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1. SOCIALIDADE IMPESSOAL DA EXISTÊNCIA

1.4 Ser-em, a abertura de mundo do ser-aí

1.4.4 Decair: a abertura de mundo da cotidianidade

Até o momento, a exposição que Heidegger produz das estruturas existenciais da abertura de mundo foram indiferentes aos modos próprios ou impessoais de abertura. O decair se refere justamente a abertura do ser-aí inautêntico em seu modo cotidiano e mediano de ser. Assim, a investigação volta-se agora para a descrição do movimento que caracterizam os modos de ser do ser-aí cotidiano, enquanto absorvido no contexto pragmático e na publicidade do impessoal. Portanto, devemos nos manter na compreensão do mundo publicamente nivelado e da socialidade impessoal, tal como foram explicitados anteriormente. Para Heidegger a publicidade caracterizada pela estrutura do ser-com é a abertura da impessoalidade (HEIDEGGER, 2012 p. 471). Tal Abertura é apresentada através da explicitação de três fenômenos, a saber, o falatório, a curiosidade e ambiguidade. Nessa compreensão, o falatório se refere paralelamente ao discurso e diz respeito a comunicação na cotidianidade. Nela, se explicita a interpretação da linguagem comum de concepções habituais. Segundo o filósofo, o ser-aí se mantém nessas interpretações que torna a ele visível, de forma concreta, o mundo e o que nele se apresenta. De tal modo, o impessoal assume e repete as interpretações já dadas e compartilhadas (LARA, 2015, p. 160). Contudo, essa repetição, em última instância, culmina em uma fala infundada e “cega”, que não tem relação objetiva com o que se fala, gerando uma ilusão de compreensão.

Com o fenômeno da curiosidade, Heidegger indica um estado de anseio por novidades no qual o ser-aí cotidiano se encontra. Relacionada e derivada do fenômeno da visão, no sentido da circunspecção (Umsicht) na compreensão do utensílio (LARA, 2015, p. 161), a curiosidade indica que a existência, no mais das vezes, está atenta a novos acontecimentos, de maneira que se perde em novas possibilidades. Nessa perspectiva, o ser-aí não tem uma compreensão clara e segura de tais possibilidades, pois não permanece para ver e ter uma relação de ser com o visto (HEIDEGGER, 2012, p. 485). Por conseguinte, o ser-aí cotidiano encontra-se em constante dispersão e desenraizamento, de forma que ele está em todo lugar em ao mesmo tempo em lugar algum.

Assim, o falatório e a curiosidade são modos de ser co-originários que fazem com que o ser-aí desconsidere a compreensão originária. Esses dois elementos sustentam a chamada ambiguidade, caracterizada como modo público de interpretar os assuntos dos quais o ser-aí se ocupa. A partir da ambiguidade, o ser-aí tem um acesso impessoal ao ente, que é característico da publicidade. Não obstante, a ambiguidade não se limita a assuntos de ocupação, mas atua também sobre as possibilidades nas quais o ser-aí se projeta, portanto, sua

relação é com o mundo, com outros e consigo mesmo (HEIDEGGER, 2012, p. 487).

Esses três fenômenos existenciais da abertura do ser-no-mundo cotidiano configuram o decair da existência. Enquanto estrutura existencial que explicita o modo mais frequente e imediato em que o ser-aí se encontra, nas tarefas de ocupação e no espaço público de convivência, o decair mostra a existência como absorvida na ocupação presente, passando incessantemente de uma coisa a outra. O problema dessa dispersão do impessoal é que no interesse por vários assuntos prontamente interpretados o ser-aí não os reconhece como possibilidades que afetam seu próprio ser lançado (LARA, 2015, p. 164-165).

Embora o impessoal, como modo de ser guiado pela interpretação pública e compartilhada com outros, seja um fenômeno deficiente, devemos reconhecer que é um fenômeno inevitável e predominante. Nesse sentido, Heidegger diz que o falatório é o modo de ser da convivência cotidiana (da socialidade impessoal), de tal modo que o ser-aí dá a ele mesmo a possibilidade de perder-se na impropriedade e decair, tanto que a existência está em uma constante tentação de cair (HEIDEGGER, 2012, p. 497). Portanto, a possibilidade de ser próprio e responsável pela sua existência só pode surgir como modificação a partir do impessoal e não como superação do decair.

Pode-se dizer que o caráter existencial do ser-aí, de pronto e no mais das vezes, se mantém enraizado no mundo como publicamente constituído, no qual ele participa de uma linguagem que possui interpretações comuns de tudo o que se apresenta. De modo tal, que ela gera uma tranquilidade de que tudo está suficientemente interpretado, que por sua vez intensifica o decair (HEIDEGGER, 2012, p. 499). No conforto da “certeza-de-si”, a existência interessa-se curiosamente por diferentes modos de interpretar a si mesma, e deixa dispor e entender-se pelos mais variados discursos sobre a vida e sobre o homem (LARA, 2015, p. 164-165). Heidegger caracteriza esse movimento do decair de precipitar-se a si mesmo do ser-aí, que é encoberto pela interpretação pública, de forma que essa precipitação acaba sendo interpretada equivocadamente como “ascensão” e “vida concreta” (HEIDEGGER, 2012, p. 499). Assim, o decair é um modo de levar a cabo o ter-de-ser do ser-lançado da existência (LARA, 2015, p. 166) Ou seja, isso que a disposição afetiva explicitou, apresenta-se na cotidianidade como decair do ser-aí, no qual ele encontra-se alienado por não tomar seu próprio ser e assumir suas possibilidades concretas.

Heidegger mostra, assim, os aspectos essenciais da abertura do ser-em – disposição afetiva, compreensão e discurso – e seus modos cotidianos – falatório, curiosidade e ambiguidade – como movimento de caída. A partir disso, podemos concluir que a socialidade cotidiana e impessoal do ser-aí, além de constituir e articular a significatividade do mundo, se

mostra como uma posição padrão de uma circunstância normatizadora, guiada pelo falatório, curiosidade e ambiguidade. A seguir, nosso objetivo é buscar descrever o modo como a existência modifica-se do seu modo de ser mais imediato e constante. Para isso, é necessário prosseguir na análise, na qual o filósofo procura descrever a multiplicidade dos caracteres até aqui mencionados em uma totalidade unificada.