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DE 7 DE ABRIL DE 1997 Art 1º Constitui crime de tortura:

No documento Tortura : na atividade policial investigativa (páginas 139-147)

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo;

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou suspeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime á cometido por agente público;

II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;

III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

§2º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

A primeira coisa que se ressalta da leitura do texto, e talvez seja este o maior defeito da lei, é que fugindo completamente à disciplina das Convenções internacionais sobre a matéria, das quais o Brasil é signatário, ela não montou o tipo da tortura como crime exclusivamente especial ou próprio, mas sim como crime comum178. Isto significa que o bem jurídico tutelado pela tipologia construída pela lei tem caráter bifronte, na medida em que não tutela apenas as garantias constitucionais básicas do cidadão contra os agravos realizados por funcionários públicos, mas também no que tange aos abusos praticados por qualquer pessoa. Em outros termos, admitiu a possibilidade de autoria do crime por qualquer pessoa, seja ou não agente público.

Com efeito, a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, de 05.02.1985, como já vimos, ao definir "tortura", além de referir-se à prática de "qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa", deixou claramente consignado que "tais dores e sofrimentos são infligidos por funcionário público

ou outra pessoa no exercício de funções publicas, ou por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência".

A mesma Convenção, no seu artigo 3º, como também já salientamos, estipula que somente os funcionários públicos ou pessoas que ajam por instigação de funcionários, podem ser responsáveis pelo delito de tortura.

178 Crimes comuns, na classificação dos tipos penais, são os que podem ser praticados por qualquer pessoa, não se exigindo nenhuma qualidade específica à pessoa do agente ou sujeito ativo, a exemplo do furto, roubo, homicídio etc. Os crimes próprios são aqueles que exigem uma condição do sujeito ativo, condição que pode ser de origem jurídica (funcionário público); profissional (médico, comerciante etc); de parentesco (pai, mãe, filho etc.) ou natural (gestante, homem etc). Os crimes especiais são aqueles que figuram no Direito Penal Especial, ou seja, na legislação penal especial, como por exemplo Código Eleitoral, Código Penal Militar etc. Nesse sentido o entendimento da doutrina é jurisprudência especializada é unânime, a exemplo de BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Direito Penal: parte geral volume 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 87, que ao tratar da classificação dos crimes e da questão em tela ensina o seguinte: "Segundo a sua execução pelo possível agente, os delitos podem ser comuns, próprios e de mão própria. Crimes comuns são os que podem ser executados por qualquer pessoa. A lei não exige nenhum requisito especial para que alguém possa ser autor. [...] Nos crimes próprios ou especiais o tipo exige que o autor apresente uma qualidade diferenciada. Assim, infanticídio, a autora deve ser parturiente; no estupro, o autor deve ser homem; no peculato, deve ser funcionário público; nos omissivos impróprios, deve ter o dever jurídico específico de impedir o resultado."

Cuidando-se de tratado internacional que versam sobre direitos humanos, do qual é o Brasil signatário, as normas nele estabelecidas, a teor do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição de 1988, têm status de normas constitucionais, não podendo, destarte, serem postergados.

Nesse sentido, vele trazer a lume o seguinte entendimento de Antônio Augusto Cansado Trindade, citado por Flávia Piovesan179

se para os tratados internacionais em geral se tem a intermediação do Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar às suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos, consoante os arts. 5º (2) e 5º (1) da Constituição brasileira passam a integrar os direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno".

A partir dessa interpretação, aduz Franco180

é evidente que o tipo de tortura, na legislação penal brasileira, não poderia destoar flagrantemente da definição contida nas convenções internacionais [...] Destarte, o conceito de tortura, como crime próprio, já faz parte do ordenamento jurídico brasileiro, em grau constitucional. É evidente que tal conceito não dispensa, por respeito ao princípio da reserva legal também de nível constitucional, da intermediação do legislador infraconstitucional para efeito de sua configuração típica. Mas esse legislador não poderá, sem lesionar norma de caráter constitucional, construir um tipo de tortura que não leve em conta o conceito já aprovado em convenções internacionais.

E conclui, este mesmo autor, pela inconstitucionalidade da Lei 9.455/97, com as seguintes palavras181:

179 PIOVESAN, Flávia, Direitos Humanos e o Direito Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 103-104.

180 Ob. cit. p. 3101. 181 Idem, ibidem p. 3101.

Assim, lei ordinária que desfigure a tortura de forma a torná-la um delito comum e não próprio, está eivado de manifesta inconstitucionalidade, tal como ocorreria se o legislador ordinário entendesse que o delito de racismo comportaria a pena detentiva ou de multa ou que a ação de grupos armados, civis ou militares, contra o ordem constitucional e o Estado Democrático, constituiria fato criminoso prescritível ou, ainda, que os delitos hediondos e outros a eles assemelhados seriam suscetíveis de graça ou anistia 182

O entendimento de que o crime de tortura deveria ser acolhido como crime próprio constitui posição predominante na doutrina, a exemplo de Manuel de Rivacoba183, lembrado por Franco184, bem assim T.S. Vives Antón et alii (in Derecho Penal-Parte Especial, Valencia, Tirant lo Blanch, p. 113, 1990) e Francisco Muñoz Conde (in Derecho Penal-Parte Especial, 8ª ed. Valencia, Tirant lo Boanch, p. 667, 1991), ou ainda Francisco de Assis Toledo (in "Sobre o crime de tortura na recente Lei 9.455/97", Justiça Penal, São Paulo, Ed.RT, vol 5º, p. 13-14, 1997), Rui Stoco (in "A tortura com figura típica autônoma", Enfoque Jurídico, TRF, da 1ª Região, março-abril de 1997), para quem "a opção da lei em estabelecer a tortura como crime comum, por alargar seu espectro de abrangência, ocasionará sérios problemas no que pertine ao conflito de normas" e, por fim, Sérgio Salomão Shecaira (in "Algumas notas sobre a nova Lei de Tortura", Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 54, p. 2), com a seguintes considerações:

Melhor seria, ainda, para a deliberação do objeto e alcance da lei, que o crime de tortura viesse classificado como crime próprio - aquele que pode ser cometido por determinada categoria de pessoas - e não como crime comum, cujo autor pode ver a ser qualquer pessoa. É

182 A referencia feita a essas possibilidades dizem respeito ao fato de que a Constituição, nos seus incisos XLII, XLIII e XLIV, todos do art. 5º, prescreveu que prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, igualmente à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático e que os crimes hediondos são insuscetíveis de graça o indulto.

183 RIVACOBA, Manoel de. Crisis y pervivencia de la tortura:estudios penales, libro homenaje ao professor J. Antón Oneca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1982, p. 802, nos seguinte termos: "en el dolo o sufrimiento físico, infligido por funcionário público e por orden o instigacion de él, para pbtener así, contra o sin la voluntad del atormentado, la confesión del delito que se persigue o de otros que haya perpetrado, o la declación de quienes delinquieron com él, o bien para purgar la infamia inherente al delito. "

que, neste contexto, inúmeras dúvidas poderão surgir, "dada a abrangência da definição".

Diante de todas essas considerações, como dissemos, e agora com as palavras de Franco185,

não se pode fugir à conclusão de que a Lei 9.455/97,ao conceituar a tortura como crime comum, isto é, exeqüível por qualquer pessoa, alem de lesionar, de modo flagrante, norma constitucional que tem embasamento em tratados internacionais [...] está na contramão da doutrina atual sobre a matéria.

Associado a isso, destacamos o fato de que nas legislações internacionais, como a da Espanha e de Portugal, o crime foi acolhido na modalidade de crime próprio, restringindo-se a possibilidade de sua autoria aos agentes do Estado.

Outra crítica que se pode fazer à lei, agora mais técnica, diz respeito às modalidades de tortura que prevê. Trata-se daquelas que exigem do agente as ações de "constranger" e "submeter", que ficam na dependência, para configuração da sua categorização típica integral, de uma valoração judicial de espectro muito largo, na medida em que exigem a clarificação dos limites conceituais do "sofrimento físico" ou do "sofrimento psicológico" da vítima, o que não é tarefa factível ou, se o for, de dificílima concreção, o que certamente gerará por parte do julgador até por imposição de princípio legal do "in dúbio pro reo", o afastamento da figura típica e conseqüente absolvição do eventual torturador acusado.

Abordando sobre essa dificuldade Franco186 enriquece a crítica com as seguintes colocações: "ainda que se admita, para argumentar, que é possível, através de perícia médico-legal, detectar o sofrimento físico de alguém, ano se pode ignorar que vários sofrimentos físicos podem ser infligidos sem que deles decorram vestígios" e ainda mais essa: "o sofrimento mental de

185 FRANCO, Alberto Silva. Ob. cit. p. 3103. 186 Idem, ibidem, p. 3105.

uma pessoa constitui um conceito extremamente poroso, que, por isso, flutua no ar, sem nenhum ponto de engate na realidade" e, por fim, essa última: "o sofrimento mental, dimensionado em termos não concretos, mostra-se de extrema variabilidade, podendo ser diverso conforme a maior ou menor sensibilidade ou capacidade reativa de cada pessoa".

Problema ainda maior surge quando pomos os olhos na categoria da tortura prevista no § 1º do art. 1º, que exige não apenas a configuração do sofrimento, mas que este seja "intenso". Com que régua poderia o julgador medir a intensidade desse sofrimento?

Outro aspecto digno de crítica diz respeito a alargada margem punitiva entre o mínimo (de dois anos) e o máximo (de oito anos) da pena cominada para as duas formas básicas de tortura, consistente nas ações de constrangimento e submissão, já que o máximo da pena constitui o quádruplo do mínimo legal. Nesse sentido as seguintes colocações procedentes de Franco187

os marcos excessivamente amplos convertem em verdade o juiz em legislador. Na medida em que este se omite de sua missão de determinar, com adequação razoável um mínimo e um máximo de pena, em função do desvalor do fato, e estabelece, por comodismo ou irresponsabilidade, balizas punitivas largas dentro das quais autoriza a atuação do juiz, a segurança de cada cidadão estará em jogo, pois, em vez do desejável e discreto arbítrio judicial, instaura-se o regime da arbitrariedade do juiz, em que um quadro de inúmeras opções despropositadas encontra forma de expressão.

Ainda no pertinente ao excesso de penalização, destaca-se o fato de que a lei, nos termo da previsão contida no § 5º do art. 1º, voltou a contemplar o que já estava sepultado pela reforma penal de 1984, que é a interdição do condenado para o exercício de cargo, função ou emprego público como efeito acessório da sentença transitada em julgado, a qual, tratando-se conseqüência automática, independe de fundamentação. E mais, estabelecendo que a dita

interdição terá duração do dobro do prazo da pena máxima aplicada, em tese, estabeleceu-se a possibilidade de que a mesma possa atingir 42 anos, considerando que a pena máxima de uma das modalidades do tipo de tortura que prevê (a qualificada pelo resultado morte), nos termos do § 3º do art. 1º, pode chegar a 16 anos, sobre os quais pode ainda incidir o aumento de 1/3 previsto no § 4º, quanto então teremos a pena possível pena máxima de 21 anos, que em dobro significa até mais de 42 anos de vigência da aludida interdição, o que certamente se constitui em exagero, em que pese a excessiva gravidade do tipo gerador em tela.

Além dessas críticas sobre a lei em questão, existem outras, de igual modo dignas de nota. Entretanto, o teor excessivamente técnico de tais vícios não se coaduna com o objetivo deste trabalho, razão pela qual encerramos aqui a missão crítica sobre a Lei 9.455/97, destacando o que desde o início ficou consignado: de que a lei tem o mérito do simples fato de ter sido promulgada, pois só com ela fornece-se instrumental específico e adequado para o combate deste que certamente se constitui num dos mais hediondos dos crimes, que é a tortura.

Também finalizamos neste momento a parte do trabalho que tem como objetivo analisar a tortura sob a perspectiva jurídico-dogmática, de modo que, doravante, dela voltaremos a tratar, mas com outras lentes, mais especialmente da lei social. Lei que não se prende ao que "dever ser" da dogmática, mas a realidade da vida, do "que é".

Não seria equívoco afirmarmos, pelo que vimos até aqui, que a tortura, pelo menos do ponto de vista das normas jurídicas positivadas pelo Estado, está encurralada, pronta para ser banida da sociedade. Entretanto, o que sentimos, assistimos e vivemos é que ela nunca esteve tão presente e perto de nós todos, bafejando o nosso pescoço, quase dentro das nossas casas, a ponto de tornar-se tão intima que com ela convivemos sem nos apercebermos da sua presença e até sendo complacentes com a sua companhia.

Vejamos o que a sociedade tem a dizer sobre isso, pois foi invocando-a que o nosso Delegado interlocutor pretendeu justificar este flagelo.

CAPÍTULO 3

No documento Tortura : na atividade policial investigativa (páginas 139-147)