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1 OS POETAS E OS POEMAS CANTADOS POR AMÁLIA : UMA POSSÍVEL LEITURA

DAVID MOURÃO-FERREIRA : 1927-

Um dos contemporâneos mais cantados por Amália Rodrigues foi David Mourão-Ferreira. Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário, dramaturgo, tradutor e professor universitário, foi um vanguardista que se dedicou a modernizar o tradicional115. Admirador de Amália

Rodrigues e da sua capacidade para expressar uma identidade portuguesa, apelidou-a de um ‘heterónimo’ feminino de Portugal116.

115 Idem, pp.1132-1133.

116 In, Jornal de Letras, Amália, um heterónimo de Portugal, Lisboa, 20 de Outubro

Vários foram os poemas que ofereceu à sua voz: “Maria Lisboa”, “Primavera”, “Libertação”, “Sombra”, “Barco Negro”, “Abandono”.117

David Mourão-Ferreira fala-nos da revolta e da denúncia, ao escrever para Amália “Abandono” que se encontra registado num disco gravado em 1962 no Reino Unido pela editora Discos Columbia/Valentim de Carvalho.

Como metáfora é, no seu sub-texto, um hino a todos os presos políticos encerrados no antigo Forte de Peniche. Por tal, ficou também conhecido pelo “Fado de Peniche”. A mensagem nele implícita é clara e comovente. Por pensarem de outra maneira, os presos eram levados ‘a meio da noite’ sem qualquer tipo de testemunha, para longe, sem deixar rasto. Homens e Mulheres habituados a pensar, a dialogar, a respirar, viam-se de repente encerrados, longe de tudo e de todos. A solidão era a sua melhor companhia e amiga. A tortura e o isolamento os seus maiores inimigos. No entanto, a solidão/o silêncio eram quebrados por algo que não lhes podia ser roubado: os sons do vento e do mar:

“Ao menos ouves o vento!/Ao menos ouves o mar!”. Pior era a angústia de quem ficava, esperando-os.

Poema de homenagem também ao compositor Alain Oulman que, sentiu na pele e no espírito, o amargo da prisão política e da solidão, chegando-lhe mesmo a custar a expulsão de Portugal118.

117 Idem: Livro de honra do espectáculo comemorativo dos 50 anos de carreira

artística de Amália Rodrigues com a presença de sua excelência o Presidente da República, Dr. Mário Soares, Lisboa, 8 de Janeiro de 1990.

Acerca deste poema “Abandono”, Amália deixou-nos as seguintes palavras:

“ Sempre achei o “Abandono”, do David Mourão-Ferreira, um fado de amor. Nunca pensei em Peniche. É um fado de tal maneira bem feito, com palavras tão bonitas, com tanto peso, que não quer dizer que não o tivesse cantado, sabendo a sua intenção. E talvez até o tivesse cantado com um ar tão revolucionário que não daria aquele resultado. (...) O disco chegou a estar proibido por causa do “Abandono”. (...) Mas, quando o cantei, aquilo era uma tristeza de amor, que é um sentimento muito mais bonito e muito mais dorido que uma ideia revolucionária. Era o amor de uma pessoa que foi com outra.(...) Um revolucionário pensou que era de Peniche, mas a maior parte de Portugal, que não é privilegiada, que não estava alertada, que é como eu, pensou no amor. Assim, chegou a toda a gente”.119

Com a expressão, “Que é como eu”, Amália queria-nos dizer que não possuía uma consciência política crítica e apurada.

Em “Barco Negro” gravado em França no ano de 1955 aquando das filmagens do filme Les Amants du Tage120, assistimos à angústia das

mulheres de pescadores da Nazaré que esperam, em vão, os seus homens perdidos e mortos no mar. Trata-se de um amor que vê, na negação da morte do ser amado, a única possibilidade de sobrevivência;

118 SANTOS, Vítor Pavão dos, Uma Biografia de Amália Rodrigues, 1ª edição, Lisboa,

Contexto editora, 1987, pp. 151-154.

119 SANTOS, Vítor Pavão dos, Uma Biografia de Amália Rodrigues, 1ª edição, Lisboa,

Contexto editora, 1987, p. 151.

donde uma pacífica loucura que repousa na não aceitação da verdade. E na eternidade de quem habitará sempre nos nossos corpo e coração. Ou a tão trágica dicotomia entre EROS (Amor e Sexo) e THANATOS (Morte). Esta foi a letra possível para a “Mãe Preta” do brasileiro Caco Velho, cantada pela fadista Maria da Conceição e, depois, pelo seu tema, proibida pela censura, devido a poder ser entendida como uma imagem da situação do negro autóctone nas colónias africanas.

“Maria Lisboa” é uma metáfora em que se compara Lisboa com uma varina que leva “na canastra, a caravela/no coração, a fragata”, já que Lisboa, como cidade solar mediterrânica, na sua cor e configuração, só pode ter nome feminino: Maria Lisboa.

Por outro lado, como cidade à beira Tejo, é berço de marinheiros e pescadores:

“ É de conchas o vestido, tem algas na cabeleira e nas veias o latido do motor de uma traineira”.

“ Libertação” gravado em 1956 no Reino Unido, fala da vivência de um amor contrariado em que a natureza parece reflectir o desespero dos amantes: “ Fui ao campo e vi nos ramos, decepados e torcidos”. E em que parece apenas haver futuro através da fuga a uma terra que põe constantes ‘fronteiras’ à sua concretização: “ Ó meu amor se ficamos, pobres dos nossos sentidos! ”.

Em “Primavera”, gravado em 1957, no Reino Unido com o nome de

Outstanding Successes, regressa-se ao fatalismo de um amor sem futuro e em que uma natureza festiva e primaveril e, portanto, enganosa, oculta um amor sem esperança e sem futuro. É uma muito bela, e curiosa, cantiga de contestação:

“ Pão duro da solidão, é somente o que nos dão, o que nos dão a comer”.

Em “Sombra”, poema que faz parte do álbum Fado Português

(1965), defrontamo-nos uma vez mais, com o tema do amante inseparável do amado, formando com ele um só corpo:

“ Bebi por tuas mãos esta loucura/de não poder viver longe de ti.”.

Presente ainda o tema da separação entre o dia e a madrugada (esta

quiçá tomada como alvorada de um novo dia e do regresso do amante ausente), não suportando o amado a luz do sol que o constrange, porque a noite habita-o por dentro.

Trata-se ainda de poema de perda em que a memória se compraz e se dulcifica na recordação dos frutos do Céu em que não acredita, e nos da Terra que Ele (Amante) lhe trouxe; assim vai apaziguando a solidão de forma a torná-la “menos agreste”.

O regresso à casa, onde nasceu: “essa sombra de casa onde nasci/(…)/por teus dedos de sombra construída.”, pode significar o regresso a uma infância e adolescência felizes e de encontro com o objecto da sua paixão ou, tão só, à casa, habitação do amor vivido por ambos.

De qualquer modo, quem não suporta a luz do sol, encontra na noite e

na madrugada um lenitivo para a sua dor: “ numa taça de sombra estilhaçada/deita sumo de lua e de laranja ”. Assim se conjuga, neste binómio, a luz fria do luar e o ácido citrínico da laranja, mais uma vez metáfora para um ser já não habitado pelo calor dos beijos e pela doçura do encontro dos corpos dos amantes.