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CAPÍTULO 4: ESPORTIVIZAÇÃO DE PRÁTICAS CORPORAIS INDÍGENAS:

4.2 A especialização do corpo indígena para uma mudança de

4.2.1 De que corpo se fala?

A construção do corpo na modernidade se sustenta na ciência que, por sua vez, apresenta métodos mais eficazes e estudos biomecânicos, fundamentada em uma concepção que fragmenta o corpo, considerando este como uma máquina. Pode-se compreender a construção do corpo do homem moderno a partir do momento em que se consolida o Estado capitalista, decorrente das grandes revoluções na França e na Inglaterra, com a classe burguesa ascendendo ao poder. Almejando a manutenção de sua hegemonia, utilizam-se idéias positivistas a fim de justificar as conseqüências do sistema de produção sobre o modo de vida das pessoas. Com essa preocupação, a classe dominante cuidou de investir na construção de um outro homem capaz de enfrentar outra ordem social que estava posta em uma sociedade guiada pelas leis do capital.

Com o aumento da industralização e da urbanização, e da conseqüente expansão econômica, percebe-se a necessidade de ter-se à disposição um maior número de trabalhadores capacitados para atuar em diferentes áreas exploradas pelo capital. Corpos saudáveis deveriam servir para o progresso técnico e econômico contínuo. Com as idéias higienistas, a Educação Física trouxe os ideais da teoria eugênica de melhoramento e embraquecimento da raça, forjando a

construção de um corpo Higiênico-Eugênico, cumprindo funções moralistas e sanitárias de ordens médicas e militares. Entre as décadas de 1960 e 1970 se produziu um corpo produtivo e alienado, quando os interesses eram de aumento da produção e desvio da atenção da cena política no Brasil. No período do Estado Novo fazia-se necessário engendrar esforços para se consolidar uma nação industrializada (Castellani Filho, 1993: 120). Para tanto, o Estado, por meio de leis que regulamentavam a Educação Física, utilizou o esporte e outras práticas corporais para construir corpos aptos a enfrentar as exigências do trabalho nas fábricas. A ação pedagógica dessa disciplina na escola tinha como fundamento conceitos das ciências biológicas, mas especificamente da fisiologia do exercício que se fundamentava em uma metodologia padronizada. Corpo este que se configura no momento atual da sociedade capitalista como mercador, por estar a serviço da venda de produtos, ao passo que também é mercadoria, mantendo a tendência atual de consumo em grande escala (Castellani Filho, 1993). Durante todos os períodos de consolidação de uma sociedade global, o corpo humano esteve sujeito a intervenções de interesses da classe dominante.

A Educação Física contribuiu nesse processo, incorporando e transmitindo valores indispensáveis à moral, à disciplina, ao esforço individual para conquista da saúde do corpo desejada pela burguesia. “Na sociedade do capital, [a Educação Física], constiuir-se-á em valioso objeto de disciplinarização da vontade, de adequação e reorganização de gestos e atitudes necessários à manutenção da ordem” (Soares, 2004: 14), entendendo o corpo como unidade produtiva da indústria capitalista. Com essa concepção, o corpo passa a ser visto nessa sociedade como mercadoria a ser socializada, segundo as leis que regem as relações de produção. O corpo controlado para uso do capital.

Por esse olhar, deve-se compreender que o esporte em suas diferentes dimensões – recreativo e alto rendimento – parte do pressuposto de que ambas sejam educacionais. Tais dimensões condicionaram determinados comportamentos em espaços de educação formal e não-formal; contribuíram e contribuem significativamente para a produção de determinados modelos de corpos. Nos mais variados campos em que está presente, seja na escola, seja no lazer, o esporte pode colaborar para que valores da sociedade capitalista sejam transmitidos aos seus praticantes. Segundo Hoberman (1992),

O esporte de alta competição coloca cada vez mais em pauta uma tecnologia industrial visando a transformar o corpo humano em uma máquina eficaz e inesgotável através da mobilização de diferentes ciências biológicas e psicológicas” (apud Bourdieu, 1997: 128).

O corpo humano que assumiu um caráter individualizado na sociedade ocidental moderna, nas sociedades indígenas brasileiras exerce papel central sendo fabricado para se tornar coletivo. A corporalidade é uma dimensão fundamental para o processo de ensino e aprendizado de conhecimentos, habilidades e técnicas da pessoa indígena.

Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimentos corporais representa valores e princípios culturais. Conseqüentemente, atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual esse corpo está inserido. Todas as práticas institucionais que envolvem o corpo humano [...], sejam elas educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensadas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua realização de forma reducionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social (Daólio, 1995: 42).

Nas sociedades indígenas, a transmissão de técnicas corporais é necessária para assumir da melhor maneira os papéis sociais conquistados; portanto, “reconhece-se a capacidade da criança de aprender a partir dos jogos e brincadeiras” (Grando, 2006: 231). Nesse momento, a criança está se apropriando de sua cultura, construindo sua identificação com seus pares e tornando-se únicas nesse contexto. As práticas corporais tradicionais efetivadas de forma competitiva durante a realização dos Jogos dos Povos Indígenas e os rituais ocorridos nas aldeias cumprem a função de ensino e aprendizado da maneira de fazer, pensar e sentir que são específicas por gênero e idade em cada etnia.

Em sua obra A fabricação do corpo na sociedade xinguana, Viveiros de Castro (1987) assinala que em determinadas sociedades – como as que vivem em aldeias do Alto Xingu – o corpo humano é “fabricado” a partir de processos intencionais e periódicos. Essas mudanças produzidas no corpo proporcionam outras de posição social e, por conseguinte, de identidade social. A “fabricação do corpo” é intervenção consciente da cultura sobre o corpo humano, construindo a pessoa, modificando sua essência e se manifestando desde a gestualidade, até alterações da forma desse corpo. As modificações corporais são realizadas entre os xinguanos por meio de rituais que a encenação da criação do humano faz referência à morte e à vida. Concebendo os homens como uma produção cultural, sua

fabricação presume uma reclusão, porquanto é durante a reclusão que há uma mudança significativa no corpo e onde os papéis sociais são assumidos. “A personificação do homem ideal depende de uma adesão correta às regras ditadas pela tecnologia do corpo na reclusão” (Viveiros de Castro, 1987: 35). Todavia nota- se o corpo desempenhando um papel central na construção da identidade da pessoa xinguana.

Entre os Bororo do Mato Grosso, fato semelhante ocorre. Nos rituais, as danças são utilizadas como um instrumento de educação do corpo, em que os jovens ao “fabricarem seus corpos” constituem uma identidade específica. A dança representa uma “prática educativa significativa para a transmissão de valores, de técnicas corporais e dos sentidos e significados que compõem os patrimônios clânicos e as relações entre os clãs na cosmologia Bororo” (Grando, 2005a: 173). A dança acompanha os adornos e pinturas corporais que expressam uma simbologia. Durante a dança, são expressas as histórias e as relações sociais que constituem o grupo e, ao dançar, as pessoas assumem seu lugar na sociedade.