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Entre desigualdades de base material e discrepâncias simbólicas

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 110-115)

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

4.2 Itinerários identitários e a economia dos projetos de vida

4.2.1 Entre desigualdades de base material e discrepâncias simbólicas

Como Venturi & Recamán (2004) sugerem, devemos indagar sobre o que reivindicam, a que interesses servem e quais as possíveis repercussões de certas políticas identitárias que envolvem contextos de conjugalidade. Lembra-nos Ciampa (2002, p. 133): “sempre é possível perguntar se movimentos que levam a novas identidades podem preservar o espaço político como arena de questionamento e tematização de questões individuais e coletivas, sem que esses movimentos também incrementem maior racionalização do poder e da dominação.”

Consideramos as reflexões críticas aventadas sobre o tema até então. Este conjunto converge numa mesma preocupação: a divulgação de um estilo de vida e a promoção de uma proposta identitária que pode promover um modo de vida individualista de caráter isolacionista, interessante às razões mercadológicas do Capitalismo Tardio. Esta questão exprime, acima de tudo, o quanto é importante levarmos em conta as circunstâncias políticas e socioeconômicas em que se produzem notícias sobre a “nova solteira”. Contexto este que pode orientar propostas identitárias e definir itinerários para projetos de vida.

Cabe aqui trazer a acepção de Michelle Perrot (1998) sobre a possível influência dos modelos ocidentais de acesso das mulheres a papéis novos nos “países em desenvolvimento”, após termos considerado as bases de pesquisa que alicerçam algumas das matérias de revistas analisadas: “(...) observa-se que esses modelos, difundidos pela mídia (principalmente as revistas, a televisão) exercem um real poder de atração, especialmente sobre as populações urbanas. Mas se trata mais de modelos de consumo do que de acesso a novos papéis públicos.” (PERROT, 1988, p. 153)

Verificar tais influências requer, ainda, como alerta Fraser (2007, p. 108), “examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre a posição

77 Há a possibilidade de haver uma brecha no currículo profissional, especificamente, no caso de mulheres que, dada as circunstâncias citadas, podem precisar suspender temporariamente suas atividades profissionais para ter um filho, por exemplo.

relativa dos atores sociais”. À luz dessa proposta crítica, conduzimos nossa análise levantando algumas considerações decorrentes da problematização do termo “nova solteira”, do seu potencial como uma nova personagem social e das noções que lhe são atribuídas no contexto social brasileiro.

Se a “nova solteira” é, exclusivamente, a mulher que vive só, independente e cosmopolita, há de se ponderar como o termo pode, generalizadamente, tornar-se emblemático de um estilo de vida potencialmente emancipatório. Cabe, neste ponto, reforçar o questionamento sobre a política identitária implícita à difusão do termo “nova solteira”: Como uma proposta política que sustenta a reivindicação de um suposto coletivo identitário, disporia elementos críticos para discutir conseqüentes desdobramentos de novas opressões78?

Mesmo se tal política identitária representar uma luta pelo reconhecimento de outros sentidos à pejorativa idéia que se fazia da “solteira”, não parece ser acessível para todas as mulheres que podem se considerar solteiras. Sem contar que as proposições valorativas que substanciam simbolicamente as noções sobre a “nova solteira” ainda buscam referenciar-se na normatividade da vida conjugal – leia-se, relação heterossexual monogâmica legalmente reconhecida –, não oferecendo nenhuma proposta de reflexão crítica com relação aos pressupostos tradicionais que sugerem os termos de contrato íntimo legitimado. Retomemos o alerta de Gonçalves:

As interpretações sobre as transformações no estatuto feminino e suas conseqüências em torno do casamento são ambivalentes. Ao mesmo tempo em que a emancipação é saudada como positiva, revolucionária, as mulheres são vitimizadas, vistas como reféns de um sistema de gênero desigual. Suas escolhas não são analisadas em consonância com sua agency ou sua capacidade de decidir em diferentes contextos. (GONÇALVES, 2007, p. 42)

Logo, recorremos ao sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação, proposto por Ciampa (2004) como um crivo de análise crítica. Acurando nosso olhar sobre esta “capacidade de decidir” da mulher, podemos considerar, por esta perspectiva, que se trata de um nível de autonomia para elaboração de personagens identitários e concretização de

78 Como exemplo, citamos dois artigos que trazem para a discussão problemáticas que tangenciam as correlações mulheres-trabalho-consumo, por diferentes contextos socioeconômicos e profissionais: SPINDOLA, T.; SANTOS, R. S. Mulher e trabalho: a história de vida de mães trabalhadoras de enfermagem. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 2003, vol.11, n.5, pp. 593-600. (on-line). TORRES, H. G.; BICHIR, R. M.; CARPIM, T. P. Uma pobreza diferente? Mudanças no padrão de consumo da população de baixa renda. Novos estudos – CEBRAP, 2006, n.74, pp. 17-22. (on-line)

projetos de vida. Interessará, particularmente, o sentido destas decisões dentro da história de vida de mulheres solteiras. Deixamos claro, deste modo, que as decisões de cunho autônomo que invocamos não representam uma oposição às heteronomias normativas, simplesmente, mas um ponto de articulação entre os desejos pessoais e as expectativas dos papéis sociais.

Os discursos midiáticos tendem a enfatizar que a desigualdade social e de gênero acerca do “ser mulher” pode ser superada simplesmente em termos de independência econômica. O alcance de posições de igualdade perante categorias sociais hierarquizadas, sem que se questione a estrutura social em que são construídas e reproduzidas, não são suficientes para alterar – quando não se põem a serviço de – relações de subordinação e opressão vividas no cotidiano.

Não tomamos as questões de desigualdade apenas dentro das relações de gênero, ou seja, a partir das diferenças sociais que se instauram entre homens e mulheres, mas olhamos para representações socioculturais que possam vir a propagar as “múltiplas formas com que a categoria „mulher‟ é construída como subordinação” (IZQUIERDO, 1994). Enfatizam-se, assim, as relações de dominação que se estabelecem por intermédio de “diferentes posições de sujeito”, personificadas na vida social. Com foco no processo, importa-nos as lógicas que concatenam relações de poder nos diversos contextos de socialização – vida social, familiar, conjugal, profissional. Olhamos, desta forma, para a elaboração de discursos que conduzem diferentes estereótipos sobre o “ser mulher solteira” e que são providos dentro de uma ordem valorativa referida ao acesso a bens materiais e simbólicos.

A produção de discursos sobre a personagem “nova solteira” também conferem às mulheres diferentes maneiras de se apropriar, ou não, das resultantes conquistas relacionadas ao maior nível educacional, acesso ao mercado de trabalho e a bens de consumo. Relembremos, a este propósito, uma nota de Canclini (1997, p. 42) a respeito da “imposição da concepção neoliberal de globalização, na qual os direitos são desiguais, [e] as novidades modernas aparecem para a maioria apenas como objetos de consumo e, para muitos, apenas como espetáculo”.

Com efeito, tal política identitária parece, já a priori, não se propor atender todas as mulheres solteiras ou, ainda, não oferecer perspectivas para que as mulheres que não correspondam a tais critérios possam se identificar com os novos padrões valorativos. Partindo de uma ética libertária, visam o reconhecimento da “nova solteira” em função de uma idéia de “vida boa” que é heterônoma e particularista. Neste percurso, erige-se um ideal

de “mulher solteira” muito pouco acessível para a maioria das mulheres solteiras da sociedade brasileira, diante da discrepante realidade em que vivem. É nosso encargo inquirir sobre as relações de desigualdade que, há muito, demarcam mulheres na sociedade pelo descritivo “solteira” e, principalmente, desigualdades que se elevam dentro do próprio coletivo de mulheres solteiras, resultando no destaque de “novas solteiras”.

Em nível simbólico, a questão funda-se como ideal de relação afetivo-sexual que aparece implícito, quando não é pauta, nas divulgações sobre o assunto; dado explorado por Gonçalves (2007) num sub-capítulo de sua tese, intitulado O fantasma da solidão feminina. O reconhecimento do que vem a ser uma mulher solteira passa, nestes casos, por uma verificação do que lhe falta, ou seja, uma união conjugal legitimamente reconhecida, heterossexual79 e monogâmica. Sob esta perspectiva, constatamos que a noção principal que permeia a “nova solteira” é a constituição de um projeto de vida sem vínculos estáveis, permanentes e/ou legais.

Daí, interpretamos que, grosso modo, os sentidos emancipatórios atribuídos heteronomamente aos projetos de vida de solteira são paradoxais. Porque, ao mesmo tempo em que é aventada à mulher solteira a possibilidade de libertar-se de possíveis opressões que este modelo de relação matrimonial pode instaurar, este mesmo referencial é o que permite caracterizá-la à luz de um projeto de vida estimado insatisfeito, tendo em vista o valor social que preenche o padrão conjugal citado. Não obstante, nos deparamos com uma política identitária, supostamente, de caráter libertário, mas que, ao carregar padrões valorativos arcaicos, se vê subsumida ao controle autoritário da tradição.

Para Ciampa (1997), uma utopia emancipatória emerge de metamorfoses da identidade que se engendram por uma “falta sentida ou de uma meta visada” (CIAMPA, 1997, p. 3). São estas as duas vias pelos quais os interesses instrumentais que envolvem a política identitária em questão intentam colonizar projetos de vida solteira. É em caráter de uma falta sentida que tal política promove o referente arcaico exposto acima, instaurando um dilema existencial para mulheres cujos projetos de vida profissional demandem prioridade, seja sobre uma futura relação conjugal ou na tentativa de conciliar este projeto com o

79 Mesmo a lei da União Estável não contempla a união de pessoas com orientações homoafetivas. O projeto de lei 122, que pauta sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, é previsto no decreto doTerceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado em dezembro de 2009 pelo presidente da Federação Luis Inácio Lula da Silva. Contudo, continua em trâmite, encontrando forte oposição dos parlamentares tanto do Senado Federal quanto da Câmara dos Deputados.

casamento ou a maternidade. Advém desta falta sentida o convite permanente para o retorno ao seu lugar de gênero esperado – o lar.

Também passam a ser manipuladas as metas visadas. A priorização de um projeto de vida profissional como uma meta visada conjectura-se, ou pela incompatibilidade com projetos de conjugalidade ou de maternidade, ou ainda, pelo esvaziamento do potencial inovador das relações conjugais.

Ambos os vértices de colonização podem promover uma insatisfação pessoal que implica em frustração dos desejos e projetos de futuro, contexto propício para sua sublimação em objetos de consumo, o que levaria a uma intensificação das relações de mercado80.

Das ambigüidades que observamos sobre a designação do termo “nova solteira”, insurgem desdobramentos que qualificam tal política identitária como de caráter excludente e discriminatória. Principalmente, porque são vagos os discursos sobre a extensão de suas proposições perante o coletivo de mulheres que poderiam ser contempladas por esta política de reconhecimento na sociedade brasileira contemporânea. Não há nada que indique – e talvez seja esta a principal razão de sua face excludente e discriminatória – que uma mulher negra, mãe solteira, que more numa cidade periférica a uma metrópole e que tenha um nível de escolaridade incompleto não expresse os sentidos emancipatórios conjecturados a uma “nova solteira”. Hipoteticamente, poderíamos constatar, em sua história de vida, que esta mulher se sustenta financeiramente e, até mesmo, seus progenitores. Que expresse, pelo seu itinerário de vida, autonomia em suas escolhas e um sentido de autodeterminação para consecução de sua proposta identitária. Esta seria uma expressão de um fragmento emancipatório, quando levamos em conta o contexto socioeconômico em que vive. Todavia, a utopia emancipatória em que se baseia é, imponderavelmente, atravessada por desigualdades de toda ordem – de classe, étnico-racial, de gênero –, delimitando, por exemplo, seus anseios por um cargo de chefia dentro de uma grande organização corporativa. É neste nível que a valoração social atua mais fortemente na conformação de itinerários e projetos de vida.

Questionamos, a princípio, a ênfase na característica do “ser solteira” para definição e caracterização simbólica de determinadas mulheres na contemporaneidade – quando

80 Autores como Christopher Lasch e Slavoj Zizek, por exemplo, dedicam alguns de seus trabalhos para tratar deste assunto. Ver: LASCH, C. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1987.; ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

poderíamos, por exemplo, ouvir falar sobre uma “nova mulher”81. Uma proeminente “casta

feminina” é, então, demarcada a partir das noções sobre a “nova solteira”. As interpretações predicativas que se elevam na mídia tendem a estabelecer nexos com as idéias de sucesso, autonomia e independência pleiteadas pelo movimento feminista. Não obstante, vale recolocar a afirmação de Benjamin (1994 [1934]), atentando para os interesses que subjazem aos conteúdos culturais disseminados: “(...) o aparelho burguês de produção e publicação pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que o controlam.” (BENJAMIN, 1994 [1934], p. 128).

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