos sistemas jurídicos, diante de lacunas ou omissões normativas, é possível apelar para a “escolha” de uma resposta

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jurídica dentre tantas possíveis, ou há algum caminho que passe ao largo da discricionariedade judicial? Todas estas questões, afora muitas outras, perpassam o estudo do ativismo judicial e demonstram com suficiência quão imprescindível se faz o estudo de tal temática.

Justifica-se, portanto, a realização desta pesquisa tendo em conta ao menos dois pontos de vista: o pragmático (prestação jurisdicional) e o teórico. Quanto ao primeiro, relacionado com as decisões judiciais e seus reflexos, verifica-se que o ativismo judicial, marcado pela imprevisibilidade da conduta de um juiz e tribunal (sem adentrar no mérito de condução a resultados benéficos ou não) e, igualmente, pela tomada de posições voluntaristas, fomentando, assim, discricionariedades, muitas vezes, promove um enfraquecimento, ou, no mínimo, torna nebulosa a segurança jurídica, a legalidade, previsibilidade e coerência que se espera das decisões de casos submetidos ao crivo jurisdicional. Dentre outras questões imanentes ao tema, o ativismo além de usurpar competências e atribuições dos demais poderes, monopoliza e, assim, enfraquece os demais espaços públicos de debate democrático, tradicionalmente instituídos com o fito de resolver determinadas demandas, além de colonizar juridicamente o tratamento do conflito.

No que tange ao viés teórico, o ativismo carrega consigo, ao menos, as seguintes problemáticas: incompreensões acerca do positivismo jurídico e suas duas mais destacadas versões (exegética e normativista), com reflexos candentes para a construção de perspectivas teóricas tendentes a “supera-lo”, tais como o neoconstitucionalismo; “importações” e mixagens teóricas (ou, apropriações teóricas estrangeiras à brasileira) parciais, descontextualizadas e, muitas vezes, descoladas da proposta originária; percepção acerca das modificações que conferem novos moldes ao Estado e ao Direito hodiernamente, e, por conseguinte, seus novos papeis frente a este enredo, pugnando, assim, por releituras no âmbito da Teoria do Estado, do Direito, e, até mesmo da própria Democracia.

Em termos objetivos, com esta pesquisa, pretende-se contribuir para o aprimoramento deste importante debate instaurado, primeiramente, no meio acadêmico. Subjetivamente, para a pesquisadora, a abordagem do tema, nos moldes do recorte metodológico proposto, representa a tentativa de aclarar dúvidas e questionamentos que já há alguns anos a acometem, além, é claro, do esforço em contribuir para a reflexão acadêmica sobre o tema eleito.

O escopo deste trabalho, à luz de todo o exposto, foi, a partir do recorte metodológico escolhido, enfrentar algumas das principais nuances que circundam o tema do ativismo judicial, e, atentando-se ao cenário democrático brasileiro, identificar sua incidência e (i) legitimação.

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Através do recurso da pesquisa bibliográfica e documental, do método hipotético dedutivo, buscou-se traçar um panorama sobre tal fenômeno no bojo do contexto pátrio, tendo, assim, como pano de fundo jurisdicional, o Supremo Tribunal Federal.

Neste escopo, no primeiro capítulo, buscou-se resgatar os diferentes papeis assumidos pelo Estado e Jurisdição no transcurso da evolução dos paradigmas Liberal ao Democrático de Direito, trazendo à baila pontuais considerações sobre a realidade da jurisdição na trajetória do ‘acontecer’ histórico-constitucional pátrio.

Em um segundo momento, optou-se por abordar o distinto papel e importância conferida à legislação e à jurisdição, como também à natureza da função interpretativa nas duas maiores famílias de direito (romano-germânica e anglo-saxã), demonstrando, com isso, a paradoxal aproximação destas famílias, sobretudo, pelas trocas e apropriações reciprocamente verificadas entre ambas.

Adiante, pretendeu-se trazer à apreciação o fenômeno da judicialização, muito próximo ao ativismo, mas com este inconfundível, bem como as correntes jusfilosóficas do substancialismo e procedimentalismo, a conferir diferentes perspectivas no que tange aos limites e possibilidades à atuação da jurisdição constitucional, sobretudo, através do controle judicial de constitucionalidade.

No quarto e último momento da pesquisa, logrou-se selecionar e apresentar casos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício de suas plurais funções (tanto enquanto Corte Constitucional, como de instância ordinária - competência originária ou recursal), de modo a identificar elementos e características na sua jurisprudência que permitam concluir pelo enraizamento do ativismo neste cenário, tecendo pontuais considerações.

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1 A FUNÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS TRIBUNAIS NAS DISTINTAS FASES DO ESTADO MODERNO

Para que seja possível compreender as mudanças contemporâneas acerca dos papeis desempenhados, ou, que se quer que sejam desempenhados pelo Poder Jurisdicional nesta quadra histórica (que, vão além do tradicional “dizer o direito em um caso concreto”), faz-se mister realizar uma digressão quanto à instituição Estado, dadas as imbricações entre modelos de Estado e prestação/função jurisdicional. Nesta senda, inicia-se tal percurso dissertativo esboçando as principais nuances que caracterizam e identificam o nominado Estado Liberal de Direito, perpassando pelo Estado Social (de Direito) até o enfrentamento do modelo Democrático de Direito, para, após, promover uma contextualização do cenário de desafios, riscos e instabilidades que assombram a instituição judiciária no desempenho de suas funções, considerando o panorama estatal hodiernamente estabelecido.

Cabe salientar, nesta apresentação preliminar, que a opção por discorrer sobre os “modelos” de Estado, tal como a que este trabalho ora se propõe, deve ser enfrentada com ressalvas e as devidas contextualizações. Isto porque, o percurso do desenvolvimento de tais modelos foi, tradicionalmente, gestado no bojo da realidade europeia, tendo influenciado outros países, como o Brasil, em vista, precipuamente, do processo de colonização. Tendo havido tal “importação” de modelo, estruturas e perspectivas, a realidade das colônias consubstanciou-se em dar seguimento ao que lhe foi imposto, não tendo havido qualquer desenvolvimento de um modelo de Estado e, aqui, Instituição Jurisdicional, isento de influências externas e, nem tampouco, com traços próprios e características voltadas à peculiar realidade brasileira.

1.1 PODER JUDICIÁRIO NO ESTADO LIBERAL1

O Estado Liberal, modelo que “[...] cobre todo o século XIX e prolonga-se até a Primeira Guerra Mundial” (SANTOS, 1994, sp.), surgiu graças a um processo de reivindicações políticas, econômicas e sociais em face do modelo anterior, qual seja, o Estado absolutista. Teve, também, como marco filosófico, a doutrina dos direitos do homem (BOBBIO, 2000), que

1 Por uma questão de limitação quanto ao objeto de pesquisa, o presente capítulo não versará sobre as diversas

formas de gestação e soerguimento do modelo de Estado de Direito, suas semelhanças e variações em diferentes países europeus. Optou-se, aqui, pela realização de uma análise geral.

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trouxe ao núcleo do Estado conteúdos de direitos até então não visualizados como inerentes à condição humana, ainda que de maneira tímida.

Tanto a diversidade das reivindicações pleiteadas quanto a doutrina filosófica dos direitos do homem, se por um lado buscavam suscitar questionamentos acerca da necessidade de novos moldes às relações políticas, sociais e econômicas, convergiram, de outro, para a gestação da versão moderna do(s) constitucionalismo(s), não descurando do fato de que este tem seu movimento iniciado em períodos tais como a Alta Idade Média. A mesma observação é válida para as discussões sobre poder e direito, ordem e governo e, a lei (COSTA; ZOLO, 2006).

De fato, diante do cenário à época prevalecente, de transição do mercantilismo para o capitalismo, o qual exigia uma maior tecnicização e racionalização notadamente das relações negociais, bem como segurança e previsibilidade, além das disfunções sistêmicas decorrentes da separação e, consequente blindagem do Estado em face de interesses, necessidades da sociedade2 (principalmente pela inexistência de um espaço público de debate democrático e diálogo entre ela e o Estado – neutralizando e despolitizando ambos, reciprocamente) e, primacialmente, pela classe burguesa e sua sede de progresso, manter uma conjuntura política, social e econômica arraigada a um modelo nitidamente estamental, e, “desorganizadamente” individual e patrimonialista, confundindo-se os limites entre o individual e o coletivo, o privado e o público, parecia não mais poder prosperar.

O ponto nodal, portanto, correndo os riscos que toda síntese carrega consigo, delimitase a partir da tensa e insustentável relação entre burguesia e seus anseios e monarcas e suas propostas:

A burguesia sempre se sentiu politicamente oprimida e politicamente espoliada debaixo da monarquia absoluta. Os monarcas de direito divino governavam com a aristocracia territorial e o clero, numa sociedade regida por privilégios intactos quais eram os da feudalidade, consistindo em ordens, graus, títulos, estamentos, corporações e estemas, toda uma camada de exceções vexatórias à burguesia e que, na linguagem de Marx, assinalavam esplendidamente, meridianamente, a permanência da superestrutura política e jurídica do feudalismo, em desacordo com a infra-estrutura burguesa de teor econômico (BONAVIDES, 1995, p. 67-68).

2 Novais (1987) destaca em sua obra que todo o projeto de Estado Liberal foi assentado na perspectiva de separação

entre Estado e sociedade, assim como a separação entre Estado e Moral e, igualmente, entre política e economia, abrindo um caminho amplo e sem qualquer óbice para a implantação das tendências liberalistas da burguesia.

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Crer na legitimação da ordem divina enquanto pilar de sustentação do poder soberano; submeter-se aos mandos e desmandos injustificados, ilimitados e arbitrários levados a cabo pelo soberano/monarca (o qual, inclusive, retirava/outorgava direitos e prerrogativas de maneira discriminatória, excludente e seletiva, primando por aqueles que gozavam de prestígio econômico, político e social, e com base em elementos de direito constitucional consuetudinário, conforme Canotilho, 2003, p. 52), constituía-se em tremendo obstáculo à recepção e acolhida das novas e prementes oportunidades que batiam à porta do Estado. Manter de forma acrítica os “[...] privilégios de nascimento e das corporações [...]” (DIFINI, 2012, p. 147) ia, igualmente, de encontro com o cenário que despontava no horizonte político, jurídico e social daquele momento.

Sob outra perspectiva, confiar a resolução de conflitos a um “judiciário” tido por parcial e discricionário, que possuía em suas mãos uma pluralidade de fontes de direito3 a “orientar” sua atuação; ainda, manter boas expectativas quanto à prestação jurisdicional, mesmo tendo em conta a miscelânea de critérios e inclinações dos magistrados nos julgamentos das lides, e sem descurar de que a classe da magistratura era composta por membros da própria aristocracia da época, além de inviabilizar qualquer segurança (jurídica) quanto ao deslinde do processo, atribuía aos juízes uma qualificação nitidamente negativa (DALLARI, 2007)4.

Neste sentir, além das pontuações acima, as quais foram questionadas pela burguesia e utilizadas perante o corpo social em geral como discurso de convencimento e legitimação do novo embate em face do monarca/soberano, e, posteriormente, focalizadas apenas no interesse daquela classe (NOVAIS, 1987), o campo para formação de novas perspectivas por trás da expressão Estado de Direito estava posto.

3 Conforme bem especifica Marinoni, “antes do Estado legislativo, ou o advento do princípio da legalidade, o

direito não decorria da lei, mas sim da jurisprudência a das teses dos doutores, e em razão disso existia uma grande pluralidade de fontes precedentes de instituições não só diversas, mas também concorrentes, como o império, a igreja, etc.” (2006, p. 05).

4 “No ambiente de lutas que caracterizou grande parte da Europa do século dezessete, governantes absolutos

utilizaram os serviços dos juízes para objetivos que, muitas vezes, nada tinham a ver com a solução de conflitos jurídicos e que colocavam o juiz na situação de agente político, o que deixava evidente que eles decidiam e praticavam outros atos, não decisórios, em nome e com o respaldo dos chefes supremos” (DALLARI, 2007, p. 12). Mesmo assim, nem sempre os magistrados moviam-se favoravelmente aos aristocratas, o que gerava certa desconfiança por parte de todas as classes em face dos juízes. (DALLARI, 2007). Neste sentido, o princípio da estrita legalidade, tal como perseguido pelo positivismo exegético, contribuía para “anular” o poder interpretativo dos magistrados, e, assim, buscar frear tentativas de excessos e arbítrios (MARINONI, 2006), malgrado a existência de garantias como independência (NOVAIS, 1987).

(16)

Acerca da temática, Canotilho (2003) elenca algumas das principais ideias que passaram a permear a discussão sobre a insubsistência do Estado tal como forjado e conduzido pela monarquia e a necessidade de soerguimento de novas perspectivas, dentre as quais: a) a forma pela qual o soberano/monarca conduzia a relação Estado e economia, delineando tal relação a partir de critérios particularistas e sob o pálio do sistema mercantilista; b) o complexo poderio exercido pelo monarca/soberano, deixando de adentrar em temáticas importantes e imiscuindo-se em campos estritamente privados dos indivíduos, tais como a opção religiosa e, por fim, a “[...]assunção, no plano teórico dos fins do Estado, da promoção da salus publica (‘bem-estar’, ‘felicidade dos súditos’) como uma das missões fundamentais do soberano” ( BONAVIDES, 2003, p. 91).

Além destes elementos, a fragilização e posterior queda das bases teóricas organicistas, que não conferiam qualquer importância aos sujeitos sociais individualmente considerados, e o descortinar da figura do sujeito homem, individual, com plenas capacidades de escolha e determinação de sua vida, responsável pelo seu sucesso ou fracasso, e, titular de direitos inerentes à sua condição, corroboraram para repensar o modelo estatal vigente naquele momento histórico5, o que envolve, sobretudo,

[...] uma nova antropologia filosófica: colhido nos seus traços essenciais e perenes, o indivíduo é arrancado da lógica dos pertencimentos, da conexão com os corpos para ser representado como um sujeito unitário de necessidades e de direitos [...] (COSTA; ZOLO, 2006, p. 103).

Ou seja, as características que conferiam singular tonalidade a este Estado (confusão entre a figura do rei e sua legitimação divina, por exemplo), juntamente com as propostas e estruturas segundo as quais operava (pautadas na “lei divina”, na ilimitação do poder do soberano, na estrutura estatal extremamente burocratizada e destituída de parâmetros legais; na despreocupação com as carências e necessidades que acometiam as camadas sociais menos privilegiadas), não mais se adequavam à conjectura e aos anseios da época, dando azo, então,

5 Conforme Canotilho “a noção de indivíduo, elevado à posição de sujeito unificador de uma nova sociedade,

manifesta-se fundamentalmente de duas maneiras: (1) a primeira acentua o desenvolvimento do sujeito moral e intelectual livre; (2) a segunda parte do desenvolvimento do sujeito econômico livre no meio da livre concorrência” (2003, p. 110). Esta segunda maneira constituiu-se em uma das bandeiras defendidas pelo liberalismo burguês, no alcance de suas metas.

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ao requestionamento acerca da estrutura, da lógica, da legitimação e, da (in) adequação deste modelo.

Tais requestionamentos vieram a se externalizar de forma mais contundente com o advento das duas grandes revoluções, quais sejam, a francesa (mais ao final do século XVIII) e inglesa (no transcorrer do século XVII), contribuindo para forjar os moldes deste novo modelo estatal (NOVAIS, 1987). Neste sentido, consoante leciona Broblio,

foi exatamente no momento culminante da forma de organização do poder da Idade Moderna, ou seja, no âmbito do Estado absoluto, que se operacionalizou a colocação em crise da legitimação exclusiva do príncipe à titularidade do próprio poder através da tentativa de requalificação política das posições privadas que no período intercalar se vinham mais ou menos conscientemente organizando a nível social (1998, p. 429430).

Nesta trajetória, as propostas de laicização do Estado e, consequentemente, de desprendimento da seara estatal das fundamentações e justificações de cunho divino ou estritamente jusnaturalista a partir da “[...] formulação de uma explicação contratualista para a origem do Estado [...]” (MORAIS, 1996, p. 30), contribuiu, sobremaneira, para colocar em prática um novo modelo de regulação social, baseado em normas jurídicas com características bem específicas, emanadas do Parlamento, reservando-se, aqui, à racionalidade, um destaque prestigioso6.

Como já é possível perceber, a Teoria do Contrato Social teve um papel crucial para a construção, tanto dessa nova normatividade a guiar a atuação do Estado quanto também na formulação da lógica liberal-individualista, porquanto aquela doutrina “[...] tem no seu cerne a ideia de indivíduo, seja em Hobbes, seja em Locke, particularmente” (MORAIS; STRECK, 2012, p. 55).

Além disso, a teoria da separação/tripartição de poderes, elaborada por Montesquieu, precisamente na obra “O Espírito das Leis”, de 1748, assim como os ideais propagados pela Revolução Francesa reforçaram esta inédita viragem de pensamento juspolítico, implantandose, aí, a ideia de limitação do Estado pelo Direito.

Porém, quanto às ditas bandeiras a serem defendidas pelas propostas liberalistas da

6 “Tal racionalidade se expressava, principalmente, através: a) de leis abstratas – sistematizadas em códigos [...]

b) da divisão dos poderes como recurso racional para a garantia da liberdade e para a diversificação do trabalho estatal e c) de uma organização burocrática da Administração Pública” (PELAYO, 2009, p. 09).

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burguesia, notou-se, no transcurso da história, uma inconciliável disparidade entre “esse homem [burguês], humilde quando combate a nobreza feudal e a Coroa, mas soberbo e arrogante quando entra depois a oprimir a massa obreira do quarto estado [...]” (BONAVIDES, 1995, p. 68), que passou a defender aspectos seletivos de sua teoria liberal (WOLKMER, 2003).

Quanto a esta conjectura em que se delineou os traços do Estado Liberal, atenta Bobbio para a circunstância de que

[...] é um fato que a história do Estado Liberal coincide, de um lado, com o fim dos Estados confessionais e com a formação do Estado neutro ou agnóstico quanto às crenças religiosas de seus cidadãos, e, de outro lado, com o fim dos privilégios e dos vínculos feudais e com a exigência de livre disposição dos bens e da liberdade de troca, que assinala o nascimento e o desenvolvimento da sociedade mercantil burguesa (2000, p. 22).

Neste momento de fixação dos alicerces sob os quais o Estado de Direito viria a se erigir, constata-se, inicialmente, um processo de reestruturação da instituição estatal via legalização e racionalização de seus atos, reordenação de atribuições e limites interventivos e, neste ínterim, a outorga de responsabilização ao Estado pelos seus atos. Como bem pontua Ferrajoli (2003), no âmbito da jurisdição em geral, passa-se a falar na vinculação entre jurisdição e Estado no momento em que se deixou de inserir somente o cidadão comum como parte das demandas judiciais, para reconhecer a possibilidade de inclusão do próprio Estado como demandado (e suas entidades e instituições representativas ou delegatárias), bem como o descortinar de um inédito sistema de controle administrativo (contencioso administrativo), que futuramente viria a representar uma das formas de controle, ao lado do de constitucionalidade (FERRAJOLI, 2003).

Outro elemento que se verifica diz do fato de que as garantias e direitos dos cidadãos passam a dizer respeito dos direitos de liberdade e propriedade. Neste sentido, John Locke (1994), considerado por muitos o pai do Liberalismo, em sua obra “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil”, no capítulo intitulado “dos Fins da Sociedade Política e do Governo”, já sinalizava que o objetivo primordial da formação da sociedade civil e política é garantir a propriedade e vida com o mínimo de segurança e tranquilidade, mediante, de um lado, a preservação e garantia da liberdade dos indivíduos e, de outro, a edição de regras que definam conceitos importantes à época.

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Essa liberdade visa, sob um determinado aspecto, “[...] a garantizar la posibilidad de un desarrollo individual desde sí mismo” (BÖCKENFÖRDE, 2000, p. 20)7. Sob outro ponto de

vista, a liberdade, juntamente com a propriedade, eram defendidas e difundidas menos com a pretensão de beneficiar os indivíduos e mais com a intenção de manter a autonomização e indiferença entre as classes sociais (os indivíduos teriam garantidos tais direitos em face de qualquer violação ao passo que os grandes empresários também estariam livres para suas tratativas e assegurados no direito de proteção aos lucros e produtos que auferissem).

A abertura estatal à participação coletiva via representação política, malgrado “[...] ilustrativa de uma concepção de igualdade política exatamente em moldes aristotélicos, a saber, uma igualdade relativa ou proporcional” (BONAVIDES, 2004, p. 119), mais preocupada com a manutenção da dominação da classe burguesa no poder, bem como a troca da fundamentação da legitimação do poder, do então “divino” para o “povo” (ao menos em termos formais), igualmente, consistiu em uma importante mudança que veio a fornecer novos moldes para a relação Estado e sociedade civil.

Como decorrência desta nova legitimação, a lei desponta como único instrumento legítimo por meio do qual o ente estatal pode se manifestar, servindo, ela, tanto como instrumento de garantia aos cidadãos, quanto de balizamento das ações estatais8, muito embora, como adverte Santos, “[...] a lei devido a sua construção pelo Parlamento tipicamente elitizado pela burguesia, não tem o mesmo valor para todas as classes de relações compreendidas pelo ordenamento jurídico” (2014, p. 27-28).

No que toca à visão da lei, da sua validade, eficácia e sua estrutura enquanto mandamento apto a orientar a atuação do Estado e dos cidadãos9, Böckenförde (2000) nos

7 Bobbio ressalta a importância da doutrina jusnaturalista na construção da proposta “[...] segundo a qual o homem,

todos os homens, indiscriminadamente, têm por natureza e, portanto, independentemente de sua própria vontade, e menos ainda da vontade alguns poucos ou de apenas um, certos direitos fundamentais [...]” (2000, p. 11).

8 Porém, como bem nos alerta Bonavides (2004), embora a lei, tal como vista, representasse uma evolução para a

época, a deposição de tal poder ao Parlamento tal como delineada naqueles tempos, sem qualquer previsão de controle de conteúdo e, nem tampouco, possibilidade de revisão, acabava por tornar inquestionáveis as normas e suas eventuais injustiças, fazendo com que, inclusive, a legalidade tornasse-se “[...] princípio ‘não-justiciável’ [...]” (BONAVIDES, 2004, p.121). Legitimidade e legalidade se confundiam e abriam caminho para a edição de eventuais leis válidas, porém arbitrárias.

9 “[...] na dinâmica da ordem jurídica oriunda do modelo liberal de organização do Estado e do direito, suas leis

não se limitam a informar, ou seja, a proibir ou autorizar condutas, a estimular ou desencorajar novos comportamentos. Elas também sutilmente procuram formar a opinião dos indivíduos, ou seja, calibrar suas expectativas, forjar seus desejos e padronizar suas reações, motivo pelo qual, investidas de autoridades e estruturadas de modo diretivo, apelam tanto para os símbolos quanto para os ideais presentes no imaginário social com a finalidade de moldar os indivíduos segundo ‘o espírito da legalidade’ burguesa” (FARIA, 1994, p. 27).

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explica que, à época, a forma como a lei era produzida, assim como seu caráter geral, viabilizava, por um lado, uma mínima proteção aos direitos inerentes à liberdade civil em face de possíveis excessos e ingerências estatais e, por outro, gozava de destacável legitimidade e racionalidade em vista do espaço de debate e publicidade que o processo legislativo possuía, malgrado suas deficiências, já sinalizadas. Tudo isto convergia para uma dupla valoração:

[...] hacia arriba, como sistema de limites jurídicos impuestos al poder, de outro modo absoluto, de los vértices políticos; hacia abajo, como técnica de generalización, y por ello, de igualación de las expectativas a través de su formalización como situaciones jurídicas y, em particular, como derechos subjetivos (FERRAJOLLI, 2000, p. 87-88).

Ao passo que a legalidade, representada pelo império da lei, viria a despontar com total preponderância no cenário jurídico-político do Estado liberal, importa frisar que, já aqui, havia a preocupação em ver editada uma constituição para, de um lado, fazer constar de forma explícita os direitos reconhecidos pelo Estado, e, de outro, tê-la como limitadora deste, vindo daí a caracterização deste modelo como sendo aquele para o qual a lei era tida como instrumento primordial e apto a viabilizar a proposta definida pelo modelo liberal.

Toda esta ideia de racionalização através da lei e de uma constituição escrita, ambas oriundas dos representantes do povo, se, sob um aspecto forneciam uma segurança aos administrados, manifestando-se em verdadeira garantia à realização do princípio da legalidade, de outro lado, restringia o desenvolvimento do Direito a partir de sua própria ciência, e, também, dos contrastes emanados da praxe jurisdicional.

No âmbito do constitucionalismo10 analisado à luz do período do Estado liberal, ensina

Canotilho (2003) que a ideia de uma Constituição escrita guarda semelhanças temporais, ainda que de forma parcial, com o advento da técnica da codificação e suscetível de ser vista enquanto “[...] ‘estratégias burguesas da legalidade’ [...]” (CANOTILHO, 2003, p. 121). Mas, também, em seu viés positivo, vislumbrada enquanto mecanismo de questionamento da legitimação do soberano/monarca, de limitação deste poder, prescrição de direitos individuais básicos, e constituição e gestão de um novo poder político (CANOTILHO, 2003), muito embora por detrás de tal discurso prevaleciam, novamente, os interesses e direcionamentos pretendidos pela classe

10 Cabe salientar que a intenção de discorrer sobre a feição do constitucionalismo à luz do Estado Liberal não tem,

igualmente, a pretensão de versar sobre a história que permeia tal fenômeno em si, mas apenas sinalizar para os moldes que forjavam a ideia de constituição à época.

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revolucionária (BONAVIDES, 2014) e propostas teóricas que limitavam sobremodo as potencialidades que a edição de uma Constituição naquele momento pudesse angariar.

Por evidente que as Constituições da época eram rígidas, mas, conforme asseverado por Marinoni (2006), tal característica visava não mais do que evitar o retorno ao sistema político e ao regime precedente ao Estado Liberal. Além de não representarem tal como hoje o elemento nuclear que confere unidade a um ordenamento jurídico, a forma como eram redigidas (enxutas) e as técnicas legislativas de elaboração das mesmas adentravam a tantos caminhos sinuosos quantos fossem necessários para manter a norma constitucional concisa e objetiva. Ademais, assevera Cademartori,

acabou, pois, o liberalismo por consagrar uma concepção fundamentalmente estática de Constituição, eliminando o problema dos pressupostos ideológicos e sócioeconômicos indispensáveis ao entendimento dos próprios conteúdos constitucionais (1997, p. 216).

A textualidade e a legalidade, portanto, determinavam a existência/previsão ou não de um direito constitucional, bem como sua validade, o que demonstra que mais uma vez havia um enrijecimento tanto da prática legislativa como interpretativa no que toca às constituições; uma prevalência da forma em detrimento do conteúdo, bem como um enorme fosso entre

Constituição e realidade social e entre Constituição e seus vieses político e jurídico, em vista de seu caráter rigorosamente formal, fechado e legalista (BONAVIDES, 2014). Não surpreende, neste contexto, o fato de que o intérprete da Constituição também assumia postura conservadora, formalista e de descomprometimento com a efetividade e evolução daquele documento.

Dentro da previsão constitucional e infraconstitucional da igualdade formal alcançada pelo Estado Liberal aos indivíduos, tal prescrição era, por uma questão ideológica (sem a qual seria impossível superar os pilares sob os quais o regime estatal estamental estava erigido), restrita e excludente no que toca à participação política dos cidadãos no âmbito do direito de voto e da importância concreta da regra da maioria (CAMPILONGO, 2000). Imagine-se, então, a precariedade do acesso à jurisdição no percurso histórico ora debatido.

Em seu clássico estudo sobre acesso à justiça, Cappelletti (1988) identificou que, a uma, só aqueles que possuíam condições econômicas para arcar com os custos do processo tinham acesso à justiça e, a duas, a forma com a qual os litígios e os litigantes eram tratados consistia em mero reflexo do pensamento liberal-individualista e segregador daquele período.

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Pode-se acrescentar, ainda, com Marinoni (2006), que até mesmo as construções da dogmática processual da época eram nitidamente influenciadas pela formalidade com que era revestida a dita “igualdade”11. Todo este contexto, com traços de conveniência para aqueles que

usufruíam do poder, corrobora a tese de que a manutenção de uma sociedade estratificada, burocrática, restrita e vigiada, tal como apregoado pela ideologia liberal-aristocrática, não era mais do que condição de possibilidade para a manutenção da classe burguesa no poder (BONAVIDES, 2004).

Tendo despontado no cenário a figura do indivíduo, neste momento da vida do Estado, declarou-se, este, irresponsável quanto ao seu administrado, sendo incumbência deste a realização das mais básicas necessidades de vida digna. Quando muito, fazia, o Estado, pequenas incisões na vida dos indivíduos, com base em um critério de justiça distributiva, ainda nos moldes aristotélicos, “[...] base de uma igualdade discriminadora, que importava tratar os iguais de modo igual e os desiguais desigualmente” (BONAVIDES, 2004, p. 118).

Desta forma, com as inovações e modificações operadas no campo industrial, tecnológico, econômico e político, por óbvio que com o transcorrer dos tempos, tal entendimento acerca da igualdade começaria a dar sinais de insuficiência, já que a grande massa de indivíduos, dado o cenário de concentração de riqueza, injustiças, ilegalidades operantes em proveito dos mais abastados, restava envolvido em um irresistível processo de marginalização social e pobreza. Ainda mais se considerarmos que no Estado Liberal de Direito predominava a visão segundo a qual a conduta do Estado deveria ter caráter negativo, de abstenção, circunscrevendo-se, sua “atuação”, à não infringência dos direitos assegurados aos cidadãos e à observância formal da norma legal.

Quanto às características do Estado de Direito, Canotilho assim as define:

[...] governo de leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político, funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado ao princípios as responsabilidade e do controle, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados (1999, p. 20).

11 Destaca o aludido autor que a necessidade de uniformização e formalização inclusive das práticas jurídicas e

prestações jurisdicionais, conduziu ao à unificação do “[...] valor dos direitos, permitindo a sua expressão em dinheiro [...]” (2006, p. 10). Porém, o efeito colateral de tal entendimento consistia no fato de que “[...] a jurisdição então não se preocupava com a tutela da integridade do direito material, mas apenas em manter em funcionamento os mecanismos de mercado [...]” (2006, p. 10).

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Acresce, Ferrajoli (2000) a estas características, a publicidade dos atos emanados do Poder Público, orientado sempre a agir em consonância com a legalidade. Correlacionando a limitação axiológica que enreda o Estado Liberal à luz da questão da legalidade no Estado de Direito, que Ferrajoli chama de estrita legalidade, tal “[...] consiste en una técnica legislativa idónea para disciplinar y limitar lo más rígidamente posible la violencia institucional y, en general, el ejercicio de los poderes coercitivos, a través de la determinación normativa de sus presupuestos” (FERRAJOLLI, 2000, p. 93).

Sob outro enfoque, Cademartori (1997) adiciona a este enredo o fato de o Estado de Direito ser constituído por um governo per lege (que atua através da lei) e sub lege (submetido e adstrito aos ditames legais), o que reforçava a ideia de que o Direito, no período do Estado liberal, possuía caráter meramente ordenador (STRECK, 2004).

Bobbio (2000) compreende, também, que estão presentes num modelo de Estado Liberal que pugne pelo controle dos atos estatais, os seguintes mecanismos constitucionais: o controle mútuo entre os Poderes, e, quanto ao Poder Judiciário, um considerável grau de independência funcional para que fosse possível o desenvolvimento de um eficiente e adequado controle de constitucionalidade.

Ainda sobre as características do modelo de Estado Liberal de Direito, além da nítida separação do Estado em face da sociedade, a influência da doutrina dos direitos do homem, representados, aqui, pela categoria dos direitos e liberdades civis/individuais, a intervenção mínima e a postura negativa estatal, acresce, Bolzan de Morais (1996) o elemento democrático que passou, sensivelmente, a integrar a nova justificação do poder, sobrelevando a soberania e a representatividade como elementos inéditos e essenciais para a nova proposta de poder e Estado.

O próprio reconhecimento de direitos, a atuação estatal por meio do (e segundo o) Direito, a possibilidade de responsabilização estatal12 e a separação de poderes se constituem

em alguns dos elementos diferenciadores do modelo liberal em detrimento do absolutista (BEDIN, 2013), muito embora tais elementos ainda não estivessem no auge de suas potencialidades de alteração do status quo tão almejada. Por exemplo, no caso da separação de

12 Vale relembrar, com Novais (1987), que o mais próximo (mas ainda remoto) da responsabilização estatal antes

do modelo de Estado ora debatido, pode ser visualizado a partir da doutrina do Fisco, que legitimava, em apertada síntese, um ente vinculado ao Estado, mas com este não confundido, cujo escopo seria participar de lides em que o Estado fosse demandado e arcar com indenizações pecuniárias em face de perdas patrimoniais devidamente comprovadas pelos indivíduos comuns.

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poderes no âmbito do Estado liberal, embora a pretensão de equilíbrio e igual importância, o destaque e poderio estava nas mãos do Parlamento (NOVAIS, 1987).

De modo que, da análise das características acima descritas, é possível concluir que a própria “[...] limitação axiológica [...]” (MORAIS, 1996, p. 65) é ponto nodal e núcleo fulcral desta nova fase institucional, e na medida que há previsão de direitos ao cidadão, cuja faculdade de exercício lhe é assegurada, surge, também, para o administrado, direito de buscar pela realização deste direito, o que engloba, inclusive, o direito de resistir a toda e qualquer ação atentatória a tal prerrogativa.

Seguindo esta linha de raciocínio, agora quanto à estrutura e a atuação dos órgãos estatais no Estado Liberal, impende atentar para o fato de que, tanto a valorização do individualismo quanto a visão negativa da atividade estatal serviam de balizas à atuação dos segmentos do Estado. No âmbito da prestação jurisdicional não seria diferente, pois

a Jurisdição do período liberal preocupava-se exclusivamente com a solução dos litígios individuais, uma vez que o direito deveria consubstanciar-se num instrumento institucional estável, capaz de responder de forma segura e previsível apenas sobre o núcleo jurídico central do Estado Liberal[...] (LUCAS, 2005, p. 178).

Muito embora existissem conflitos de outras naturezas que não somente a individual, tais, por não estarem inseridos na “pauta” do Estado Liberal, não eram objetos de debate pelo Estado, nem tampouco eram apreciados pelo Judiciário, o que limitava consideravelmente a Jurisdição e deixava sem a devida assistência e tutela questões de relevante interesse coletivo.

José Eduardo Faria (1992, 1994) nos explica que o Poder Judiciário no Estado Liberal, tanto em sua estrutura enquanto instituição estatal quanto no que toca ao arcabouço dogmático do qual se valia no seu cotidiano, etc., estava inundado por concepções que pretendiam camuflar/dispersar as complexidades e ambiguidades, reduzir e mascarar diferenças e desigualdades, neutralizar os conflitos, estabilizar as relações, e dissipar/desintegrar quaisquer tentativas de pressões e reivindicações que colocassem em questionamento a legitimidade do modelo vidente. A blindagem que inviabilizava a intervenção judicial nas relações sociais, a partir da instituição de “princípios” e/ou “institutos” reducionistas da realidade e da complexidade, tal como autonomia da vontade, pacta sunt servanda, presença constante nas discussões processuais denotavam essa preocupação de não intromissão no espectro privado da vida dos cidadãos.

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A racionalidade formal, abstrata e despolitizada que era apregoada pela instituição judiciária, o “[...] discurso jurídico [...] que se caracterizava por ser prescritivo, aparentemente informativo e pretensamente objetivo, fundado na transcendência das ideias e dos valores [...]” (FARIA, 1994, p. 33), o apego estrito às formalidades e estrita legalidade, as quais tornavam sobremaneira padronizada e balizada a atuação judicial, subserviente ao modelo liberalburguês, nada mais eram do que reflexos da própria perspectiva ideológica imposta pelo modelo liberal, que, para se manter firme e coerente, precisava fomentar discursos e práticas com tais características13.

Ademais, a doutrina filosófica do positivismo jurídico, notadamente o de viés exegético, promoveu consideráveis restrições aos mecanismos a partir dos quais o magistrado poderia lançar mão para resolução de um caso concreto. Isto se deve ao fato de que, segundo tal doutrina, o magistrado apenas desvelaria, racional e logicamente, um direito já pré-existente, negando-se qualquer função interpretativa inerente à atividade jurisdicional, tornando o magistrado verdadeiro autômato (PEREZ LUÑO, 2012), afastado de qualquer análise e emissão de juízos valorativos.

Para poder persistir em seus escopos, tal doutrina associou seus ensinamentos a características tais como unidade, coerência e completude, que se julgavam ter todos os ordenamentos jurídicos. No âmbito do exercício da atividade jurisdicional pelo magistrado, a técnica da subsunção, permeada pelos silogismos e arraigada ao esquema sujeito-objeto (STRECK, 2004), coordenou e orientou toda a atividade jurisdicional.

Como se vê, a mesma separação entre Estado e Sociedade querida pela classe liberalburguesa irradiou seus efeitos junto ao Poder Judiciário da época, que se manteve neutro, despolitizado, indiferente à evolução social e consequente e necessária evolução do direito neste trajeto.

O rol de direitos, mecanismos processuais de acesso à Justiça e defesa processual eram indubitavelmente limitados, de alcance restrito e com enfoque de reparação via indenização de natureza pecuniária. Ademais, estando fortalecido o Parlamento, as pressões em torno do Poder

13 “Graças à lógica normativo-constitucional e a esse formalismo processual, propiciando uma ideologia específica

(o legalismo) cuja reprodução é assegurada por uma complexa tecnologia linguística e conceitual (a dogmática jurídica), o exercício da função jurisdicional configura assim um intrincado aparelho burocrático no qual somente para efeitos analíticos é possível diferenciar-se o aparelho institucional (a dimensão funcional) e o aparelho ideológico (a dimensão lógico-sistemática). Graças a essa lógica e a esse formalismo, em outras palavras, o Judiciário organiza sob a forma de uma estrita hierarquia [...]” (FARIA, 1992, p. 26-27)

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Judiciário, tal como vemos hodiernamente, não eram perceptíveis, pois a magistratura, por vias, por exemplo, legais e doutrinárias, estava adstrita aos moldes que os demais poderes fortalecidos as impunha. A forma pela qual o direito era dito era baseado nitidamente em

Uma sistematização jurisprudencial e uma coesão ideológica cujos objetivos, [que] em termos funcionais, são: (a) assegurar o respeito aos fins e às metas do sistema jurídico em vigor; (b) propiciar as diretrizes gerais para a ação judicial; (c) orientar a reflexão interpretativa no momento da aplicação da lei; (d) ‘imunizar’ o sistema contra o risco de interpretação contra legem; (e) controlar a consistência das decisões limitando as premissas hermenêuticas; (f) oferecer os pontos de partida para a argumentação de todos os operadores do direito (não só os juízes, mas também os advogados, os promotores etc.); e (g) estabilizar as expectativas da própria ‘clientela’ dos tribunais (FARIA, 1992, p. 28).

Quanto ao último elemento acima referenciado merece ser destacado que,

[...] ao organizar o poder político de forma tripartite, o Estado Liberal privilegiou e apostou na capacidade de a razão legislativa determinar, de maneira segura, os rumos da sociedade. O receio e a desconfiança que imperavam sobre o Estado, que era visto de forma negativa pela sociedade civil, conduz a uma predominância do Poder Legislativo sobre os demais Poderes [...] (LUCAS, 2005, p. 177).

Conforme pontua Boaventura de Sousa Santos (1995), esta organização tripartida, e, por consequência, a outorga de independência (ou, melhor, uma quase independência, fundada sob três pilares, quais sejam, dependência estrita à lei, à iniciativa e orçamentária) ao Poder Judiciário consistiu em mais um instrumento manejado de modo a conferir neutralidade política e social ao Poder Jurisdicional.

Ademais, enquanto o sujeito de direitos e a sociedade forjavam-se a partir da matriz liberal-individualista, recepcionando as premissas sob as quais a Modernidade foi pensada e estruturada, vislumbra-se um Poder Judiciário instado a se manifestar sobre litígios de pequena complexidade, que não ultrapassavam o interesse dos diretamente envolvidos na lide, porquanto

a jurisdição do período liberal preocupava-se exclusivamente com a solução dos litígios individuais, uma vez que o direito deveria consubstanciar-se num instrumento institucional estável, capaz de responder de forma segura e previsível apenas sobre o núcleo jurídico central do Estado Liberal (LUCAS, 2005, p. 177-178).

Sua postura não fugia da aplicação da letra da lei ao caso concreto; apegava-se a um procedimento de “[...] subsunção racional-formal [...]” (SANTOS, 1994, s.p.), “[...] uma subsunção lógica de fatos a normas e, como tal, desprovida de referências sociais, éticas ou

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políticas” (SANTOS, 1994, s.p.), cujo resultado final revelava-se despreocupado com a justiça ou conteúdo da decisão, pois, o que realmente importava, neste período, era a segurança jurídica. Assim agindo, o Judiciário mantinha-se coerente e subordinado tanto com o princípio da estrita legalidade, norteador do Estado Liberal, quanto com a proposta a ele subjacente, no sentido de a atuação jurisdicional “viabilizar” ou, ao menos, não “obstaculizar” o desenvolvimento dos ideais liberalistas dominantes.

Em virtude do fato de questões sociais não constarem da pauta prioritária do Estado Liberal,

a jurisdição [...] foi afastada da política e conduzida a um isolamento das questões sociais importantes. Foi tomada como reprodutora da racionalidade legislativa, constituindo uma operacionalidade dogmática alienante [...] tornando-se fiel promotora da ordem jurídica e econômica liberal (LUCAS, 2005, p. 178).

Ainda que o movimento em prol do Estado Liberal tenha sido exitoso em sua implementação, ao longo do seu desenvolvimento, constatou-se que a burguesia, malgrado tenha se valido de propostas emancipadoras apregoadas pelo Iluminismo e pensadores à época influentes, valeu-se daquelas propostas e teorias sob um enfoque bem restrito e elitizado, de modo que, “só de maneira formal os [defensores do modelo de Estado Liberal] as sustentam, uma vez que no plano de aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe” (BONAVIDES, 1980, p. 05). De outra banda, nota-se que no Estado Liberal,

o rol de direitos fundamentais privilegiará a defesa, como direito praticamente absoluto, da propriedade; a igualdade formal eliminará privilégios de nascimento e das corporações; a divisão de poderes privilegiará o poder do Parlamento, hegemonizado pela burguesia, face à sua conjugação com a noção de império da lei. O princípio da legalidade estará, ainda, em conexão com tais elementos e informado por uma exigência de legitimidade, haurida no direito natural (DIFINI, 2012, p. 147).

Além disso, problemáticas em torno do excesso de individualismo14 (que acarretou na acentuação das desigualdades sociais/econômicas e em discordâncias de ordem política e

14 “[...] o Estado Liberal criou as condições para sua própria superação. Em primeiro lugar, a valorização do

indivíduo chegou ao ultra-individualismo, que ignorou a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis, mais audaciosos ou menos escrupulosos. Ao lado disso, a concepção individualista da liberdade, impedindo o Estado de proteger os menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser livre. Na verdade, sob pretexto de valorização do indivíduo e proteção da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os que eram economicamente fortes. E, como acontece sempre

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representativa); da inviabilidade prática de concretização de direitos e garantias assegurados15 (já que tanto a estrutura estatal e jurisdicional, como os instrumentos jurídicos e a dogmática jurídica, pela sua restrição, limitação e descomprometimento com questões sociais e de direito comprometiam qualquer tentativa de dar maior concretude e tutela efetiva aos direitos assegurados), conduziram as classes mais afetadas a repensar a postura estatal mínima (incluindo-se, aqui, a prestação jurisdicional).

Isso fez com que fosse instaurada uma irresistível pressão perante os detentores do poder, de um lado, e, de outro, “[...] uma explosão dos conflitos sociais de tão vastas proporções que foi em relação a ela que se definiram as grandes clivagens políticas e sociais da época” (SANTOS, 1994, s.p.), dando ensejo a movimentos reivindicatórios em prol de uma remodelagem (estrutural, política e funcional) estatal e do afastamento das teses de despolitização e neutralidade tanto do direito (da lei e da Constituição16) como do Estado em

face de litígios e problemas sociais.

Com o desenvolvimento do sistema econômico, e das atividades decorrentes da Revolução Industrial, a inevitável expansão e fortalecimento da classe proletária viria a somar forças rumo aos questionamentos sobre as insuficiências do modelo estatal assentado pela classe burguesa (DALLARI, 1998), já que a dita classe em ascensão encontrava-se escravizada pela lógica de produção, sem, todavia, perceber qualquer contrapartida mínima (tal como condições básicas de trabalho, remuneração adequada, etc.), o que se refletia, igualmente, nas desconfianças para com o sistema de Justiça.

Além disso, a partir de uma tendência de explosão legislativa, os tão indiscutidos caracteres do ordenamento jurídico (tais como unidade, coerência e completude) passaram a encontrar dificuldades iniciais de subsistência (PEREZ LUÑO, 2012), dando ensejo à inserção, no aludido debate, de temáticas como o pluralismo (contraposto à unidade). No que toca ao

que os valores econômicos são colocados acima de todos os demais, homens medíocres, sem nenhuma formação humanística e apenas preocupados com o rápido aumento de suas riquezas, passaram a ter o domínio da Sociedade” (DALLARI, 1998, p. 100).

15 A temática dos direitos individuais, neste momento, representou um importante caminho para se rediscutir os

efetivos objetivos a que o Estado Liberal se propunha, despontando, além do seu caráter técnico-organizacional, um viés axiológico e substancial (CADEMARTORI, 1997) até então sufocado pela burguesia e suas pretensões.

16 “Utilizada à vontade pelo Estado da forma que mais lhe conviesse, a lei, tanto quanto a Constituição, entrou em

declínio num determinado espaço ideológico, ficando sua juridicidade – e juridicidade vale aqui o mesmo que legitimidade – minada com a perda do caráter genérico e abstrato que lhe era peculiar, com os casuísmos de conteúdo e com a indiferença a considerações relativas ao direito justo” (BONAVIDES, 2014, p. 188).

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