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“THE GREAT NEED OF LITERARY SCHOLARSHIP TODAY”

NA HISTÓRIA DA CRÍTICA

“THE GREAT NEED OF LITERARY SCHOLARSHIP TODAY”

O livro certo na hora certa

Com a edição brasileira de Theory of literature (1949) de René Wellek e Austin Warren em mãos – intitulada Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários –, é difícil deixar de pensar naquela passagem, logo no início de Le démon de la théorie [O demônio da teoria] (1998), em que Antoine Compagnon, a fim de atestar a desatualização dos estudos literários franceses durante o período que antecede “a explosão dos anos sessenta e setenta”, observa:

O manual de René Wellek e Austin Warren, Theory of literature, publicado nos Estados Unidos em 1949, encontrava-se disponível, no fim dos anos sessenta, em espanhol, japonês, italiano, alemão, coreano, português, dinamarquês, servo-croata, grego moderno, sueco, hebreu, romeno, finlandês e gujarati, mas não em francês, idioma no qual ele não veio à luz senão em 1971, sob o título Théorie littéraire, um dos primeiros da coleção “Poétique” nas Éditions du Seuil, e jamais passou para a coleção de bolso. Em 1960, pouco antes de morrer, Spitzer explicava esse atraso e esse isolamento franceses por três fatores: um velho sentimento de superioridade ligado a uma tradição literária e intelectual contínua e eminente; o espírito geral dos estudos literários, sempre marcado pelo positivismo científico do século XIX à procura das causas; a predominância da prática escolar da explicação de texto, isto é, de uma descrição ancilar das formas literárias, impedindo o desenvolvimento de métodos formais mais sofisticados (COMPAGNON, 1998, p. 9-10).

Se se afigura constrangedora, para um acadêmico literário francês, a constatação dos vinte e dois anos que separam a publicação da Theory de Wellek e Warren nos EUA e o aparecimento da edição francesa do manual, como haverá de se sentir, por sua vez, o acadêmico literário brasileiro diante do fato de que o mesmo livro só veio a ser editado no Brasil em 2003, isto é, cinquenta e quatro anos depois da publicação original? Para piorar, o conjunto de fatores arrolados por Leo Spitzer em relação à França não poderia ser alegado como justificativa para o escandaloso atraso brasileiro nesse caso, a não ser, é claro – o que agravaria ainda mais as coisas –, a título de uma influência de longa duração da velha doutrina literária francesa sobre os estudos literários no Brasil. Poder-se-ia contra-argumentar, é certo, que o estudioso brasileiro já dispunha, desde 1962, da edição portuguesa do referido

manual,28 a qual veio a se tornar obra de referência obrigatória nos programas lusófonos de introdução teórica aos estudos literários; que essa antiga edição portuguesa – ou uma de suas reedições – continuasse a ser, contudo, a referência canônica do livro de Wellek e Warren para o recém-ingresso no curso de Letras, no Brasil, à época das considerações de Compagnon em Le démon de la théorie, isto é, no fim da década de 1990 (esse, aliás, meu próprio caso), poderia ser encarado, talvez, como um sinal de negligência, se não de indigência bibliográfica dos estudos literários entre nós.

Mas por que, afinal, o não contar com uma edição local da Theory equivaleria a um atestado inequívoco de “atraso” e “isolamento” nos estudos literários? A impressionante lista das línguas para as quais o livro já havia sido vertido até o fim dos anos 1960, à qual viriam se acrescentar, na década seguinte, além do francês, o norueguês, o polonês, o húngaro, o holandês, o árabe, o hindi, o russo e o chinês (esta última com duas traduções diferentes), além, é claro, das inúmeras reimpressões americanas que o mantêm em catálogo até hoje, atestam a difusão, a influência e a perenidade sem paralelo alcançadas pelo manual de Wellek e Warren, então convertido em baliza epistemológica e metodológica de todo um campo acadêmico: nas palavras de Jonathan Culler, ele próprio futuro autor de uma influente

Literary Theory (1997), o “tom judicioso” e a “vasta erudição” de Theory of literature

“fizeram dele o guia oficial para princípios de crítica” (CULLER, 1988, p. 12). O livro logrou mesmo associar, internacionalmente, o termo “teoria da literatura” à investigação e determinação dos “princípios de crítica”, instituindo, assim, no universo das Letras, a disciplina que leva o nome do célebre manual como um domínio eminentemente metacrítico: a teoria da literatura apresenta-se, aí, como “a crítica da crítica ou a metacrítica”, observa, com efeito, Compagnon (1998, p. 23), remetendo justamente à Theory de Wellek e Warren.

Ora, essa instituição foi tão mais eficiente e definitiva quanto se viu atrelada, desde o início, pelos próprios autores da Theory, a uma incontornável necessidade: “A crítica literária e a história literária tentam, ambas, caracterizar a individualidade de uma obra, de um autor, de um período ou de uma literatura nacional”, ponderam, com efeito, no primeiro capítulo do livro, e sentenciam: “Mas essa caracterização pode ser realizada somente em termos universais, com base numa teoria literária. A teoria literária, um órganon de métodos, é a grande necessidade do estudo literário hoje [the great need of literary scholarship today]” (WELLEK; WARREN, 1984, p. 19). Dados a difusão e o prestígio ímpares alcançados pela

Theory no campo literário internacional, dir-se-ia que essa necessidade a que se referem

28 WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Trad. de José Palla e Carmo. Lisboa: Europa-

Wellek e Warren – e que eles presumiam suprir com seu manual – era, então, de fato sentida como tal por uma parcela significativa da comunidade acadêmica ao redor do globo.

A Theory of literature como resposta

Ao que tudo indica, o êxito editorial e acadêmico da Theory se deveu ao fato de ela ter conseguido se impor como uma resposta satisfatória a determinada demanda ou questão no coração dos estudos literários – algo que se poderia traduzir nos termos da célebre lógica gadameriana da pergunta e da resposta.

“Die Logik von Frage und Antwort” [A lógica da pergunta e da resposta] é o nome da última seção da segunda parte de Wahrheit und Methode [Verdade e método] (1960), na qual Hans-Georg Gadamer, comentando criticamente e extrapolando a ideia de uma “logic of question and answer” desenvolvida por R. G. Collingwood, procura mostrar, em suma, que “a lógica das ciências do espírito [Geisteswissenschaften] é uma lógica da pergunta [eine Logik

der Frage]” (GADAMER, 1999, p. 375).

Gadamer observa que um procedimento habitual no sistema universitário inglês da época de Collingwood, a discussão de “statements”, isto é, de declarações descontextualizadas tomadas em seu conteúdo lógico intrínseco, “obviamente ignora a historicidade contida em toda compreensão” (Ibid., p. 376), e lembra a argumentação de Collingwood nesse sentido: “na verdade, só se pode compreender um texto quando se compreendeu a pergunta para a qual ele é a resposta” (Ibid., p. 376). Mas a desejada “reconstrução da pergunta para a qual um determinado texto é uma resposta”, alerta Gadamer, não pode ser tomada “como mera realização da metodologia histórica” (Ibid., p. 379). A pergunta “só pode ser obtida a partir do texto” (Ibid., p. 376), o que implica um trabalho de interpretação ativa por parte do leitor, que não poderia, nunca, limitar-se a simples reconstituidor de perguntas: ultrapassar a “mera reconstrução” [die bloße Rekonstruktion] impõe-se, dessa forma, como uma “necessidade hermenêutica” (Ibid., p. 380).

Os conceitos de um passado histórico assim resgatados conteriam, na verdade, nossa própria compreensão dos mesmos (Ibid., p. 380), o compreendido e o compreender permanecendo, dessa forma, indissociáveis. Assim, se se pode dizer, com Collingwood, que só compreendemos quando compreendemos a pergunta para a qual algo é resposta, faz-se preciso acrescentar que “a reconstrução da pergunta para a qual o sentido de um texto é compreendido como uma resposta passa para [geht über] o nosso próprio perguntar”, e isso porque “o texto deve ser compreendido como resposta para uma pergunta real [ein wirkliches

Fragen]” (Ibid., p. 380). Em suma, não basta o leitor querer reconstituir objetivamente a

pergunta para a qual o texto de que se ocupa é resposta, mas ele deve fazer dela sua própria

pergunta: “Compreender uma pergunta significa perguntá-la” (Ibid., p. 381).

Mas esse perguntar, é preciso admitir, não se dá naturalmente, sobretudo no caso de um livro como a Theory, há tempos convertido em “obra clássica” dos estudos literários – “a classic of criticism”, lê-se, com efeito, na quarta capa da edição americana corrente, “um estudo clássico”, lê-se na orelha da edição brasileira de 2003 –, tendo sua imagem cristalizada pela memória acadêmica em torno de uma problemática crítica para cuja fixação definitiva teria concorrido: nas palavras de Culler (1988, p. 12), a Theory “lançou mão de amplo conhecimento da história da crítica e de obras estrangeiras sobre teoria literária na construção de uma distinção central entre ‘a abordagem extrínseca do estudo da literatura’ (biográfica, histórica, sociológica, psicológica) e o ‘estudo intrínseco da literatura’, interessado pela estrutura do artefato verbal”. A classicidade, por assim dizer, da Theory, estaria associada, pois, em síntese, à fixação do problema epistemológico em torno da oposição “intrínseco vs. extrínseco” em crítica literária.

“O conceito de problema evidentemente formula uma abstração”, alerta, a propósito, Gadamer (1999, p. 381-382), “a saber, a separação [Ablösung] entre o conteúdo da pergunta e a pergunta que em primeiro lugar o manifesta [der ihn allererst aufschließenden Frage]”; e ainda: “Um tal ‘problema’ caiu para fora [ist herausgefallen] do contexto motivado da pergunta, do qual ele recebe a clareza [Eindeutigkeit] de seu sentido” (Ibid., p. 382). Seria preciso, pois, recontextualizar o problema associado à imagem corrente da Theory, reinserindo-lhe, por meio, dir-se-ia, de uma contraleitura, no horizonte-de-pergunta no qual ele se instaura como verdadeira questão. Para falar, ainda, com Gadamer: “A reflexão sobre a experiência hermenêutica reconverte [verwandelt zurück] os problemas em perguntas que se erigem e obtêm seu sentido de sua motivação” (Ibid., p. 382-383).

A Theory of literature como resposta kantiana

Eis o grande problema a ser solucionado pela Theory tal como formulado logo no início do livro por Wellek e Warren (1984, p. 16): “O problema é o de como, intelectualmente, lidar com a arte, e com a arte literária especificamente. Isso pode ser feito? E como isso pode ser feito?” Ele avulta, bem entendido, em vista de certo imperativo enunciado de antemão pelos autores: o da cientificidade ou racionalidade do estudo da literatura. Sim, pois se a atividade literária em si mesma “é criadora, uma arte”, ponderam os autores, o estudo literário, por sua

vez, “se não precisamente uma ciência, é uma espécie de conhecimento ou de saber” (Ibid., p. 15); o estudante “deve traduzir sua experiência de literatura em termos intelectuais, assimilá- la a um esquema coerente que deve ser racional para ser conhecimento” (Ibid., p. 15).

Parece certo que esse imperativo de racionalidade e o problema de como, afinal, satisfazê-lo eram mesmo sentidos como tais, mais ou menos por toda parte, à época do surgimento da Theory, impondo-se, na verdade, ainda hoje, ao discurso sobre a literatura, cuja legitimação acadêmica e social depende de sua capacidade de efetivamente apresentar-se, segundo os padrões vigentes, como um discurso de conhecimento.29 Mas desde quando e por

que, afinal, poder-se-ia indagar, a demanda por racionalidade no estudo literário impõe-se

como um imperativo, acarretando o problema de “como lidar intelectualmente com a arte literária”? A julgar pelo modo como Wellek e Warren enunciam as coisas no nível propedêutico da Theory, responder-se-ia que isso se dá desde sempre e naturalmente. É, antes, no nível da própria resposta que buscam oferecer ao “problema” formulado de início que se deixa entrever o contexto motivado à luz do qual o mesmo reconverte-se em pergunta viva, restituída de sua historicidade.

A esse respeito, as coisas avançam, na Theory, no seguinte sentido: (a) “Como contemplamos uma base racional para o estudo da literatura, devemos concluir a possibilidade de um estudo sistemático e integrado da literatura” (Ibid., p. 38); (b) “O ponto de partida natural e sensato para o trabalho em investigação literária [literary scholarship] é a interpretação e a análise das obras de literatura elas mesmas [the works of literature

themselves]” (Ibid., p. 139). Mas o que é, afinal, uma obra de literatura “ela mesma”? O

décimo segundo capítulo da Theory, intitulado “The mode of existence of a literary work of art” [O modo de existência de uma obra de arte literária], dedica-se, justamente, a responder esta “extremamente difícil questão epistemológica”: a “do ‘modo de existência’ ou ‘situação ontológica’ de uma obra de arte literária”, sendo que uma resposta correta nesse sentido, ponderam os autores, “deve solucionar muitos problemas críticos e abrir um caminho para a análise apropriada de uma obra de literatura” (Ibid., p. 142).

29 No hoje clássico manual de metodologia Como se fa uma tesi di laurea (1977) – no Brasil: Como se faz uma

tese, permanentemente em catálogo desde sua primeira edição em 1983, tendo alcançado sua 23ª edição em 2010

–, Umberto Eco afirma, com efeito: “Portanto, ao falar do estilo dos futuristas, evite escrever como um deles. Esta é uma recomendação importante, pois hoje em dia muita gente se mete a fazer teses ‘de ruptura’, onde não se respeitam as regras do discurso crítico. [...] De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, os poetas de vanguarda, quando queriam falar de sua poesia, faziam-no em prosa e com clareza. [...] Não diga que a violência poética ‘brota de dentro’ de você e que se sente incapaz de submeter-se às exigências da simples e banal metalinguagem da crítica. É poeta? Não se forme, Montale não se formou e nem por isso deixa de ser um grande poeta” (ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 3. ed. Trad. de Gilson Cesar C. de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 116- 117).

Passando em revista certas “respostas tradicionais” a “o que é e onde está o poema, ou, antes, a obra de arte literária em geral” (Ibid., p. 142), os autores concluem não ser possível encontrar uma resposta satisfatória à questão em termos de psicologia individual e coletiva, sentenciando não ser o “poema”, isto é, a obra de arte literária, “uma experiência individual ou uma soma de experiências, mas apenas uma causa potencial de experiências” (Ibid., p. 150); e ainda: “o verdadeiro poema deve ser concebido como uma estrutura de normas [a

structure of norms], realizada apenas parcialmente na experiência efetiva de seus muitos

leitores” (Ibid., p. 150). Por “normas” não se deve entender aí, alertam os autores, “[normas] clássicas ou românticas, éticas ou políticas”, e sim “normas implícitas que têm que ser extraídas de cada experiência individual de uma obra de arte e que, juntas, constituem a obra de arte genuína como um todo” (Ibid., p. 150-151).

Afirmar que as normas em questão têm que ser extraídas [extracted] de uma experiência individual não implicaria, bem entendido, tomá-las como um produto dessa experiência individual. Os autores admitem ser impossível conhecermos um objeto em todas as suas qualidades, o que não nos permitiria, contudo, simplesmente negar a identidade dos objetos; pelo contrário, dizem, “sempre apreendemos alguma ‘estrutura de determinação’ no objeto que faz do ato de cognição não um ato de invenção arbitrária ou distinção subjetiva, mas o reconhecimento de algumas normas impostas a nós pela realidade” – e também “a estrutura de uma obra de arte tem o caráter de um ‘dever que tenho que realizar’” (Ibid., p. 152). Mais à frente:

Reconhecemos uma estrutura de normas dentro da realidade e não simplesmente inventamos constructos verbais. A objeção de que temos acesso a essas normas apenas através de atos individuais de cognição, e de que não podemos ir para fora ou além desses atos, é apenas aparentemente impressionante. Essa é a objeção que foi feita à crítica de Kant à nossa cognição, e pode ser refutada com os argumentos kantianos (Ibid., p. 154).

Com base nesses “argumentos kantianos” [Kantian arguments], os autores concluirão que a obra de arte “é acessível apenas através da experiência individual, mas não é idêntica a nenhuma experiência” (Ibid., p. 154), surgindo, assim, “como um objeto de conhecimento sui

generis, que tem um estatuto ontológico especial” (Ibid., p. 156). Mas também o ato cognitivo

pelo qual esse objeto sui generis torna-se conhecido – isto é, na perspectiva aí professada: pelo qual a estrutura de normas implícitas que constituem a obra de arte literária como um todo é acessada no âmbito de uma experiência estética individual –, também ele é especial, posto que caracterizado por uma necessária e incontornável dimensão axiológica ou valorativa, o que traz à tona a questão dos valores artísticos: “não há estrutura fora de normas e valores”, explicam, com efeito, Wellek e Warren (Ibid., p. 156), e sentenciam: “Não

podemos compreender e analisar nenhuma obra de arte sem referência a valores. O próprio fato de que reconheço certa estrutura como ‘obra de arte’ implica um juízo de valor” (Ibid., p. 156).

Isso nos remete diretamente ao penúltimo capítulo da Theory, “Evaluation” [Avaliação], focado no “ato de julgamento” [the act of judgement]: “Por referência a uma norma, pela aplicação de critérios, pela comparação dele com outros objetos e interesses, estimamos a categoria [the rank] de um objeto ou interesse” (Ibid., p. 238). A grande pergunta a ser aí respondida é a de “como devem os homens valorizar e avaliar a literatura?” (Ibid., p. 238).

Tudo dependeria do posicionamento adotado em face da dicotomia entre as seguintes visões em estética: (a) aquela “que afirma a existência de uma ‘experiência estética’ separada, irredutível (um domínio autônomo da arte)” e (b) “aquela que faz das artes instrumental para a ciência e a sociedade, que nega um tertium quid como o ‘valor estético’, intermediário entre ‘conhecimento’ e ‘ação’, entre ciência e filosofia de um lado e ética e política do outro” (Ibid., p. 239). Wellek e Warren não têm dúvida acerca de qual visão endossar, e a grande referência, aí, uma vez mais, é Kant, então tomado como verdadeiro marco histórico para certo estado de coisas vigente em estética:

A maioria dos filósofos desde Kant e a maioria dos homens seriamente interessados pelas artes concordam que as belas-artes, incluindo a literatura, têm um caráter e um valor únicos. [...] Sobre o caráter da experiência estética única, há grande concordância entre filósofos. Em sua Crítica do Juízo [Critique of Judgement], Kant enfatiza a “finalidade sem fim” [purposiveness without purpose] (o fim não direcionado para a ação) da arte, a superioridade estética da beleza “pura” sobre a beleza “aderente” ou aplicada, o desinteresse do experienciador [the

desinterestedness of the experiencer] (que não deve querer possuir, consumir, ou, de

outra forma, transformar em sensação ou conação o que é destinado à percepção). [...] O objeto estético é aquele que me interessa por suas próprias qualidades, que eu não tento reformar ou transformar numa parte de mim mesmo, apropriar-me dele ou consumi-lo. A experiência estética é uma forma de contemplação, uma atenção amorosa a qualidades e estruturas qualitativas (Ibid., p. 240-241).

Em plena consonância com esse ideário estético está a resposta dada pelos autores à pergunta por eles lançada logo no início do capítulo: “Os homens devem valorizar a literatura por ser o que é; devem avaliá-la nos termos e nos graus de seu valor literário. A natureza, a função e a avaliação da literatura devem necessariamente existir em íntima correlação” (Ibid., p. 238). Tomando por “forma” [form] a “estrutura estética de uma obra literária – aquilo que faz dela literatura” (Ibid., p. 241), Wellek e Warren se indagam se é possível avaliar adequadamente a literatura através de “critérios puramente formalistas [purely formalistic

criteria]” (Ibid., p. 242). Em vista da confirmação que vêm, então, a oferecer ao longo do

O que o formalista quer sustentar é que o poema é não apenas uma causa, ou uma causa potencial, da “experiência poética” do leitor, mas um controle específico, altamente organizado da experiência do leitor, de modo que a experiência é mais apropriadamente descrita como uma experiência do poema. A valorização do poema é a experimentação, a percepção de qualidades e relações esteticamente valiosas estruturalmente presentes no poema para qualquer leitor competente (Ibid., p. 249).

Tudo se passa, para todos os efeitos, como se os autores se limitassem a parafrasear e a sintetizar, à sua maneira, endossando-os, os “argumentos kantianos” referentes à autonomia do domínio estético, à especificidade do objeto e da experiência estéticos. A Theory se revelaria, então, nesse caso, uma bem sucedida vulgarização tardia de princípios básicos da

Kritik der Urteilskraft [Crítica da faculdade do juízo] (1790) com fins de constituição de uma

teoria da literatura como aparato metacrítico.

Mas o leitor minimamente familiarizado com a delimitação do juízo estético levada a cabo por Kant na terceira Crítica logo afasta a hipótese de um epigonismo kantiano puro e simples em Wellek e Warren: se a resposta por eles elaborada à questão da fundamentação da crítica literária se apresenta, de fato, e deliberadamente, como uma resposta kantiana, ela visivelmente entra em tensão com as considerações do próprio Kant acerca da impossibilidade de fundamentação objetiva da crítica estética. E se essa tensão permanece implícita na Theory, como se o livro se limitasse a sistematizar o resultado de um raciocínio cujo andamento desobriga-se de explicitar para o leitor – algo de praxe, aliás, no gênero “handbook” –, seria preciso buscar, então, essa explicitação, onde quer que ela tivesse ocorrido.

A Theory of literature como resposta kantiana a Kant