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2 BRANQUITUDE E EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZAÇÕES

2.4 De onde se fala nessa pesquisa

Pesquisar sobre educação e relações raciais em um país que, respectivamente, desqualifica e nega essas temáticas foi um trabalho desafiador, assim como delimitar o que era possível pensar, dizer e, de fato, escrever, considerando meu lugar de fala, que não consiste na docência, tampouco de uma pessoa negra que vivencia diariamente o racismo. Do encontro com as discussões da pesquisa, fui provocada a pensar sobre minhas experiências, sobre as lacunas na minha formação em psicologia, e principalmente em relação à construção da minha identidade racial e seus privilégios. Foi preciso olhar para os “benefícios” atribuídos à cor da minha pele, para as inúmeras situações que não vivenciei e nem mesmo de forma empática fui capaz de mensurar.

Quando a branquitude se questiona sobre o lugar que ocupa na sociedade e internaliza a alteridade, a diferença, nada mais é como antes: os programas de televisão, os outdoors e capas de revistas, o sistema de saúde, a educação, o mercado de trabalho, a literatura, as instituições, etc. Não há mais como deixar de perceber que o racismo - silencioso, estrutural e velado - sempre esteve ali, presente no bojo dessas relações. Nas diferentes instituições que transitei ao longo da vida - família, escola e universidade - não fui provocada a pensar sobre o racismo, esses espaços só contribuíram para manter a inércia e a falta de crítica diante dessas discussões.

Digo isso sem valorar esses espaços como perversos ou dotados de intencionalidade, mas para mostrar como os discursos raciais enraizados em nossa sociedade nos cegam, têm poder de dizer coisas, ou de ocultá-las. Ademais, não bastava pesquisar os processos históricos de exclusão, violência e invisibilidade vividos pela população negra, mas entender, acima de tudo, que a branquitude está estreitamente implicada nessa construção social, atuando para manter as diferenças e as hierarquias raciais.

Com essas reflexões, esbarrei na “porta de vidro” da branquitude de forma irremediável, tomando as palavras de Piza (2002):

Talvez uma metáfora possa resumir o que comecei a perceber: bater contra uma porta de vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isto resume, em parte, o descobrir-se racializado, quando tudo o que se fez, leu ou informou (e formou) atitudes e comportamentos diante das experiências sociais e públicas e principalmente privadas, não inclui explicitamente nem a mínima parcela da própria racialidade, diante da imensa racialidade atribuída ao outro. Tudo parece acessível, o muito que se sabe sobre o outro e o quase nada que se sabe sobre si mesmo (PIZA, 2002, p.60-61)

No contato com o grupo de pesquisa “Identidade e Diferença na Educação”, com a narrativa de autores(as) negros(as) e com o trabalho de pesquisadores(as) brancos(as), que se debruçam sobre a temática racial - em especial sob a perspectiva da branquitude - iniciei um processo de desconstrução, ou melhor, passei por processos outros, de subjetivação. Pensando com as lentes foucaultianas, é possível afirmar que o sujeito é um espaço vazio que pode ser ocupado por diferentes discursos, deste modo, acredito que a aproximação com discussões antirracistas me deslocou do torpor para ação e constante vigília, pois não basta autoafirmar-se contra o racismo, é preciso enxergar que existem distinções, confrontando os “privilégios brancos” e a naturalização dessas desigualdades.

Para problematizar de onde se fala nessa pesquisa, gostaria de dialogar respectivamente com três conceitos: lugar de fala, lugar de escuta e lugar de causa. Em 2017, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro publicou o livro “O que é lugar de fala?”, amplamente divulgado dentro e fora da academia, sua obra ficou vinculada à emergência desse conceito, embora sua definição já tenha sido discutida por outros autores em contextos diferentes. De acordo com Ribeiro (2017), o lugar de fala está relacionado à noção discursiva, não à fala justamente dita, mas a uma totalidade de instituições e sistemas que por meio das práticas discursivas e não discursivas, conduzem o imaginário social através de relações de saber-poder. Para a autora, esse conceito relaciona-se, ainda, às experiencias sociais e raciais díspares que dão origem aos processos de segregação e hierarquização, e que são vividas comumente de forma histórica pelas minorias raciais e de gênero.

O lugar de fala está relacionado com o lugar social. Haraway (1995) adverte que é necessário refletir não só sobre a ocupação desse espaço, mas como ele produz nossos corpos, a fim de que possamos assumir uma postura menos ingênua. Busco falar a partir do lugar social que ocupo como mulher branca, que percebe os privilégios raciais, enquanto psicóloga que considera o adoecimento psicológico provocado pelo racismo - violências e vulnerabilidades - e como pesquisadora, que se ancora no olhar da branquitude, buscando estudar o racismo sem tomar o negro como sujeito-objeto, mas sim as pessoas brancas e os agentes implicados no contexto da educação, para pensar os atravessamentos de uma branquitude educativa.

Djamila, em entrevista concedida para o site da UOL em julho de 2020, afirma que todo mundo tem seu lugar de fala e que:

Existe muita confusão nas redes sociais, pois as pessoas entendem lugar de fala como interdito, ou como desculpa para não agir, justificando que não é seu lugar de fala e então não é preciso agir, mas todo mundo tem um lugar de fala, porque estamos falando de um lócus social de onde partimos e é fundamental que as pessoas brancas discutam esse conceito para não naturalizar o seu lugar de privilégio, para entender

sua responsabilidade e também compor essa luta no sentido de criar mecanismos de enfrentamento ao racismo, mas, sobretudo, da responsabilidade que leva à ação antirracista de fato (RIBEIRO, 2020).

Nesse entendimento, não pretendo falar por homens e mulheres negras, não busco falar pela negritude ou pelos movimentos negros, nem ocupar esse lugar, mas percebo a necessidade de agir, de entender o processo de racialização branca e o meu papel na branquitude. Como aponta Mombaça (2017a), há uma “política de autorização discursiva” - organizada antes mesmo dos tensionamentos promovidos pelos ativismos - que vai deslegitimar o direito de fala de alguns grupos. Por esse motivo, considero a importância do lugar de fala para romper com a hegemonia de algumas narrativas, criando um espaço legítimo para outras vozes. Ao desautorizar o lugar de fala, está sendo interditada a possibilidade de construir uma sociedade em que todos tenham acesso à fala e à escuta. Seria pertinente nesse sentido, nos questionarmos se é mais importante saber quando e o que é possível falar, ou seria saber se estamos preparados para escutar (MOMBAÇA, 2017b).

Diante dessa problemática do lugar de fala, e dos perigos do ato de “dar voz”, talvez o melhor caminho seja aprender a ouvir o outro, de forma aberta e sem julgamentos, pois essa escuta não se constitui enquanto introspecção, mas como exercício da alteridade, fazendo uma lógica inversa aos processos de silenciamento, ao passo em que são construídos espaços de pensamentos, conhecimentos e de trocas (GORJON, 2018). Trago a ideia de “lugar de escuta”, pois assumo minha posição de privilégio racial, mas me coloco em um lugar de escuta e respeito a outros lugares de fala, com uma postura autocrítica, sem que haja a necessidade de um silenciamento. Segundo Rolnik (1992, p.11), o “lugar de escuta” pode ser entendido como “a potência de deixar-se afetar pelas turbulências que as diferenças provocam e de digerir tais turbulências”. Proponho a escuta como exercício da alteridade, não enquanto técnica psicológica/terapêutica, mas a partir do entendimento de que, às vezes, se é mais útil com os ouvidos, do que com as palavras. Gorjon, Mezzari e Basoli (2019) diante da afirmação que todas as relações estão implicadas em jogos de saber-poder que determinam certos regimes de verdade, trazem que a escuta preceda a fala enquanto estratégia de enfrentamento, sobretudo para nós, pesquisadoras brancas, que se encontram em um grupo racial privilegiado.

Na pesquisa, opto por dar ênfase aos discursos da branquitude que vão surgir a partir das falas dos professores(as) e demais profissionais da educação. Isso possibilita não só tomar o sujeito branco como objeto de estudo, seu comportamento e percepções em relação ao racismo, mas também escutar a partir de uma mesma posição racial, atravessada por discursos que são estruturantes da sociedade. Com isso, foi preciso assumir uma postura ética e autocrítica, para

não reproduzir invisibilidades enquanto uma pesquisadora branca. Alcoff (1991), ao encontro desse pensamento, traça algumas considerações: é preciso controlar o impulso de ser sempre a pessoa que fala, uma vez que a possibilidade dessa escola em si, já representa uma posição privilegiada; problematizar a relevância entre o lugar que se fala e o contexto em que acontece;

responsabilizar-se por aquilo que é falado; e considerar os efeitos materiais e discursivos que estão implicados naquilo que falamos, porque a emergência de determinado discurso e para onde ele caminha.

Por fim, proponho pensar em “lugar de causa”, conceito apresentado por Antunes (2020) como um caminho distinto da ideia de lugar de fala, em que há uma leitura não segregativa entre “nós” e “eles”. Os grupos identitários reivindicam o “lugar de fala” como uma das principiais pautas, o que pode dificultar o diálogo com não pertencentes, ou aqueles que não possuem a mesma identificação. Esse processo conduz a uma segregação, pois não há possibilidade de mediação, de espaço, de escuta e contingência, fazendo com que opere um imediatismo nessas relações, a “cultura do cancelamento” que ganha holofotes frente às redes sociais. Para o autor, cada um fala a partir desse lugar, que não se trata de um enunciado e nem de uma proposição, mas de uma vociferação - um lugar de mais-ninguém - em que somente ele poderia falar (ANTUNES, 2020).

Diante disso, acredito que além das experiências pessoais com a alteridade e minha trajetória acadêmico-profissional tenham contribuído para o “lugar de causa” de onde falo nessa pesquisa, uma vez que a temática das desigualdades, das vulnerabilidades e das injustiças sociais sempre estiveram presentes, trazendo desconfortos e inquietações. O percurso que iniciei como psicóloga, direcionando as pesquisas para o campo da saúde mental, se deslocou para educação e a temática das relações raciais, mas o desejo por uma sociedade mais igualitária permaneceu no cerne dos meus interesses. Com isso, antes do lugar social que falo enquanto uma mulher branca, psicóloga, pesquisadora do racismo e das relações raciais, falo do lugar de quem acredita na escrita e na pesquisa como ato político - de resistência - na potência da educação para a luta antirracista, do lugar de quem deseja mudanças para uma sociedade equânime, com justiça racial ao invés da violência e genocídio negro.

Compreendo que também estou implicada em uma sociedade brasileira que nega o racismo e se utiliza de diferentes estratégias – dentre elas a própria educação – para inflar as desigualdades e reforçar uma hierarquização racial, por esse motivo, o processo de autocrítica precisa ser constante, não há um processo de desconstrução estático, uma vez que somos constantemente atravessados por diferentes discursos que nos subjetivam. A partir dessa preocupação, e da necessidade de enfatizar características próprias em que se constitui o

racismo no país, busco refletir no próximo capítulo “Dinâmica Social do Racismo e da Branquitude no Brasil” sobre essas particularidades e seus efeitos discursivos.