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1 OS POETAS E OS POEMAS CANTADOS POR AMÁLIA : UMA POSSÍVEL LEITURA

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS : 1937-

Deste círculo alargado de poetas portugueses também faz parte

José Carlos Ary dos Santos. Personalidade entusiasta e irreverente, por vezes com um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuiu decisivamente para a renovação da música popular portuguesa. Um dos ‘mestres’ da poesia de intervenção social viu, em vida, muitos dos seus poemas serem musicados por Alain Oulman para a voz de Amália, como “Amêndoa Amarga”, “Meu Limão de Amargura “, entre tantos outros124, conforme nos confidenciou Tito

Lívio.

“É da Torre Mais Alta”, de Ary dos Santos, é um Fado que vem na sequência temática de “Povo que Lavas no Rio ”, o mesmo país que se sofre e um povo que tem pejo de assumir os seus sentimentos e vontade: “ Dói-me o tempo perdido e morro de ternura”.

“Alfama” é um manifesto contra a imagem folclorista e

estereotipada do “pobrezinho” e “feliz” que fez parte da ideologia do Estado Novo e que Amália chegou a cantar em “Uma Casa Portuguesa” e na “Cantiga da Boa Gente”. A certeza de que Alfama é um bairro onde a miséria vive paredes-meias com a solidão encontra-se expresso em imagens como: o “silêncio magoado” ou a “tristeza com pão”.

124 Informação cedida pelo Dr. Tito Lívio, jornalista, professor universitário, crítico

“Amêndoa Amarga” é um poema em que se tenta encontrar imagens de correspondência entre aquilo que sente e a natureza que nos rodeia, seguindo “ um caminho de silvas e de nardos ”.

Daí a comparação do amor com uma “amarga amêndoa desejada.” É um bem, cujo mal (contrariedades) se deseja, numa ambivalência muito própria da paixão amorosa.

Também “Meu Limão de Amargura” chora a saudade do amor ausente: “A chorar alonjura do nosso afastamento ”, que equipara à morte dos amantes impotentes perante essa mesma ausência:“ Nós parámos o tempo, não sabemos morrer.”

“Meu Amigo Está Longe” inspira-se nas cantigas de amigo medievais, em que a voz do poeta dá voz, no discurso amoroso, à gramática sentimental feminina, clamando o seu pranto e dor pela saudade e ausência do amigo: “ Meu amigo está longe e a tristeza é tão grande.”

No poema “O Meu é Teu” vislumbra-se a desejada simbiose entre os dois amantes, de tal modo que não se sabe onde começa um e acaba o outro porque um se torna o prolongamento e o complemento do outro, ou seja, o amante vê-se como espelho do amado. Mas, também amor em que a dádiva de um depende daquilo que o outro é capaz de dar. Para se construir assim a desejada noção do “nosso”.

Em “A Rosa Vermelha”, a flor e a cor são uma metáfora clara ao sangue feminino do desejo e ao vermelho dos lábios que, quando se unem aos do amante, produzem a desejável fusão entre ambos. Por

isso, quem ama “não precisa de mais nada ”. É um amor que coloca a felicidade nas mãos do amante e cujos horizontes, por ele tão só lhe bastar, são obviamente estreitos e limitados.

Todos estes poemas, à excepção do “Meu Limão de Amargura”, fazem parte do álbum Cantigas numa Língua Antiga (1977). “Meu Limão de Amargura” integra o disco Com que voz (1970).

2- AS CONSTANTES TEMÁTICAS NO UNIVERSO

FADISTA DE AMÁLIA RODRIGUES

O percurso empreendido no ponto 1 pelo universo poético amaliano revelou um conjunto de constantes temáticas a imporem-se com evidência.

Amália, com a sua inegável inteligência, sentido de requinte, espírito aristocrático (que, aliás, muita gente do povo possui), e bom gosto, escolheu, dentre a lírica portuguesa, os autores e poemas que porventura melhor diziam e reflectiam a sua alma, personalidade e sentir.

Assim os seus fados, com uma lírica erudita, encontrarão mais tarde, uma correspondência temática nos seus próprios versos, como se verá adiante no capítulo III.

O percurso poético desenvolvido revela e reflecte os principais parâmetros de uma Alma e gramática de sentimentos portuguesa e ainda alguns dos mitos nacionais mais profundos como o Fatalismo e o Sebastianismo que, aliás, habitavam também a sua complexa personalidade. Dando assim voz a poemas e poetas que, escolhidos por reflectirem a sua maneira de ser e de estar no mundo e na vida, se

arreigavam no úbere lusitano, no chão e gente que reivindicava como seus e que nunca negou. Que falavam do Amor, Ausência, Solidão e do País de Abril de uma forma melancólica e magoada. País, aliás, que tantas vezes a desiludiria125. Sentimento, de uma terra que ainda não

tinha, depois do trauma próximo da perda do mito do Império, encontrado o seu lugar no mundo. E um povo sempre à espera de uma figura salvífica que o resgatasse de um universo e quotidiano cinzentos e tristes, incapaz de construir um futuro diferente por suas próprias mãos.

As temáticas constantes do universo fadista amaliano são: o Amor, a Ausência, a Desilusão, a Morte, a Saudade, a Pátria, a Liberdade, a Solidão, o Desespero, a Loucura. Encontramo-las presentes em quase todos os poemas que cantou, desde o medieval Mendinho ao contemporâneo José Carlos Ary dos Santos.

Debruçemo-nos então sobre os temas mais significativos e paradigmáticos que fazem parte do ‘corpus lírico’ de Amália.

125 SANTOS, Vítor Pavão dos, Biografia de Amália, 1ª edição, Contexto editora,

2.1- DOR

Um tema maior do universo amaliano é o tema da dor.

O sofrimento surge quase sempre ligado ao Amor, amor frustrado, acabado, não cumprido, ausente, incompreendido, desejo não realizado, impossibilidade da paixão, que leva ao sofrimento e à dor do sujeito amoroso. Temática, aliás, que percorre a lírica portuguesa, desde os Cancioneiros medievais aos poetas contemporâneos.