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3.2 Filhos em famílias recompostas: representações a partir da atuação profissional

3.3.1 De casa para o Fórum: o contato entre filhos e profissionais

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, referentes a 25 dos 27 Tribunais de Justiça do país, no ano de 2014, família/alimentos ocupavam a terceira posição dentre os assuntos mais demandados no primeiro grau de jurisdição, representando 4,43% (978.962) do total de processos instaurados na justiça estadual (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015). Embora possam ter finalidades diversas, como o divórcio ou o reconhecimento de uma união estável, muito frequentemente esses processos envolvem as crianças ou adolescentes integrantes da família, uma vez que a própria legislação já prevê a inclusão e tratamento dos interesses dos filhos menores nesses processos (art. 731, III e IV, do CPC6).

Durante o curso de um processo judicial, muitas questões fáticas e interesses circundam os pedidos das partes envolvidas e moldam a solução do judiciário. Essa pluralidade de fatores envolvidos pode demandar conhecimentos muito além dos jurídicos, como ocorre, em regra, nos processos relativos à família, sobretudo se incluem crianças ou adolescentes. Essa diversidade de conhecimentos acarreta a necessidade de atuação de profissionais de diferentes áreas.

No decorrer das entrevistas, os participantes de cada área relataram a sua forma de intervenção e expuseram algumas peculiaridades nem sempre facilmente visíveis por um expectador externo ao processo. Nesse primeiro tópico, portanto, pretende-se expor, de

6 Art. 731. A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser

requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: [...] III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos.

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maneira geral, se e como ocorre o contato entre os profissionais e os menores de idade, segundo relatos daqueles.

Os profissionais do Direito (juízes, promotores e defensores públicos) relataram diferentes formas de atuação, as quais são aqui expostas com o devido cuidado, a fim de não correlacionar os entrevistados ao cargo ocupado.

De maneira geral, os juízes e promotores não têm contato direto com os menores em todos os processos. Essa função de conversar e apreender as circunstâncias relevantes para a decisão judicial é, em regra delegada à uma das assistentes sociais judiciais, encarregadas de elaborarem estudo social e juntá-lo aos autos processuais.

Quando a oitiva judicial desses menores de idade se faz necessária, ela ocorre em audiência, nas próprias salas destinadas a tal ato, na qual se fazem presentes um(a) magistrado(a), um(a) promotor(a) e os advogados das partes (podendo ser um defensor público). Foram relatados por um dos entrevistados os costumes de se pedir a alguma das assistentes sociais que acompanhe a oitiva da criança e do adolescente, e de solicitar aos pais que deixem a sala de audiências, a fim de assegurar maior liberdade aos filhos em suas falas.

Segundo um dos promotores de justiça, havendo processo judicial em andamento, os menores de idade não podem ser ouvidos pelo Ministério Público em momento diverso da audiência designada com todo o rigor legal. Isso, conforme justifica, poderia comprometer a imparcialidade do órgão, já que se ouviria a criança (acompanhada de um dos responsáveis) sem a presença do outro, o que não é ética e nem legalmente possível.

Por outro lado, a Defensoria Pública, comprometida com a defesa dos interesses dos patrocinados, não é afetada pela regra da imparcialidade, sendo a parcialidade marca registrada do próprio exercício profissional. Por esta razão, inexiste problema, do ponto de vista ético ou legal, na oitiva informal do menor pelo defensor público. Segundo o defensor entrevistado, a oitiva dos menores, quando realizada, ocorre em sua sala de trabalho, e, em casos em que julga necessário (os mais graves), com o acompanhamento de uma psicóloga ou assistente social. Segundo relatado pelo defensor, de todos os casos que passam pela Defensoria na Comarca, podem ser classificados como graves um percentual estimado de aproximadamente 30-40%, e desse total, em aprox. 80% dos casos o menor é ouvido. Além da oitiva em sua sala, o defensor público também participa das audiências nas quais são ouvidos menores sempre que atuar na defesa de uma das partes.

Assim, em uma breve síntese do que foi exposto, tem-se que os profissionais do Direito nem sempre ouvem, diretamente, os menores de idade em processos judiciais, sendo esta

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oitiva realizada apenas em casos de extrema necessidade e em audiência designada com todas as formalidades legais. A exceção é o defensor público, que, quando necessário, ouve-os em sua sala, com ou sem a ajuda de um profissional psicólogo ou assistente social.

Por outro lado, se o contato direto é exceção para os profissionais do Direito, é regra para os profissionais psicólogos e assistentes sociais, podendo-se dizer que a essência de seu trabalho nos processos judiciais, é captar, com todos os sentimentos e expressões, a realidade vivenciada pelas crianças e adolescentes, por meio dos conhecimentos técnicos próprios, conforme ressalta a assistente social Emanuele (Serviço Social): “Tem que ter essa escuta, porque... não só dos filhos, mas de todas as partes, né! O meu trabalho é essencialmente o trabalho de entrevista, onde eu tenho que garantir essa escuta com qualidade, né? Imprescindível!”.

Reconhecendo essa importância, as assistentes sociais judiciais relataram que em todos os processos envolvendo menores de idade que lhes chegam é feito esse contato direto, e, segundo Maria, “até quando é bebezinho assim, a gente pede pra... ou a gente vê na casa, ou vê na creche... a gente sempre quer ver como que está o desenvolvimento, como é que interage com o outro, sempre pergunta”. Interessante notar que os conhecimentos técnicos próprios permitem à assistente social ir além da fala da criança, buscando informações em outros locais e por outros meios quando a criança, em razão da idade, não consegue verbalizar seus sentimentos, conforme ressaltado por Maria.

Por outro lado, no contato realizado por profissionais do Direito, a análise é baseada na fala, na expressão verbal, o que inviabiliza a oitiva, em audiência, de bebês, como ressaltado por Cláudio (Direito) ao explicar a impossibilidade, para os profissionais do Direito, de ouvir o menor em algumas situações: “Porque a gente tem casos aqui que envolvem crianças de 2, 3 anos. Então, assim, ainda não tem como você, ainda mais a gente, né, não tendo esse know- how, de ter uma conversa com a criança”.

A dinâmica do contato entre os menores e as assistentes também se difere consideravelmente do contato estabelecido em audiência com os profissionais do Direito, distinção essa muito visível no que se refere ao local e forma de abordagem. No primeiro aspecto, Emanuele (Serviço Social) afirma que o contato pode ocorrer no ambiente familiar: “olha, esse contato, ele pode acontecer, algumas vezes ele acontece no ambiente familiar mesmo, né, na casa da pessoa”. Já Maria (Serviço Social) costuma fazer seus atendimentos na sala, não descartando a possibilidade de que ocorra em outros locais: “É, mas... geralmente é

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aqui na sala, né...a gente tem livros, tem material... livros assim, pra enquanto tá conversando com a mãe, espera lá fora... aí já vai, né, já vai criando um clima de acolhimento”.

Nota-se que as assistentes sociais demonstraram uma preocupação em manter o contato com o menor de idade em um local no qual se sinta acolhido, confortável. Com efeito, as entrevistas são realizadas na casa onde reside a criança ou adolescente, ambiente no qual este já é familiarizado e presumido seu conforto, ou na sala do Fórum, local preparado e equipado com brinquedos, livros, tapete, entre outros itens destinados a criar um ambiente informal e aconchegante, bem distinto do ambiente formal e rígido de uma sala de audiências.

Além do local, a forma de abordagem também é diferenciada. Emanuele destaca a preocupação em sempre fazer um encontro individual, e, comumente, um encontro conjunto (com toda a família). Maria, por sua vez, relata que a abordagem nunca é direta, ou seja, nunca são feitas perguntas objetivas diretamente à criança ou adolescente, buscando-se as respostas necessárias, muitas vezes, por meios lúdicos, diferentemente da forma de abordagem dos profissionais da área jurídica, exemplificada pela fala de Paulo Márcio, segundo o qual são feitas perguntas diretas à criança ou adolescente.

O trabalho realizado pela psicóloga guarda bastante semelhança com o trabalho realizado pelas assistentes sociais. Taís define a escuta do menor de idade como atividade fundamental na sua atuação junto aos processos de família, sempre que houver interesses seus em questão. Ela ressalta ainda que este é o momento propício para que ele exponha seus sentimentos, medos e opiniões. Taís afirma que, na época em que era nomeada como perita nos processos judiciais, fazia questão de sempre, em todos os casos, ouvir os menores, ou ter contato com eles, inclusive com os bebês: “todo processo que eu peguei, que eu pego, eu quero conhecer eles. Pode vir o periquito, o papagaio, aquele de colo... eu tenho, eu gosto de... não, se tem dois anos, tá aqui, tá presente...” (Taís, psicóloga).

Em relação ao local, Taís informa que, por opção própria, sempre ouviu os menores em sua sala particular. Esta sala, segundo pôde ser observado pela pesquisadora, é um ambiente muito aconchegante, tranquilo e equipado com móveis e itens diversos, semelhantemente à sala de atendimento das assistentes sociais judiciais.

Segundo Taís, o contato tem que ser precedido da formação de uma aliança, um vínculo com o menor, para que seja possível ouvi-lo, acolhê-lo: “ouvir, acolher, tudo começa assim!”. A psicóloga ressalta ainda que esse acolhimento implica não encher o menor de perguntas, mas sim ir dialogando, caminhando e escutando o que ele tem a dizer. Taís aponta também,

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em dois trechos de sua entrevista, a necessidade de compreender as metáforas que as crianças emitem, já que, muitas vezes, expressam seus sentimentos por meio do lúdico:

E as crianças são ótimas! [...] Eles apontam, tem que saber ler as metáforas... eu falo metáfora porque ele vai usar o lúdico, mas ele te diz muita coisa do que ele tá sentindo, do que ele tá percebendo, né, que muitas vezes os adultos não... “ah, criança não entende...”, não... Esquece a escuta, não é só escuta, né, auditiva. O terapeuta tem que ouvir pelos olhos, pelo nariz, pela pele, por tudo! Você tem que ser toda escuta, toda sensibilidade (Taís, Psicologia).

Um pequeninho que não fala, ele vem aqui no consultório, ele não tá expressando, é... a linguagem ainda não tem, mas através do lúdico, e das coisas que ele vai apresentando, do brinquedo, você vai percebendo a maturidade da criança, se ela tá bem, é... como é que ela percebe, o movimento dela em relação a um, ao outro, né?! (Taís, Psicologia).

Taís atenta, assim como fizeram as assistentes sociais, para a importância de se ter sensibilidade e conhecimentos específicos capazes de captar a linguagem não verbal das crianças e, pode-se dizer, dos adolescentes também. Esses apontamentos conduzem à conclusão de que a oitiva ou o contato com crianças e adolescentes requer do profissional, para que possa gerar os resultados esperados, a utilização de técnicas e conhecimentos específicos, fato que justifica a resistência dos profissionais do Direito em ouvir crianças e adolescentes em audiência judicial.

Segundo Brito et al (2006), a escuta de crianças no meio jurídico tem ganhado status de direito fundamental dos próprios menores. Um dos maiores pilares dessa afirmação é o art. 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, promulgada no Brasil por meio do decreto nº 99.710/1990, o qual determina que:

Os Estados partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o Direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.

Em que pese a proteção ao direito de expressão, também consagrado pelo ECA, a história brasileira revela o triste percurso pelo qual passou a criança até ter reconhecida social e legalmente sua condição de sujeito de direitos e merecedor de cuidados e proteção especial. No Brasil colonial, por exemplo, a violência sexual praticada pelos colonizadores contra índias e negras gerou inúmeras crianças “ilegítimas”. Não reconhecidas pelos pais, essas crianças eram comumente criadas pela comunidade rural na qual nasciam, bem longe da “casa grande” e desprovidas do direito ao nome de família e à sucessão (ALBERTON, 2005).

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Além do tratamento prejudicial conferido aos então chamados “ilegítimos”, os filhos nascidos no núcleo familiar tinham seus direitos e interesses mitigados ou suprimidos em detrimento dos direitos e interesses dos pais. Nesse sentido, por exemplo, o Código Civil de 1916 atribuía a guarda dos filhos ao cônjuge inocente na separação do casal, constituindo esta verdadeiro prêmio em favor deste (ALMEIDA, RODRIGUES JUNIOR, 2010).

Esse cenário de mitigação dos interesses das crianças somente sofreu alterações significativas em 1988, com a Constituição Federal atual. Com efeito, o artigo 227 da Constituição estabeleceu o princípio da proteção integral, posteriormente assentado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A importância conferida às opiniões das crianças e adolescentes nos assuntos de seu interesse deve, então, ser vista como uma grande evolução legal. Contudo, a implantação dessa conquista, consideradas todas as peculiaridades da condição infanto-juvenil, não é tarefa fácil. Isso pode ser visto nas entrevistas dos participantes, cujas preocupações vão além de ouvir a criança e adolescente, mas alcançam também a forma como fazê-lo, buscando a proteção e a compreensão da realidade familiar além das palavras nitidamente expressas, como se passa a ver no próximo tópico.

3.3.2 Uma tarefa não tão simples: preocupações dos profissionais nos contatos com