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DE UM TOM APOCALÍPTICO ADOTADO HÁ POUCO EM LITERATURA COMPARADA

O EVENTO COMPARATISTA

DE UM TOM APOCALÍPTICO ADOTADO HÁ POUCO EM LITERATURA COMPARADA

Téléiopoièse Teleopoiesis

A certa altura do segundo capítulo de Politiques de l’amitié, Derrida, às voltas com a dimensão do talvez [vielleicht] no pensamento nietzschiano, detém-se numa passagem célebre de Jenseits von Gut und Böse [Além do bem e do mal] acerca de “Nossas virtudes” (§214), na qual Nietzsche conclama os “europeus de amanhã”, “primogênitos do século XX”, a desvencilharem-se dos apetrechos da “boa consciência”, da “crença na sua própria virtude” usados por seus avós, incluindo a si próprio entre os destinatários desse vocativo: “nós, os últimos europeus com boa consciência”. Nietzsche conclui, então, com a sentença que interessará mais de perto a Derrida: “– Ach! Wenne ihr wüßtet, wie es bald, so bald schon – anders kommt!” [Ah, se vocês soubessem o quão rapidamente, tão rapidamente – isso mudará!] (NIETZSCHE apud DERRIDA, 1994, p. 49). “Não sabemos ao certo o que vibra aqui”, observa Derrida a propósito, “mas percebemos, de relance, pelo menos uma figura da vibração. A previsão: ‘isso mudará’, ‘e rápido!’, discerne-se mal da prescrição: ‘que isso mude! e rápido!’. O talvez se aloja sempre, talvez para disjuntá-las, entre as duas modalidades [a previsão e a prescrição]” (Ibid., p. 49).

Tudo se passaria como se, em sua auto-referencialidade mesma, a sentença, a previsão/ prescrição nietzschiana, realizasse a si própria: “A aceleração da mudança ou da alteração de que fala a dita frase em suspenso (wie es bald, so bald schon – anders kommt) não é outra, na verdade, senão a rapidez mesma da frase”, explica Derrida (Ibid., p. 50). E ainda: “Uma sentença incompleta precipita sua conclusão à velocidade infinita de uma flecha. A frase fala

dela mesma, ela se arrebata [s’emporte], se precipita ou se precede, como se seu fim viesse

antes do fim. Teleodromia instantânea: a corrida está completada de antemão, e isso produz o porvir” (Ibid., p. 50). Ora, isso tudo se dá, só pode se dar por ocasião da leitura da frase, em função da vibração desse “traço de escrita” [trait d’écriture] que é a um só tempo previsão e prescrição de uma leitura, que “promete e apela para uma leitura, uma preponderância por vir da decisão interpretativa” (Ibid., p. 49). Isso posto:

Por economia – e para formalizar numa palavra essa economia absoluta da finta, essa geração por enxerto conjunto e simultâneo, sem corpo próprio, do performativo e do constatativo –, chamemos teleiopoético [téléiopoétique] o evento de tais frases [...]. Teleiopoiôs qualifica, num grande número de contextos e de ordens semânticas, aquilo que torna absoluto, perfeito, completado, terminado, cumprido, finalizado, aquilo que faz vir a termo. Mas que nos permitam jogar também com o outro tele [télé] – aquele que diz a distância e o longínquo, pois é bem de uma poética da distância à distância que aqui se trata, e de uma aceleração absoluta no

atravessamento do espaço pela estrutura mesma da frase (ela começa pelo fim, inicia-se com a assinatura do outro). Tornar, fazer, transformar, produzir, criar, eis o que conta; mas como isso não advém senão na auto-tele-afecção da dita frase, à medida que ela implica ou engole seu leitor, dever-se-ia, para ser completo, justamente falar em auto-teleiopoética [auto-téléiopoétique] (Ibid., p. 50-51).

Num texto publicado em livro em 2000, no mesmo ano, pois, em que profere as três conferências que mais tarde constituirão Death of a discipline, Spivak volta-se para o trecho citado de Politiques de l’amitié no intuito de delinear o que chama de “estudos culturais desconstrutivos” (o artigo em questão chama-se justamente “Deconstruction and Cultural Studies: arguments for a Deconstructive Cultural Studies” [Desconstrução e Estudos Culturais: argumentos para estudos culturais desconstrutivos]). “Introduzido em Políticas da

amizade de Derrida, é o pensamento da teleopoesis – ‘geração por enxerto conjunto e

simultâneo, sem corpo próprio, do performativo e do constativo’”, explica Spivak (2000, p. 19) a propósito, e acrescenta: “O exemplo de Derrida aqui é Nietzsche, que inverte o alegado comentário de Aristóteles ‘Ó meus amigos, não há nenhum amigo’ para ‘Ó meus inimigos, não há nenhum inimigo’”. Observe-se que Spivak não se detém nem se aprofunda na engenhosa análise derridiana da sentença final de Nietzsche na passagem de Jenseits von Gut

und Böse – da qual, não obstante, secciona a definição de “teleopoesis” por ela citada:

“geração por enxerto...” – , remetendo, ao invés, e sem maiores explicações, a um trecho anterior de Politiques de l’amitié, no qual Derrida ocupa-se de uma passagem de

Menschliches Allzumenschliches [Humano, demasiado humano] acerca dos “Amigos” (§376),

em que Nietzsche fala da possibilidade [vielleicht, talvez] de um dia no qual se dirá: “‘Freunde, es gibt keine Freunde!’ so rief der sterbende Weise; ‘Feinde, es gibt keinen Feind!’ ruf ich, der lebende Tor” [“Amigos, não há nenhum amigo”, gritava o sábio moribundo; “Inimigos, não há nenhum inimigo”, grito eu, o louco vivente] (NIETZSCHE apud DERRIDA, 1994, p. 45).

A cadeia de citações, ao longo dos séculos, da célebre frase “Ó meus amigos, não há nenhum amigo” tradicionalmente atribuída a Aristóteles “desdobra a herança de um imenso rumor através de toda a literatura filosófica do Ocidente”, lembra Derrida (Ibid., p. 44): “de Aristóteles a Kant, depois a Blanchot, mas também de Montaigne a Nietzsche, quem pela

primeira vez, ao que parece, a parodia de maneira inversora [de façon renversante]. A fim de

lhe perturbar, justamente, de um solavanco [soulèvement], a segurança” (Ibid., p. 44). Mais à frente:

Há, ali, com efeito, como que um solavanco, e gostaríamos de perceber-lhe as ondas sísmicas, de certo modo, a figura geológica de uma revolução política mais discreta mas não menos perturbadora do que as revoluções identificadas sob esse nome, uma revolução, talvez, do político. Uma revolução sísmica no conceito político da

amizade que herdamos. Tentemos perceber a sabedoria ancestral desse apelo a partir desse lugar de inversão [ce lieu de renversement]. O que nele é inversor [renversant] e o que é por ele invertido [renversé]? Eis aqui, pela primeira vez, alguém, um outro testemunho, ele avança para contestar (Ibid., p. 44-45).

É justamente esse caráter contestatório ou propriamente inversor da leitura nietzscheana do comentário (alegadamente) aristotélico aquilo que definitivamente seduzirá Spivak nisso tudo, mas que ela estranhamente associa ao termo teleopoesis – que é como transpõe para o inglês, nesse primeiro momento, a téléiopoièse derridiana. “Ele [Nietzsche] ao mesmo tempo

enuncia (ou cita) o comentário original”, explica Spivak (2000, p. 19) a propósito, “[mas]

também, é claro, o performa em sua inversão [reversal]. Fazer imaginativo à distância –

teleopoesis”. Eis, já aí, claramente enunciados os traços constitutivos da noção central da

“nova LC” em Death of a discipline, a de teleopoiesis (sim, no livro de 2003, Spivak alterará a grafia da palavra), imperturbavelmente atribuída a Derrida21: (i) o caráter citacional, por assim dizer, da “teleopoiesis” – ou, nas palavras da própria Spivak em Death of a discipline: “copiar e colar para editar, teleopoiesis” (Ibid., p. 34); (ii) o caráter de inversão à distância da “teleopoiesis” – ou, nas palavras da própria Spivak em Death of a discipline: “afetar o distante numa poiesis – um fazer imaginativo – sem garantias, e, dessa forma, por predicação definitiva, inverter seu valor [reverse its value]” (Ibid., p. 31).

No volume de Comparative Literature – o periódico oficial da ACLA (American Comparative Literature Association) – inteiramente constituído por respostas a Death of a

discipline publicado em 2005 (no mesmo ano, pois, da publicação do texto de Schmidt na Revista Brasileira de Literatura Comparada), dois textos se detiveram especificamente na

questão da “teleopoiesis” em Spivak. Lembrando que diversas vezes ao longo de seu livro Spivak emprega termos como “cortar”, “copiar” ou “colar”, Eric Hayot observa que identificar “teleopoiesis” com “copiar-e-colar”, como faz a autora, “parece, contudo, copiar e colar muito rapidamente”, isso porque “teleopoiesis soa muito mais sofisticado do que copiar e colar”; alguma coisa aí teria se perdido, alerta Hayot (2005a, p. 220), “alguma coisa que requer um retorno a Derrida”. E então, a constatação daquilo que havia sido escamoteado na leitura spivakiana de Politiques de l’amitié: “Derrida descobre ou inventa teleopoiesis em reação a uma sentença de Nietzsche [– Ach! Wenne ihr wüßtet, wie es bald, so bald schon – anders kommt!]” (Ibid., p. 220). Hayot recupera, então, a explanação de Derrida acerca da dupla acepção do “tele” em téléiopoièse – aquilo “que torna absoluto, perfeito, completado, terminado, cumprido, finalizado” e aquilo “que diz a distância e o longínquo” –, e conclui,

21

“Derrida traz a rica noção de teleopoiesis [...] à cena muitas vezes em seu livro” (SPIVAK, 2003, p. 31); “[...] e eu sou grata a Jacques Derrida pela palavra [teleopoiesis], a qual nos permite suspeitar que toda poiesis pode ser uma espécie de teleopoiesis [...]” (Ibid., p. 34).

então, ser a téléiopoièse “não exatamente copiar e colar”: “Uma sentença que cola seu fim em seu começo, que precede a si mesma trazendo a si para um fim em seu começo, e, fazendo-o, preenche o espaço que distancia sua abertura de seu fechamento” (Ibid., p. 220).

Também Corinne Scheiner em sua contribuição ao volume recupera a análise e a explanação derridianas em Politiques de l’amitié, e evoca a imagem do uroboro (o conhecido símbolo da serpente que morde a própria cauda) para definir o caráter “teleiopoiético” da sentença de Nietzsche segundo Derrida: “o movimento da declaração parece aquele de um uroboro em seu voltar-se sobre si mesmo. Porém, diferentemente de um uroboro, o começo não subsume o fim: a serpente não devora sua própria cauda. Antes, a cauda dá à luz a própria serpente: o fim dá origem ao todo” (SCHEINER, 2005, p. 239). Focando, a certa altura, o modo como Spivak transpõe téléiopoièse para o inglês: teleopoiesis, Scheiner chama a atenção para a diferença, a partir do grego, entre poiesis – “produção criativa, especialmente de uma obra de arte” – e poesis – “palavra grega e latina para poesia” –, e observa que “a mais flexível poiesis é essencial tanto para a téléiopoièse de Derrida quanto para a

teleopoiesis de Spivak, pois poeisis – ‘um fazer imaginativo’ (Spivak) – inclui não apenas

poesia – poesis – mas também a leitura como um ato criativo, produtivo” (Ibid., p. 243). Isso posto, e se poderia considerar a grafia da palavra por Spivak em seu artigo de 2000 –

teleopoesis – um equívoco ou um deslize ortográfico devidamente corrigido pela autora em Death of a discipline. Mais complicada, contudo, é a situação daquilo que se mantém do

artigo (2000) ao livro (2003): o radical teleo, discrepante do “teleio” na téléiopoièse de Derrida: “Téléiopoièse referencia o radical adjetivo teleio derivando do adjetivo teleios (completo), e logo traduz o tornar as coisas completas. Entretanto, teleopoiesis é mais ambíguo: ele pode referir-se ou a teleios ou ao substantivo telos (fim ou conclusão), e pode traduzir, então, a fabricação de fins” (Ibid., p. 243). De acordo com Scheiner, em suma, “em contraste com a téléiopoièse de Derrida, a teleopoiesis de Spivak pode de fato performar sua própria inversão teleiopoética [its own teleiopoetic reversal], enfatizando o objeto ou produto, não o processo” (Ibid., p. 243).

Na entrevista que concedeu a Eric Hayot comentando as respostas a seu livro, e que figura ao modo de apêndice ao referido volume de Comparative Literature, Spivak esclarece, em tom de discordância em relação a Scheiner, estar “muito mais interessada na questão da distância [in the distance thing] do que na questão do trazer à conclusão [in the bringing to

completion thing]”; e mais: “Eu realmente não sei o que o perfectionnement, o trazer à

HAYOT, 2005b, p. 266). Na conclusão a um livro introdutório ao pensamento de Spivak, Stephen Morton resume a questão da seguinte maneira:

Porém, o uso por Spivak do radical “teleo” não intenciona conotar “a fabricação de fins” ou o trazer à conclusão (como Scheiner sugere). Antes, como Spivak explica numa entrevista com Eric Hayot como uma resposta ao artigo de Scheiner, o uso que ela faz está mais interessado na conotação de distância da palavra “tele”. Essa conotação é claramente consistente com a afirmação de Derrida em Políticas da

amizade de que “o outro tele” [...] é “aquele que diz a distância e o longínquo”. Ao

invés de traduzir a téléiopoièse de Derrida como uma forma de teleologia, ou um programa dirigido para um ponto particular de conclusão final ou uma meta, a

teleopoiesis de Spivak combina, então, a abertura e a indeterminação que “o outro

tele” conota com o senso de “leitura como um ato criativo, produtivo” implícito na palavra poiesis (MORTON, 2007, p. 166-167).

O problema é que essa dimensão “teleológica” relegada por Spivak, essa dimensão que ela se confessa, mesmo, incapaz de conceber ou pensar (“eu realmente não sei como pensar isso”), é nada menos do que central para a téléiopoièse derridiana – “Teleiopoiôs: aquilo que

torna absoluto, perfeito, completado, terminado, cumprido, finalizado, aquilo que faz vir a

termo”. O caráter inequivocamente teleológico da téléiopoièse é justamente o que impede que se a confunda com a teleopoiesis spivakiana em sua dimensão inequivocamente inversora, em seu caráter de inversão à distância – nesse aspecto as duas se revelam, bem entendido,

opostas uma à outra.

Morton afirma que Spivak se nega a traduzir a téléiopoièse de Derrida num determinado sentido – dir-se-ia o mais evidente –, traduzindo-a em outro, “combinando” criativamente elementos numa perspectiva, na verdade, muito diversa daquela colocada em jogo por Derrida em sua análise da sentença de Nietzsche.22 Ora, a questão é que as coisas se passam, em

Death of a discipline, sob o signo não de uma tradução de Derrida, muito menos de uma

tradução criativa (ou qualquer coisa que o valha) de Derrida, e sim do mero empréstimo terminológico-conceitual, pelo qual Spivak faz questão de agradecer ao autor de Politiques de

l’amitié, sob o signo, pois, de um copiar-e-colar nem um pouco trangressor ou “inversor”,

como se Spivak se limitasse, então, a citar Derrida – o “próprio” Derrida, Derrida “ele próprio” (tal como, aliás, no caso da leitura spivakiana de Spectres de Marx em “Ghostwriting”).

Para além do que obviamente se poderia aventar, a esse respeito, em termos éticos, isto é, de uma ética da leitura (e é justamente numa discussão ética que se engaja Derrida em sua severa reprovação à leitura spivakiana de Spectres), observe-se que uma tal negligência em relação à dimensão tradutória do teorizar (mesmo ou sobretudo quando se pretende tomar de

22 Scheiner (2005, p. 243) fala de um “deslizamento de linguagem” [a slippage of language] na passagem da

empréstimo um termo ou conceito de um autor de língua estrangeira) afigura-se tanto mais grave no caso de alguém que professa deliberadamente um credo como: “seja lá o que você estiver ensinando [...], aquilo de que você quer que eles [os alunos] se deem conta é o problema da tradução”; ou: “penso que estudantes de Literatura Comparada deveriam aprender a traduzir, não apenas a ler originais” (SPIVAK apud HAYOT, 2005b, p. 260).

Spivak (2000, p. 22) observa que nos EUA “a desconstrução encontrou um lar antes na ‘Literatura Comparada’ do que na ‘Filosofia’”, e sentencia que “o imperativo de reimaginar a Literatura Comparada é também um imperativo de reimaginar a desconstrução”. Posto o mesmo ter acontecido no Brasil, alguém que aqui se dispusesse seriamente a “reimaginar” a LC com/a partir de Spivak (como Schmidt) não poderia se limitar, evidentemente, por tudo o que foi dito, a copiar-e-colar, em português, Spivak copiando-e-colando Derrida.

O fato é que a “reimaginação” da LC nos termos de Spivak (em nome “da” desconstrução) pareceria antes desencorajada do que incentivada pela reflexão certa vez levada a cabo pelo próprio Derrida acerca do comparatismo literário. Em vista dessa reflexão, pareceria haver, na verdade, ainda mais a desconstruir, a ex-apropriar no programa comparatista spivakiano do que a pretensa apropriação por Spivak da téléiopoièse derridiana.

Derrida sobre a fundação/legitimidade da Literatura Comparada

Ao longo de 1979-80, Derrida proferiu na Yale University uma série de seis palestras intitulada Le concept de littérature comparée et les problèmes théoriques de la traduction [O conceito de literatura comparada e os problemas teóricos da tradução]; os documentos com o texto original das palestras encontram-se arquivados no Jacques Derrida Archive (University of California–Irvine), e uma tradução parcial da série para o inglês foi publicada em 2008 sob o título de “Who or what is compared? The concept of comparative literature and the theoretical problems of translation” (DERRIDA, 2008).

Aludindo ao título da série de palestras, Derrida (Ibid., p. 23) logo esclarece não ter a intenção de “começar com uma tabula rasa e estabelecer a base de uma nova fundação, uma outra legitimidade”; e ainda: “Sobretudo, não intenciono inaugurar, ou criticar, ou dar início”. Mais à frente, Derrida enfatiza não ter, definitivamente, a intenção de “construir os planos para uma literatura comparada por vir [a comparative literature to come]” (Ibid., p. 26); o que não implicaria proibir-se “de colocar questões sobre as condições históricas e estruturais do que é chamado ‘literatura comparada’”.

Isso, basicamente, é o que ocupa Derrida na ocasião; “a instituição da literatura comparada”, ele pondera a propósito, “tem uma história, uma recente e relativamente curta história em suma, uma história e uma geografia, um processo jurídico ou legitimador, uma política, um conjunto de condições que articula essa história com aquelas de todas as outras disciplinas” (Ibid., p. 27). Daí, as perguntas: “Como deveríamos decifrar essa história? Como deveríamos definir sua especificidade. De acordo com que procedimentos e com quais hipóteses deveríamos interrogar a instituição universitária que suporta o nome ‘literatura comparada’ no mundo, primeiro na Europa e, então, para além da Europa?” (Ibid., p. 28).

Na verdade, Derrida já havia delimitado uma hipótese de trabalho a funcionar como guia para sua investigação quando, logo nas primeiras linhas, ponderava:

Existir, para uma instituição, é afirmar seu direito à existência; é referir-se constantemente, mais ou menos virtualmente, a uma legitimidade, mas a um certo tipo de legitimidade particular, uma legitimidade histórica, um direito que tem sua origem num ato histórico ou em atos históricos de fundação (Ibid., p. 22).

Indagando-se, pois, pelo “direito à existência”, pela “legitimidade histórica”, pelo “ato histórico de fundação” da LC, Derrida volta-se, então, para um artigo de síntese publicado em 1977 sob a forma de verbete – “Littérature Comparée” – da Encyclopaedia Universalis, escrito por René Etiemble, autor que, à época, podia “ser visto no meio da literatura comparada francesa como uma de suas cabeças pensantes” (Ibid., p. 31). Logo na primeira definição que oferece do artigo em questão, Derrida deixa claro aquilo que intenta nele explorar em vista de sua própria hipótese de investigação: tratar-se-ia de um artigo de enciclopédia que é, ele mesmo, “um artigo enciclopedista”, à medida que descreve a “vocação ou destinação essencial” da LC como uma “destinação enciclopédica ou enciclopedística” (Ibid., p. 30). Etiemble “está encantado com isso”, e não vê aí maiores problemas – observa Derrida –, sendo que todas as questões que ele próprio aventa a respeito “concernem às modalidades da implementação dessa enciclopédia e não à essência ou à estrutura do projeto” (Ibid., p. 30-31). “Se fôssemos seguir a imperturbável lógica desse artigo e de seu projeto declarado”, conclui Derrida, “o mundo inteiro se tornaria um imenso departamento de literatura comparada administrado pela Associação Internacional de Literatura Comparada” (Ibid., p. 31).

Tendo citado um longo trecho do referido artigo no qual o profissional comparatista é definido como “um especialista do geral”, Derrida lembra que esse “é um título tradicionalmente reservado aos filósofos”, o que configuraria um inequívoco sinal de que o objetivo de Etiemble é, na verdade, “restaurar ou manter, para o melhor e o pior, esse projeto, ao mesmo tempo fundacional (as figuras do fundar e da fundação aparecem no texto) e

enciclopédico que caracteriza a ambição filosófica pelo conhecimento absoluto” (Ibid., p. 33); e ainda: “o espírito do projeto filosófico-enciclopédico está obviamente em sintonia com os grandes sistemas especulativos do século XIX no modelo hegeliano” (Ibid., p. 33). Nesse ponto, Derrida esclarece não ter escolhido o manifesto enciclopédico de Etiemble “a fim de desqualificá-lo ou ridicularizá-lo”, e sim por acreditar que “ele expressa diretamente e sem desvios o contorno geral do espírito que governa, que necessariamente governa a fundação originária, a própria constituição de todo departamento de ‘literatura comparada’” (Ibid., p. 33).

Tendo avançado em sua leitura cerrada do texto de 1977 e, mesmo, incursionado por outros textos do autor, Derrida aparenta recuar em relação ao ímpeto generalizador de suas conclusões iniciais sobre o comparatismo a partir de Etiemble, remetendo, então, mais modestamente, a certa situação ou conjuntura específica na história do comparatismo ocidental – o interesse pelo “caso Etiemble” justificando-se “porque esse caso e o discurso que flutua sob esse nome calham de estar na interseção sintomática de toda uma rede histórico-teórica a qual me parece necessário situar” (Ibid., p. 44-45). Derrida elege, então, como ponto de referência para “essa situação da literatura comparada” por ele aludida, o ano de 1958: ano em que morre Jean-Marie Carré, à época ocupante da cátedra de “literaturas comparadas” da Sorbonne, e é eleito para seu lugar o próprio Etiemble, à época chamado o “enfant terrible” e o “rebelde” da literatura comparada; mas também o ano da realização do famoso congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada em Chapel Hill (Carolina do Norte), “cujo nome ressoa como o nome de um campo de batalha”, lembra Derrida (Ibid., p. 45-46), “e onde, depois do não menos famoso relatório de René Wellek, batalhas campais estouraram a propósito do que foi chamado naquele tempo de Crisis of

Comparative Literature, Krise der Komparatistik, Crise de la littérature comparée” (Ibid., p.

46).

Derrida observa que, ao longo do referido congresso, teve lugar uma confrontação entre “uma tendência mais historicista e factualista, representada pela França e pela URSS” e “uma