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De volta ao lugar, a estrutura encarnada é condição de coerência.

Capítulo 2. Experiência da percepção e sua espacialidade.

5. Do mundo ao lugar: uma nova abertura ao vivido, agora científica.

5.2. De volta ao lugar, a estrutura encarnada é condição de coerência.

“O resultado do trabalho do geógrafo é uma forma, no sentido de modo.

Só assim é possível considerá-la em movimento. O movimento da forma é seu existir no tempo. Daí, sua história. No entanto, o geógrafo faz abstração da historiografia da forma, considerando-a como particularidade espacial. O que importa é seu existir aqui ou ali, tendo um significado teórico em cada lugar, como área, região, ou território, com suas populações presentes. Como já se disse: ‘o espaço é uma acumulação de tempos’. Essa acumulação é diversa é múltipla. Cabe captar sua lógica, ou seja, seu sentido. Esse trabalho é um procedimento mental. Cabe por isso, compreender, ou melhor, apreender a consciência da forma e os usos que dela faz a população. Esta, valoriza-a diferentemente. Essa valorização do espaço tem relação com o espaço vivido enquanto memória da forma. É assim que a geografia é também uma ciência da sociedade, enquanto consciência do espaço. Armando Corrêa da Silva

(2000:21).

A verdadeira tentação é transpor a estrutura merleau-pontyana para o pensamento geográfico ao modo do anunciado em epígrafe que, embora soe temerário dado o critério de coerência e organicidade para empregos em âmbitos distintos; mais valendo em nossa opinião as construções o mais cautelosas possível. Precisemos, então, nosso caminho. A forma, alcançada após sucessivas refutações267, nos levou à estrutura, aparato de intensa e extensa inteligibilidade, quando no nível do pensamento. Ajuda-nos no raciocínio, Armando Corrêa da Silva, ao afirmar que “é a sobredeterminação da idéia, no projeto e

no plano, que procura dar coerência ao mundo fenomênico, a partir do qual são organizados pela mente os pedaços”. Trata-se do que podemos ler do papel da

espacialidade como momento conceitual ligado à percepção, tão importante quanto vem a ser a intervenção, e acrescenta que “Não que o real não tenha um sentido apreensível:

mas, é uma lógica plural, que o apropria como forma, estrutura, símbolo e movimento, numa composição que, se retém o cotidiano, também o transfigura”268; o que encaminha a discussão sobe a reelaboração constante da realidade vivida, subvertendo as certezas.

Esta construção não me permite restringir o mundo ou as explicações do mundo a uma das ordens física, vital, simbólica, posto que vivamos todas; além de não sermos fatores 267

Refutações (dialéticas) das posições mecanicistas, fisiologistas, psicossociais auto-referenciadas. A forma junta momentos de percepção e conhecimento. E mais importante, são irredutíveis umas às outras.

268

(variáveis), sermos, sim, criadores (produtores, organizadores). Esse argumento parece invalidar ou deixar sob suspeição os estudos de morros, cursos d’água, casas, ou do ser humano, de per si, como soma das partes externas do “composto-mundo”. A forma que Merleau-Ponty resgata movimenta-se com tudo que ela carrega das ordens estruturais expostas desde o início do texto. O raciocínio invalida também o Em-si sem o para-nós, mais um argumento contra a redução alternativa às ordens, pois a forma deve sempre ser tomada como unidade269.

O racionalismo de Maurice Merleau-Ponty é caracterizado pela recuperação de um sujeito na constituição da objetividade, passando da “unidade da razão” husserliana ou “unidade do sujeito” pensando o comportamento como forma – que articula matéria, vida e espírito – daí, uma tal unidade:

“deverá se transformar no problema de uma unidade mais vasta, que

envolve sujeito e objeto, ou ainda no problema da unidade da forma, que, por ser ambígua, põe em questão justamente a clivagem entre o subjetivo e o objetivo. Ou, mais precisamente, trata-se do problema da unidade das formas, pois no comportamento se articulam matéria, que vai aparecer então como forma física (e que, por ser forma, deverá envolver uma relação com o sujeito); vida, que vai aparecer como forma orgânica, e espírito, como forma psíquica. Diferentemente dos clássicos, que buscavam a união de substâncias ontologicamente distintas, o subjetivo e o objetivo, a alma e o corpo, a teoria da forma teria encontrado um fundamento comum entre estes desiguais (...) que se apresentam como forma”. Luis Damon S. Moutinho (1998:37).

Como o intento deste trabalho é trazer as contribuições de Maurice Merleau-Ponty para o pensamento geográfico, embora para Maurice Merleau-Ponty a geografia apareça ligada à situação, ao meio físico, quando faz referência à fisiologia, menciona que a ação de um estímulo (sobre um organismo), dá-se “menos por suas propriedades elementares que por

sua distribuição espacial, seu ritmo ou o ritmo de suas intensidades”270. O espaço em Maurice Merleau-Ponty merece mais atenção e devidas “correções” para aplicação adequada, acreditando que um pensamento como o seu possa vir a ser aplicado.

Para ele o cientista demonstra ignorância da idealização do fato bruto, essencial ao seu 269

Para Maurice Merleau-Ponty o maior benefício da forma é o de trazer um tipo de unidade, de totalidade, que não pode ser encontrada em um ser da natureza, ou seja: “Ao tornar-se capaz de fundar a unidade das

ciências, a forma revela sua verdadeira ‘significação filosófica’. Ela vai integrar os três diferentes campos, na medida em que eles aparecerão como ‘três tipos de estruturas’, não como três tipos de substâncias, o que permitirá tanto escapar às antinomias clássicas quanto evitar o recurso a uma transcendência”. Luis Damon

S. Moutinho (1998:38).

270

trabalho271. Fala desse esquecimento da experiência e da idealização272. É o que cabe,

aqui, resgatar, procurar por essa lembrança.

Aqui introduzida, “a forma remete para campos cada vez mais largos de relações, a tal

ponto que ‘um curso das coisas’ conduz às leis e não pode nunca ser ‘definitivamente resolvido nelas’”. Luis Damon S. Moutinho fala, também, da “remissão de totalidades parciais para totalidades cada vez mais vastas...”273. Forma de integração, que nesta parte do texto é reiterada quando do retorno ao lugar, servindo para operarmos a avaliação dos lugares partindo de quem os vivencia, considerando aquilo que Armando Corrêa da Silva há duas páginas sobre a apreensão do sentido da realidade como “uma lógica plural,

que o apropria como forma, estrutura, símbolo e movimento, numa composição que, se retém o cotidiano, também o transfigura”.

Do mundo ao lugar ou o mesmo que do oceano à terra firme; redução ao “mundo determinado”. Aqui é o lugar pelo mundo que, de modos diferentes, invade nosso cotidiano. Atinente ao caráter analítico do percurso dá-se o encaminhamento para a prática, aproximando-se com todos os perigos, do empírico.

Fatos e significação274 são próprios dos lugares como “concretude”, com seu sentido corpóreo. O mundo e suas estruturas são considerados para o Centro da experiência vivida posto para a geografia. Olhar para o mundo e para o lugar, deste modo, não guarda semelhança com a ideologia da globalização e sua coleção de “conceitos” (metrópoles mundiais, gentrificação, city market, entre outros); mais se aproxima das observações de Merleau-Ponty sobre a escala e suas considerações sobre a forma. Sem dúvida, é um pensamento pujante de uma tradição que ainda não foi aproveitada em toda a sua riqueza.

Sem a “experiência do outro” não há ética ou política verdadeira, pois esta assenta na diversidade inerente à variedade ôntica. Aqui vislumbramos uma ligação para a operacionalidade da abordagem estrutural, no que diz respeito às práticas políticas, básicas ao alinhamento das ordens da realidade275.

271

É o esquecimento já mencionado. Luis Damon S. Moutinho (1998:20-1).

272

Luis Damon S. Moutinho (1998:21; 82).

273 Luis Damon S. Moutinho (1998:21; 43). 274 Luis Damon S. Moutinho (1998:68). 275

Segue, como argumento de autoridade sobre engajamento político, um trecho da fala Marilena Chaui em Seminário:

“... minha formação filosófica foi marcada pela fenomenologia, através de

Merleau-Ponty, que se erguera contra o ‘legado cartesiano’ da existência como coisa ou como consciência. Por isso também considero a subjetividade uma estrutura de experiências significativas e significantes que não começam nem terminam na consciência de si de um sujeito, uma teia de tecidos tecida na relação intercorporal e no diálogo com o outro. Na estrutura do comportamento, Merleau-Ponty distinguiu a ordem física (a natureza como estrutura atual, ou um indivíduo molar, resistente às influências externas e definida por um sistema de forças em busca de um equilíbrio interno de ações e reações que tendem para o repouso; em suma, um sistema de causalidade necessária ou de leis), a ordem biológica (a vida como comportamento, isto é, como estrutura vital em que o equilíbrio não é obtido por ações e reações atualmente dadas, mas como reação do organismo às condições virtuais, postas por ele como condições de sua existência; em suma uma estrutura adaptativa e inovadora que cria normas e sistemas de sinais) e a ordem humana ou a estrutura simbólica como lógica da expressão, isto é, como capacidade para relacionar-se com o ausente e com o possível e, portanto, como transcendência, isto é, como capacidade para dar um sentido novo e inédito às condições dadas de fato. A ordem humana é a ordem do tempo, da linguagem e do possível ou criação histórica propriamente dita. A subjetividade é um nó de ações corporais e simbólicas originariamente intercorporais e intersubjetivas, das quais a consciência de si enquanto sujeito é um dos aspectos e não a definição”. Marilena Chaui (1997: 18-25).

As duas primeiras ordens (física e biológica) são comumente trabalhadas na “geografia física”, produto da separação no pensamento geográfico, que coloca do outro lado “geografia humana”276. É também sobre isso que Milton Santos afirma que “Os eventos dissolvem as coisas, eles dissolvem as identidades, propondo-nos outras, mostrando-nos que não são fixas (...)”. A velocidade e as “armadilhas” do processo concentrador que

organiza a vida em suas dimensões psicossociais, continua o autor: “Diante da nova

história e da nova geografia é o nosso saber que também se dissolve, cabendo-nos reconstituí-lo através da percepção do movimento conjunto das coisas e dos eventos”277. A referida separação perpassa todo o pensamento científico e boa parte do filosófico, resiste às investidas da postura de integração dos elementos e ordens da realidade, seja em ciência ou filosofia.

276

“O problema, não resolvido, e mal resolvido pelos geógrafos do passado, é o de limitar-se ao visível

empiricamente. O problema, não resolvido ou mal resolvido, pelas geografias crítica e radical é, de um lado, rejeitar a pesquisa empírica como um momento do método, e, de outro, rejeitar a investigação concomitante, como procedimento mental. Separar as ‘idéias' e os ‘fatos’ não conduz a nada, a não ser à repetição de procedimentos que a vida demonstra, mais cedo ou mais tarde, insatisfatórios”. Armando

Corrêa da Silva (2000:19).

277

Desejamos alinhar os níveis ou ordens da estrutura para a avaliação e proposição para os lugares, talvez até, indo além do ensaio. O alinhamento é, prioritariamente, ético e político. O Centro é tomado como forma mais ampla, ideal, sendo também formas

espaciais, estas agora consideradas.

Com preocupações de geógrafo, vamos em direção a lugares da cidade e com instrumental consagrado captamos coisas que devem ser tratadas em suas conexões dadas pelo espacialidade, para nós, abertura ao espaço geográfico do mundo. Contudo, a dificuldade na elaboração de instrumentos efetivos está ligada às reflexões muito próprias ao pensamento fenomenológico, em geral, e ao de Maurice Merleau-Ponty, que são encaminhados em níveis diferentes daqueles que o cientista atua; fato que Maurice Merleau-Ponty tem presente quando desenvolve seus pensamentos.

5.3. Espacialidade da forma e formas espaciais: caracterização e