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De “reis e rainhas” ao repórter de uma geração”: refletindo sobre as

5. Olhares acadêmicos sobre homossexualidades em Florianópolis: va

5.1. De “reis e rainhas” ao repórter de uma geração”: refletindo sobre as

Escreve-se para contar, não para provar

(Tito Lívio)

Através da leitura destes diferentes trabalhos foi possível observar que muitos autores procuravam entender, entre outras coisas, como se configuravam os modos de vida de sujeitos homossexuais na cidade de Florianópolis. Assim, se por um lado foram consideráveis os avanços obtidos pelos movimentos homossexuais na dura batalha política pela conquista dos seus direitos civis, por outro, a questão homossexual ainda continua a ser entendida como uma forma particular, uma maneira de se viver, falar, comportar-se, uma forma alternativa de singularização. Os trabalhos referidos, em geral, vão ao encontro das reivindicações dos movimentos homossexuais pela defesa da liberdade pessoal, visibilidade, combate à homofobia, ou qualquer forma de discriminação ou violência. Além das questões pertinentes às reformas legislativas e judiciais que possam garantir os direitos civis dos sujeitos homossexuais.

As transformações ocorridas na cidade de Florianópolis fizeram com que se ampliassem aqueles lugares públicos ocupados pelas travestis para fazerem prostituição de “pista” e que foram descritos por Marcelo Oliveira (1997). Atualmente, as travestis têm

professora Joana Maria Pedro (História) e a professora Sônia W. Maluf (Jornalismo) informou sobre o vídeo produzido por Marcos Aurélio da Silva e Viviane R. Peixe.

ocupado outros espaços, especialmente no Continente, mas também em praias como Canasvieiras, por exemplo. A prostituição de rua continua a existir no centro, mas agora desempenhada basicamente por prostitutas e michês, que diferem dos grupos de meninos “de rua” descritos por Erdmann (1981).

O próprio carnaval em torno do Bar Roma se transformou. Se na época da pesquisa de Erdmann (1981, p. 70) era um lugar de boêmios e jornalistas, em que heteros e homossexuais se vestiam de mulher para brincarem o carnaval de rua, compartilhando uma certa “anormalidade”, a pesquisa de Silva (2003, p. 124) já aponta para uma demarcação diferente deste território, onde se vestir de mulher no carnaval do Roma, ao final dos anos 80, passa a ser considerado “coisa de guei”. Anna Paula Vencato (2002), também elaborou uma reflexão sobre o carnaval do Roma, mas o seu foco eram as drags. Seu trabalho mostra a fluidez das fronteiras de gênero, onde o transvestismo das drag queens aparece como uma resposta à idéia de fixidez de categorias dicotômicas (homossexual/heterossexual, masculino/feminino). Outro fato constatado pela autora foi que, mesmo sendo festejadas nos pedaços gueis, as drags preferiam trabalhar para o público hetero.

Grande parte dos trabalhos apresentados trata da questão do gueto no sentido de uma categoria nativa e, através de suas leituras, pode-se identificar no mínimo dois posicionamentos: o primeiro é que o gueto representa um lugar de separação, mercantilização e consumo, e o segundo o encara como um espaço de resistência, de uma mínima liberdade e prazer, além de formador de identidades. A partir destes pontos de vista, é possível entender porque muitos sujeitos homossexuais evitam freqüentar estes locais e ultrapassam os limites destes territórios eminentemente freqüentados por um público GLS, indo para além do gueto e se inserindo nos demais circuitos da cidade.

Uma outra característica encontrada nestes trabalhos foi que, em sua maioria, os pesquisadores se fizeram presentes “nos cenários onde ocorre a ação”. Esse fato, com certeza, exigiu que se superassem certos constrangimentos, como não serem confundidos com seus “objetos” de estudo, por exemplo. Florianópolis oferece uma peculiaridade a seus moradores, ao mesmo tempo em que parece uma pequena cidade, onde a qualquer momento podemos nos deparar com familiares ou conhecidos, combina certos traços e serviços típicos de uma cidade maior, com um relativo anonimato.

Faço minhas as palavras de um entrevistado de Teresa Sell (p. 175) quando afirma que talvez no Brasil as coisas sejam diferentes, “mas o que conheço de [produções acadêmicas sobre homossexualidades em] Florianópolis, é isso!”.

Capítulo II

A CAMINHADA

Foi tão complicado seguir na minha estrada pra chegar até aqui...

(Marina Lima – Antônio Cícero)

Como já foi dito anteriormente, este trabalho teve como objetivo compreender como sujeitos homossexuais de Florianópolis, homens e mulheres de diferentes gerações, vive(ra)m na cidade, em diferentes tempos e espaços, identificando seus modos de vida e processos de sociabilidades. Na longa jornada de construção desta tese de doutorado, no entanto, vários pequenos problemas foram surgindo enquanto cumpria os créditos e mesmo quando já realizava a pesquisa de campo. Estas dificuldades, entretanto, não fizeram com que eu me afastasse das questões definidas no projeto inicial. Houve momentos de paradas, de incertezas, de busca de um novo tema a ser pesquisado, porém o resultado disso tudo me parece hoje bastante proveitoso. Com certeza, a ida a campo fez com que surgissem novos questionamentos e apresentou novas possibilidades e dificuldades que passam agora a ser discutidas.

Logo no início do curso me deparei com uma dificuldade não esperada. No primeiro dia de aula, na sala do coordenador, houve uma reunião onde foi apresentado aos novos alunos o programa do Curso e onde, entre outros temas de discussão, cada um falou do seu projeto de pesquisa. Estavam presentes, também, dois dos três representantes discentes98 junto ao Colegiado do Programa, e foi justamente um destes doutorandos quem emitiu um comentário bastante desagradável sobre o tema de minha pesquisa. Não durante a reunião, mas por telefone para a sua colega, representante da linha de Gênero. O questionamento do colega se referia ao fato de alguém estar trazendo este tipo de tema para ser trabalhado no programa interdisciplinar de doutoramento em Ciências Humanas.

A atitude tomada demonstra todas as características encontradas naquelas pessoas que também podem ser consideradas homofóbicas. Se não demonstrou ostensivamente um ódio aos homossexuais, considera o assunto de menor importância. Talvez, maculando o seu

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Na época, o doutorado se dividia em três linhas de pesquisa, cada uma indicando um representante discente ao Colegiado do Curso.

doutorado. Elaine Berutti (2002, p. 144), falando daqueles que ainda “não aceitam a inclusão dos estudos gays e lésbicos na agenda intelectual do Brasil, no século XXI, por advogarem o preconceito, a estigmatização e, até mesmo, a violência”, afirma que só nos resta afirmar junto com o “poeta” Cazuza99 e com a “roqueira” Cássia Eller: quando suplicam piedade “pra essa gente careta e covarde” e que o Senhor “lhes dê grandeza e um pouco de coragem”.

Este comportamento, no entanto, pode trazer dois tipos de reação: demonstrar a importância e a urgência em se discutir mais e sempre a questão da homossexualidade, procurando ocupar todos os espaços; ou, causar um desgaste, fazendo com que muitos desistam de continuar falando (se expondo) sobre um tema que ainda gera controvérsias e aquele “risinho” de desconforto dos que se sentem incomodados. Em ambas as situações há um desgaste psicológico muito grande: descobrir que o seu tema de pesquisa está carregado de preconceito mesmo num curso de doutorado. Gostaria de deixar claro que não encontrei, quando do processo de seleção, tal discriminação e tampouco nas lidas diárias do curso. Percebi, contudo, que muitos ainda compartilham do posicionamento homofóbico daquele representante discente. Tanto outros doutorandos, quanto alguns professores.

Aquele foi um episódio único, mas marcante a ponto de pensar duas vezes sobre onde e como falar do meu projeto. Era fácil apresentá-lo para os iguais, aqueles que estudavam e estavam interessados em discutir a questão das relações de gênero. Todavia, em sala de aula havia momentos em que me calava e perguntava onde gostaria de chegar, insistindo num assunto que, aparentemente, só interessava a mim, às minhas orientadoras e a alguns colegas. Sentia que se implantava em mim o germe da desconfiança da tão propalada “validade científica” do meu tema de pesquisa. Quando aventei a possibilidade de trocá-lo tive um sentimento de maior aceitabilidade social. Ao vislumbrar a possibilidade de trocar a discussão sobre a homossexualidade para a questão da violência contra a mulher, percebi que recebia um maior investimento afetivo no curso. Menos dos amigos e, certamente, não das orientadoras e professoras da linha, que não entendiam a desmotivação pelo primeiro tema.

Até no local do meu trabalho, pois atuo como psicólogo numa delegacia de polícia de atendimento às mulheres vítimas de violência, o interesse sobre a pesquisa foi redobrado. Uma das questões levantadas e com a qual, ao menos em parte eu concordo, tratava da

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O cantor Cazuza, nascido Agenor de Miranda Araújo Neto (1958-1990), declarava-se bissexual e morreu vítima de AIDS. Quando perguntado sobre sua orientação sexual respondia: “Eu digo que sou [bissexual]... acabo ficando com fama de bêbado, homossexual e maluco...” (Araújo, 2001, p. 362). Cássia Eller (1962-2001), que gravou esta música num CD onde canta somente composições de Cazuza (Veneno

antimonotonia/Polygram/1998), criou polêmica, após a sua morte, ao deixar a guarda de seu filho Chicão a sua

necessidade de não se restringir a um único tema. Uma das piadas que corria nas internas da DP é que logo eu seria um doutor em “viadinhos”. O mais incrível, diziam, era que isto aconteceria numa universidade pública, como se, com isto, houvesse um desperdício do dinheiro público. Novamente, não havia uma atitude ostensiva contra mim, mas tais atitudes me provocavam uma sensação de desconforto. Isso sem falar que neste universo de 20 e poucos policiais, trabalham pelo menos três “assumidamente” homossexuais (dois gueis e uma lésbica) e outros tantos simpatizantes, ou suspeitos100.

Estes fatos demonstram que a força da pressão social é muito grande e, se por acaso nos encontramos fragilizados, ela se potencializa a tal ponto que a internalizamos sem maiores questionamentos. Isto aconteceu comigo, quando percebi que já não estava mais conseguindo pensar e/ou produzir sobre homossexuais e homossexualidades e meu interesse estava se restringindo à necessidade de compreender e fazer avançar os trabalhos sobre as violências contra as mulheres. Neste ínterim, já havia realizado pelo menos cinco entrevistas gravadas com sujeitos homossexuais, além de ter mantido contato com outros possíveis informantes, visando entrevistá-los mais tarde.

A mudança do tema de pesquisa não é um acontecimento raro nos cursos de pós- graduação. Durante a realização do meu mestrado, já estando no campo, alterei o foco do projeto inicial. Após a realização das quatro primeiras entrevistas, todas com moradores do distrito de Ratones, no município de Florianópolis, algumas inquietações começaram a surgir, principalmente relacionadas com o envolvimento dos casais de homossexuais com a comunidade. Por ser um local muito pequeno, pareceu que um trabalho resgatando esta história seria, também, bastante relevante para demonstrar como a vivência e a prática da homossexualidade, de formas diferentes, estão presentes em todos os lugares.

Foram necessárias algumas discussões com a orientadora até que o novo formato da pesquisa se redesenhasse. Assim, naquele momento, acabamos decidindo que somente seriam entrevistados homossexuais que residiam na Cachoeira do Ratones e no Canto do Moreira, dois lugarejos que pertencem ao Ratones. Também foi decidido que seria necessário entrevistar alguns moradores da comunidade para tentar compreender um pouco a história local e o envolvimento dos “nativos” com a homossexualidade dos seus habitantes, ou daqueles que escolheram aquela localidade para morar.

queria oficializar a sua união com Maria Eugênia para que, em caso de morte ou doença, a companheira ficasse com a guarda do garoto. Elas moravam juntas há 14 anos.

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Esta tem sido uma brincadeira corrente entre alguns grupos de homossexuais, considerar o S, da sigla GLS, como suspeitos de também serem homossexuais, que por algum motivo ainda não se “assumiram”.

Naquele caso, a situação de mudança não me pareceu perturbadora. O interesse, ao restringir o campo de pesquisa, havia sido demonstrar as diferentes possibilidades encontradas na convivência entre homossexuais e heterossexuais. Restringia-se o foco, mas se ampliava a compreensão do fenômeno. Agora, no doutorado, houve um momento de rejeição a continuar estudando a homossexualidade, optando até mesmo por uma nova temática, de melhor convivência ou aceitação social. O antropólogo Peter Fry (2000, p. 11) assinala que partiu “para outras bandas” porque “entre outras coisas, tinha medo de me tornar um homossexual profissional101”. Richard Parker (2002, p. 30) também salientou que focalizar a homossexualidade era “uma atitude quase suicida no que se refere à contratação no mercado de trabalho na minha área e a já duradoura marginalização de assuntos sexuais como questões legítimas na hierarquia de valores acadêmicos”. Ele estava se referindo ao ano de 1982 quando veio para o Brasil iniciar sua pesquisa sobre políticas de cultura popular, para sua tese de doutoramento. Como ressaltou, as preocupações quanto à respeitabilidade acadêmica e futuro profissional desapareceram “à medida que eu procurava trabalhar de acordo com minha própria imersão pessoal no dilema da sexualidade e da diferença cultural, transformando este dilema no foco central de meu trabalho” (Parker, 2002, p. 31). Para o autor, contudo, até se chegar a esta elaboração psíquica, há uma necessidade de ocultamento da homossexualidade, a própria ou de qualquer outro sujeito. Não mexer na ferida, não expor o que pode ficar guardado numa gaveta, “in closet”. Esta atitude também pode ser considerada como uma das expressões da homofobia, a internalização de conceitos diluídos na sociedade, em outras palavras, um rechaço da homossexualidade.

Este sentimento de hostilidade fica tão bem “resolvido” que dificilmente nos damos conta de sua dimensão. É fácil não falar de homossexuais, ou fazer de conta que eles não existem: basta ignorá-los. Acontece que eles continuam a existir e a sua própria existência é perturbadora da norma estabelecida, como no caso do doutorando que não queria ver o seu próprio curso discutindo sobre eles. Não nos apercebemos que não precisamos sair por aí, agredindo e matando homossexuais para demonstrar nossa hostilidade para com eles. O “simples” não querer falar, não querer ouvir o que dizem, já pode ser considerada uma demonstração da força social estigmatizadora.

A resolução deste conflito aconteceu apenas depois de ter apresentado um novo projeto, sobre as delegacias de polícia de proteção à mulher, e conseguido perceber que é necessário um distanciamento do “objeto” a ser estudado. Compreender que posso me

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reconhecer no trabalho a ser feito, mas não posso me confundir com o objeto. Apaziguar minhas angústias e reconhecer a importância de estudos que tenham como tema a homossexualidade.

Como não existe ciência neutra, todo projeto científico se estabelece a partir de determinado ponto de vista subjetivo, envolvendo idiossincrasias do cientista e do seu meio. Quer dizer, já ao eleger o que será examinado, entram em jogo os dados culturais de quem propõe tal exame porque algo lhe parece estranho e subjetivamente passível de exame. O próprio gesto investigativo cai sob suspeita por implicar um julgamento valorativo: quando se questiona a origem de algo diferente, fica sugerida a idéia de um desvio da normalidade (Trevisan, 2000, pp. 32-3).

Assim como fez o antropólogo Richard Parker (2002, pp. 33-4), também acredito ser importante explicitar que, neste trabalho, a minha vida pessoal e profissional se entrelaçam, da mesma forma que aparece uma interseção entre a pesquisa acadêmica e a militância. Assim, ao mesmo tempo em que as questões privilegiadas nesta tese se confundiam com minha própria trajetória pessoal, pude observar que a ressonância do material disponibilizado ampliou o meu conhecimento e envolvimento com os processos aqui descritos e analisados. Justamente por estar afetivamente envolvido com o tema escolhido, fazer parte da “aldeia” e por compartilhar de muitos dos valores que compõe o ideário dos “nativos”, precisei realizar um longo e inacabável processo de desconstrução do meu eu. O grande desafio encontrado foi o de estranhar o que me era familiar; relativizar certezas, deslocar o olhar.