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De que “sexualidade” partimos?

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 66-71)

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

2.2 Vidas no singular e a singularidade das grandes cidades

3.1.2 De que “sexualidade” partimos?

Embora na década de 50 tenhamos encontrado contribuições teóricas que instigaram um campo de discussão fértil à progressão e refinamento do discurso científico sobre o sexo e a sexualidade, estas teorias ainda se pautavam pelo vértice natural do fenômeno34. No entanto, em 1973, John Gagnon e Bill Simon, em Sexual Conduct, destacam a importância

33 Com a noção de identidade política Ciampa (2002) prevê contemplar a articulação entre diferentes personagens coletivas – decorrentes da participação do sujeito em comunidades de sentido – e a identidade pessoal. Refere-se a um sujeito privado, que “também pode assumir os diferentes papéis como um membro da sociedade civil, do Estado e do mundo” (CIAMPA, 2002, p. 144), preservando certo grau de autonomia e originalidade.

dos contextos sociais e culturais na configuração da sexualidade, reinaugurando35 a expressão “conduta sexual”. Estes autores desenvolvem sua teoria sociológica da sexualidade, com a premissa de que a sexualidade é, na condição de um comportamento humano intencionado, uma conduta roteirizada. Este foi um salto qualitativo na forma de olhar para o assunto, o que incitou um campo de discussão crítica que permitia questionar, atém mesmo, o caráter “revolucionário” das mudanças socioculturais neste âmbito, considerando sua dimensão política – a quem se aplica e que mudanças introduziram. Desta perspectiva ainda ressoa muitos avanços para o estudo da sexualidade, dos quais, citamos apenas alguns autores aqui contemplados: Jeffrey Weeks (2000), Vera Paiva (2008), Richard Parker (1999, 1996), Rosalind Petchesky (2008), Guacira Lopes Louro (2000).

Ao considerarem o repertório contextual na análise sobre a conduta sexual – o que denominam de cenário cultural – Gagnon e Simon (1984) compreendem este repertório como um guia instrucional da vida coletiva, dentre os níveis interpessoal e intrapsíquico da metafórica sintaxe de funcionamento social. Segundo os autores, é neste nível que se promulgam conteúdos simbólicos de sistemas institucionais por papéis sociais indicativos. Contudo, não são inteiramente predicativos do comportamento, além de estarem suscetíveis a incongruências com relação à situação concreta, em virtude do seu alto grau de abstração. Esta falta de congruência é resolvida, na perspectiva dos autores, justamente, com a criação de “scripts interpessoais”.

Tais aparatos sociais seriam responsáveis por articular sentidos, valores e situações em condutas significativas à formação identitária dos atores sociais. Frente um mundo em modernidade tardia e uma cultura pluralista, em que a estratificação de valores, sentidos e papéis sociais se dão, cada vez mais, por comunidades de vida particularizadas (BERGER, LUCKMANN, 2004), uma multiplicidade de universos simbólicos se constitui. Por sua vez, parecem ser de extrema funcionalidade, mas também motivo de desorientação, à elaboração de um número maior de scripts necessários ao estabelecimento de relações na vida cotidiana contemporânea. Daí resulta a importância de ponderar os três níveis da roteirização – cenários culturais, scripts interpessoais e scripts intrapsíquicos nos enredos de histórias de vida e processos identitários.

35 A expressão “conduta sexual” foi cunhada por Ernest W. Burguess (in Gagnon, 2006), numa crítica a Kinsey, sobre o inevitável caráter social do sexo na vida humana, sendo o comportamento sexual interpelado pela cultura e avaliado socialmente.

A partir da explicitação das razões e interesses que orientam scripts às interações conjugais que ocorrem na vida cotidiana, é possível acionar os projetos de vida envolvidos. De modo que, nos permita compreender, no caso da mulher solteira, a definição e posição das personagens identitárias em seus projetos de vida, seu processo de elaboração simbólica dos significados sociais e os sentidos singulares a estes atribuídos.

Comprometendo-nos com um conhecimento crítico e interessado36, buscamos,

paralelamente, investigar o potencial emancipatório do universo simbólico que envolve o termo “nova solteira”, a depender das razões e interesses – instrumentais ou comunicativas –, que possa dispor.

Outras noções permeiam o conceito de sexualidade em que nos baseamos. Elencamos, então, a concepção de sexualidade adotada por Weeks (2000), pautada na perspectiva do construcionismo social e nas contribuições de Foucault a este campo de estudo. Consideradas como constructos sociais, tanto a sexualidade como as possibilidades do corpo são socialmente organizadas e, como “aparatos históricos”, se desenvolvem como parte de uma rede complexa de regulação e manutenção de determinado sistema. Por meio de normatizações da sexualidade e do corpo, nossas definições, convenções, crenças, identidades e condutas sexuais são continuamente modeladas, no interior das relações de poder e em situações sociais concretas.

Perspectiva como esta só pode surgir dada complexidade social e processo histórico, por ocasião das novas configurações, demandas e procedimentos referentes à sexualidade, dispostas na prática e na teoria pelos mais variados interesses e propósitos. Um exemplo disto é que, com o processo de secularização das sociedades que procede com a modernidade, houve um deslocamento da autoridade normativa sobre o que se pensa e o que se faz em termos de sexualidade das instituições religiosas e morais para o discurso científico. Em decorrência, os discursos hegemônicos significativos compuseram-se de explicações positivistas e essencialistas, atrelados às Ciências Biológicas.

A modernidade e o pluralismo trouxeram consigo uma diversidade de oferta de sentidos à sexualidade, decorrente de novos tempos e situações sociais, novas perspectivas de vida e de interpretações teórico-conceituais as mais variadas. É também neste contexto que verificamos a delegação da função socializadora da família aos “peritos”: religiosos, pedagogos e cientistas. Assistimos emergir uma multiplicidade de aparatos simbólicos que

competem por legitimidade e propagação supraordenada de seus sentidos, principalmente por intermédio da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa. Como sistemas de valores dirigidos a áreas específicas e funcionais, buscam universalizar seus particulares, a fim de controlar significativamente a conduta do indivíduo e justificar ideologias dominantes que permeiam a vida social.

Novas noções e significados a respeito da sexualidade são possíveis, portanto, numa rede de conexões culturais, políticas e econômicas que, em permanente transformação, implicam em importantes mudanças, tanto sobre considerações intelectuais da sexualidade quanto sobre sua conduta na prática cotidiana. Com isso,

Sexo, sexualidade e gênero têm estado no centro de vastas mudanças culturais nos últimos cinqüenta anos – a mudança do papel social das mulheres; a maior consciência da sexualidade feminina; o surgimento de identidades sociais baseadas em preferências sexuais; o desenvolvimento de formas eficazes de contracepção; a crescente prevalência do sexo antes do casamento; a mudança nas concepções de casamento, divórcio e coabitação; bem como a inseminação artificial, o exercício solitário da função parental e as novas configurações da família. (GAGNON, 2006, p.15)

A incidência de outros modelos para as relações afetivo-sexuais além do casamento formal legal se propagaram, segundo Vaitsman (1994), a partir da década de 7037. Casais homossexuais ou heterossexuais, pessoas que vivem sós, mães solteiras, descasados de ambos o sexo. A possibilidade de resignificação dos papéis sociais correlacionados às condutas “privadas” permitiu, inclusive, concatenações de novas propostas identitárias.

Não obstante, no interior das Nações Unidas têm-se promovido um debate sobre direitos sexuais no âmbito dos Direitos Humanos, em que a sexualidade passa a ser reconhecida como uma característica universalizável e um aspecto fundamental da identidade do indivíduo para definir quem uma pessoa é. Oportunamente, desenvolvem-se programas como o Observatório de Sexualidade e Política (SPW), fundado em 2004 e englobando iniciativas de oito países dispostos a proporcionar discussões e constructos teóricos deste porte, em nível transnacional e transcultural. Reportando-nos ao livro eletrônico produzido pelo SPW em 2008, acolhemos a seguinte definição sobre direitos sexuais: “Os direitos sexuais incluem o direito de todas as pessoas de expressar sua orientação sexual, com o

devido respeito ao bem-estar e aos direitos dos demais, sem receio de coação, a negação da liberdade ou da interferência social”38 (HUNT apud PETCHESKY, 2008, p. 22).

De acordo com Matos (2000), as escolhas do âmbito afetivo-sexual compõem cenários morais e de cidadania, corroborando com a afirmação de Ann Gray (GRAY apud ESCOSTEGUY, 2001) de que são nas práticas rotineiras e íntimas da vida cotidiana que se intersectam e são vividos os discursos públicos e privados. Mais além, Gonçalves (2007) assinala que as normas de filiação e aliança próprias de cada sistema social acabam por delinear as políticas públicas que abarcam as condutas sociais, ao institucionalizar contextos para a intimidade, definir a atenção sobre reivindicações identitárias específicas e propor ordenamentos de status social39. O que implica constatar que os direitos sexuais estão,

inevitavelmente, enredados a prescrições econômicas, sociais, culturais e políticas, bem como suscetíveis a manobras de interesses destas esferas. Assim, erige-se a premissa de que as escolhas acerca da conjugalidade são práticas sociais e culturais que vão além do exercício da intimidade e experiência do outro.

Vale, contudo, assinalar a advertência de Cristina Bruschini e Sandra Unbehaum, na introdução do livro Gênero, democracia e sociedade brasileira publicado em 2002, de que as conquistas dos direitos nem sempre garantem seu acesso. Especialmente, às mulheres, diante das situações de extrema desigualdade social e de gênero a que são submetidas. A propósito desta questão, somos tentados a deslocar esta acepção para o âmbito da discussão sobre as supostas conquistas, em termos de autonomia e cidadania sexual40, relacionadas aos projetos de vida de mulheres solteiras na contemporaneidade.

Iluminados pela definição de direitos sexuais, que traz em seu bojo a questão da identidade e, subentendendo a sexualidade no plano do conceito de conduta sexual, constamos que o novo modelo de valoração cultural disposto na mídia com respeito as “novas solteiras” é abalado em sua legitimidade, apresentando entraves em seus propósitos. Primeiro, porque a escolha por determinado projeto de vida não é indicativo do exercício de autonomia das mulheres em questão; segundo, porque as cláusulas para o reconhecimento de “novas solteiras” impedem que se assegurem oportunidades iguais para todas as solteiras de se

38 Tradução de autoria própria. “Los derechos sexuales incluyen el derecho de todas las personas a expresar su

orientación sexual, con el debido respeto al bienestar y a los derechos de los demás, sin miedo a la persecución, a la negación de libertad o a la interferencia social.”

39 Termo utilizado no sentido empregado por Nancy Fraser (2007), referindo-se à posição relativa dos atores sociais na vida social.

40 Este conceito embute na noção de cidadania o entendimento de que esta seja um espaço de integração e reconhecimento de sujeitos-agentes, em exercício pleno de seus direitos sexuais. (PAIVA, 1999)

alcançar a mesma estima social. Ambas as proposições demonstram que o novo modelo de valoração cultural interpela os projetos de vida de mulheres solteiras nos múltiplos eixos de diferenciação social, tais como, condição de classe, etnicidade, idade e sexualidade.

No mais, a ênfase sobre o atual reconhecimento de uma suposta “nova solteira” torna incontestável que a condição conjugal continua exercendo forte discriminação, embora por outros vértices, na expressão identitária de referidas mulheres, devendo assim ser trabalhada como uma questão de política identitária. Assunto que trataremos logo em breve.

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 66-71)