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DECISIONISMO E OS REQUISITOS (CONSTITUCIONAIS) DA DECISÃO ELETRÔNICO-DIGITAL

3 O MARCO CIVIL DA INTERNET: A BUSCA TELEMÁTICA NO BRASIL

3.8 DECISIONISMO E OS REQUISITOS (CONSTITUCIONAIS) DA DECISÃO ELETRÔNICO-DIGITAL

Recentemente, um Ministro do STJ reacendeu a discussão sobre a teoria da decisão judicial e os fundamentos que podem ser edificados em uma manifestação proferida sobre a égide de um Estado (que pretenda ser) Democrático de Direito, ao afirmar a irrelevância do entendimento doutrinário para sua (pré)compreensão:

Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a m im , certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja.338

Em uma série de decisões que enfrentam o tema da busca eletrônico-digital, verificou-se um ranço autoritário que tem lastreado o exame dessas questões no Brasil, essencialmente em relação ao juízo de piso e segunda instância, como evidenciado na seção anterior. Em um sistema no qual as súmulas vinculantes não

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 279.889. Agravante: Fazenda Nacional. Agravado: Pedro Lourenço Wanderley e outros. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Diário de Justiça, Brasília, DF, 07 abr. 2003. Disponível em: <https://pt.scribd.com/doc/57229133/STJ-Nao-me-interessa-a-Doutrina>. Acesso em: 24 out. 2017. p. 12.

são respeitadas pelo próprio Tribunal ou quando enunciados e precedentes são constantemente inobservados, uma mensagem como essa “ministrada” por tal julgador evidencia o suporte referencial dos magistrados de primeiro grau.

Entende Rodriguez que, diante da tradição não argumentativa, opinativa e personalista, o ajustamento dos casos anteriores tende, ainda atualmente, “a ser feita em função de seu resultado e não em função de seus fundamentos, ou seja, dos argumentos utilizados pelos juízes para justificar sua decisão.”339

Nesse passo, o referido autor argumenta que a jurisprudência no Brasil é capitaneada por conduto das “[...] súmulas e enunciados e não pela reconstrução argumentativa de casos pragmáticos que constituam uma tradição, como ocorre no Direito anglo-saxão.” Os enunciados e sumulados são opiniões dos Tribunais sobre determinados problemas jurídico-processuais, expressos em fórmulas genéricas e abstratas que apontam para um determinado resultado.340

Rodriguez arremata dizendo que o Direito precisa se transformar para dar conta de novos conflitos, “[...] mas transformação do direito e das instituições em geral passa, necessariamente, pela transformação do papel do judiciário e da atuação dos juízes.”341

Ao traçar uma teoria da decisão judicial, Streck discute sobre a resposta constitucionalmente correta, um dever moral do julgador que se configura como um ato de responsabilidade política. Streck abandona o termo “neo constitucionalismo”, por conta do desenvolvimento tardio do constitucionalismo brasileiro, mas defende a construção de um “direito democraticamente produzido, sob o signo de uma Constituição normativa e da integridade da jurisdição.”342

O autor define o constitucionalismo como sendo “[...] um movimento teórico jurídico-político em que se busca limitar o exercício do Poder a partir da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da cidadania.”343

Assim, questiona-se o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas senão a constatação de que, no processo de execução, acabam sendo

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RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 15.

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RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 15.

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RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 17.

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STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014b. p. 40.

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exterminadas. A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais se inicia não forem arbitrárias.

Há diversas opiniões que devem ser examinadas quanto à sua legitimação, analisando-se sua origem, licitude, validez e, por que não, uma filtragem à luz dos direitos fundamentais. “Existe uma pressuposição geral de que alguém que fala a mesma língua que eu toma as palavras que emprega no sentido que me é familiar”, mas, no exemplo do Ministro citado, essa lógica não parece ser absoluta, como afirma Gadamer.344

Gadamer continua explicando que a autoridade não significa a superioridade de um poder que exige obediência cega, proibindo as pessoas de pensarem. “A verdadeira natureza da obediência consiste, antes, no fato de não se tratar de um ato desprovido de razão, mas de um próprio mandamento da razão, um saber que ultrapassa o próprio saber.” Obedecer à autoridade é perceber que o outro – bem como a outra voz que fala a partir da tradição e do passado –, pode ver alguma coisa melhor do que si mesmo, por isso, não há como desconsiderar o entendimento dogmático como fator a influenciar decisões judiciais.345

Por tais motivos, perpetua-se a discussão da validade probatória dos recursos digitais e dos métodos ocultos de investigação criminal por intermédio do HC, por conta da liberdade “excessiva” e arbitrária que permeia os andares inferiores de uma jurisdição não-constitucional, e essa perpetuação costumeiramente se dá por meio do HC, que se constitui numa ação impugnativa capaz de desentranhar um manancial probatório inidôneo dos autos. Em vez de se construir uma jurisprudência rígida nessa temática – e reduzir a provocação superior por conta de aquisições ilícitas da prova nos juízos de térreo –, a “saída” é a limitação do HC para tal discussão, reduzindo ainda mais sua função histórica.

Assim, atualmente, não cabe HC346 em substituição aos recursos ortodoxos, assim como quando atinge uma decisão liminar e quando já houver sentença condenatória apreciando o tema. Em alguns casos, esse decisionismo impede até a

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2442370/mod_resource/content/1/VerdadeEM%C3%A9todo. pdf>. Acesso em: 24 out. 2017. p. 358.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 53.

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Ainda não há súmula, mas a impossibilidade de impetração de HC em substituição ao recurso ordinário constitucional é uma posição pacífica nas duas turmas do STJ que enfrentam a matéria criminal, assim como no STF.

análise meritória de temas que estão sendo postos à mesa, pois afeta diretamente a discussão, nos Tribunais, sobre a licitude de eventual prova digital.

Em outro giro, o preconceito jurisdicional representa, necessariamente, um falso juízo, “[...] uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente.” Essa perpetuação de um viés preconceituoso negativo – efetivado no Iluminismo (Aufklärung) –, tem por causa a redução das chances daquele que participa de uma disputa jurídica e vê estas chances serem diminuídas pela iminência dos efeitos de uma pré-decisão. O préjugés não será legitimes – colhendo, por empréstimo, o termo francês –, quando se manifestar por um juízo não-fundamentado. Nisso se restringiu a crítica religiosa do Iluminismo, como apresentado por Gadamer.347

Importa ressaltar que a vontade e o conhecimento do intérprete não constituem salvo-conduto para a atribuição de sentido arbitrária, consequência lógica da discricionariedade, mesmo nas hipóteses de ausência infraconstitucional. No plano da linguagem, a arbitrariedade acaba sendo sinônimo da discricionariedade, ou seja, do ato de decidir por uma simples autoridade.

É claro que se trata de uma discricionariedade desapegada da jurisdição constitucional, referindo-se ao arbítrio, pois, se toda interpretação é um ato produtivo, se o intérprete atribui sentido ao texto, sem reproduzir sentidos existentes, essa produção deve ser limitada por parâmetros constitucionais, convencionais e fundamentais. É a ideia de jurisdição constitucional, convencional e fundamental.

Quando o Supremo admite o transplante do conteúdo de uma interceptação telefônica para o processo civil e administrativo, com a execução imediata da pena nos processos de competência do Tribunal do Júri – antes de ser interposta a apelação –, essa “[...] discricionariedade não apenas permite uma interpretação do texto da Constituição praeter legem, como autoriza de forma velada uma arbitrariedade”, à medida que a presunção de inocência e o segredo das comunicações em instâncias civis estavam prescritas no Texto Maior, com demonstrado por Streck.348

Streck ressalta que decisões com esses termos apenas podem ser legitimadas – considerando o Judiciário constitucionalmente desobediente –, com o

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 53.

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 53.

manto da discricionariedade judicial. Nessa vertente, o autor faz uma crítica ao positivismo hartiano no sentido de ser possível um poder discricionário toda vez que uma regra forte, clara e precisa não esteja prevista. Não deveria existir uma discricionariedade porque os termos da decisão estão engessados por garantias constitucionais. É a importância da hermenêutica jurídica em uma manifesta aposta na CF/88, evitando a atribuição de sentidos de forma arbitrária.349

É por esses caminhos e condicionantes que passeiam as novas demandas de uma renovada hermenêutica constitucional. Uma superação das diversas posturas positivistas com preenchimento desse espaço discricional pela tematização dos princípios constitucionais, o que se busca nesta pesquisa ao interpretar o Marco Civil da Internet.

Em sua obra, Dworkin salienta que os Tribunais devem tomar decisões de princípios e não de política, “decisões sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove melhor o bem-estar geral.”350

Tratando-se da imprecisão legislativa supõe-se que, se uma lei for aprovada, o efeito dessa regra sobre o Direito “é determinado exclusivamente pelo significado das palavras que usou, de modo que se as palavras são imprecisas, deve decorrer daí que o impacto da lei sobre o Direito deve, de alguma maneira, ser indeterminado”, como explica Dworkin.351

A seguir, o autor considera essa suposição equivocada e arremata que “os critérios de um jurista para estabelecer o impacto de uma lei sobre o Direito podem incluir cânones de interpretação ou explicação legal” limitadores da imprecisão legislativa.” Dworkin considera, entretanto, que os critérios não podem lastrear-se em fatos psicológicos.352

Por fim, Dworkin (2001, p. 190) afirma que o impacto legislativo sobre o direito é determinado pela questão de qual interpretação “[...] entre as diferentes possibilidades admitidas pelo significado abstrato do termo, promove melhor o conjunto de princípios e políticas que promovem a melhor justificativa política para a

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

350

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 101.

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DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 189.

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lei na época em que foi votada.”353

A resposta correta que parecia perdida pela imprecisão ou ausência legislativa acaba sendo alcançada pela engrenagem principiológica.

Esse é o elemento cerne. Se não há um Marco Processual da Internet, mesmo em sede de uma “sociedade dos dados”, questiona-se se isso autorizaria uma desnecessidade de ordem judicial ou supressão de requisitos de legalidade para implementar o “aceder” a esse conteúdo (informação verbal).354

É com essa base principiológica que Streck propõe a tese da descontinuidade, entendendo que os preceitos constituem o mundo prático do direito, impondo ao juiz o dever de decidir de maneira adequada e correta. O direito fundamental de uma resposta correta. Uma blindagem hermenêutica contra discricionarismos jurisdicionais, princípios que são deontológicos.355

Para dar um sentido à presente dissertação, é mister uma blindagem fundamental, deixando o “mito” de lado e abraçando o “princípio”, pois não se pode eternizar a “espera” à uma lei que preencha o vazio ordinário quanto a esse tema. Afinal, Coutinho leciona que os entusiastas não esperam, eles continuam em sua “cruzada”, representando, opinando, requerendo e, pior, decidindo sem o mínimo suporte epistêmico no contexto da busca e apreensão digital.356

Ao não mais prever a palavra “livremente”, o art. 371 do CPC expungiu o livre convencimento, sendo uma “opção paradigmática feita pelo legislador, em fiel observância da teoria do direito contemporânea”, como afirma Streck.357

O Estado Democrático de Direito proporcionou uma nova configuração nas esferas de tensão dos poderes do Estado, decorrente de seu novo papel e do constitucionalismo, circunstância que reforça, sobremodo, o caráter hermenêutico do Direito, por intermédio, por exemplo, dos textos constitucionais principiológicos.

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DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 190.

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Comentário fornecido por Augusto Jobim do Amaral ao compor uma banca avaliadora na Mostra de Pesquisa de Pós-graduação do 3° Encontro de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Criminais, Canela, em 30 de setembro de 2017.

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 53.

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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Separata ITEC, ano 1, n. 4, p. 2-17, jan./mar. 2000. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/74842150/IntroducaoaosPrincipiosGeraisdoDireitoProcessualPenalBr asileiro2005>. Acesso em: 24 out. 2017.

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STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: o senso incomum? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. p. 26.

No contexto processual penal, em que desde a notícia crime até o fechamento integra das vias recursais temos o preceito fundante da presunção de inocência, a imposição de limitações ao convencimento do julgador é ainda mais imperativa, principalmente em matéria probatória. Para Fenoll, “[...] se a presunção de inocência estiver contida em uma norma, como costuma ser, e esta norma não permite que o juiz avalie o teste com uma liberdade sem restrições [...]”, chega-se à conclusão de que o sistema processual penal é o da valoração legal.358

O Brasil convivia com duas claras manifestações da necessidade de serem estabelecidos limites decisórios do juiz: a doutrina e as legislações processuais, que mantinham a defesa do livre convencimento como paradigma para compreender a atividade jurisdicional. Em 2015, o CPC foi remodelado retirando essa “liberdade”. O Direito não é – e não poderia ser –, aquilo que os Tribunais dizem que é, como defende Streck.359

Não se está defendendo – e nem se poderia –, a aplicação irrestrita do CPC ao campo processual penal, ou mesmo o transplante de suas categorias ao campo procedimental criminal, posto o que se está apoiando é a necessidade de fundamentação material das decisões cautelares ou meritórias como um imperativo do art. 93, inciso IX da CF/88.360

Streck afirma que todos os sujeitos têm pré-compreensões, mas isso não significa que sejam reféns delas, sendo que essas prévias concepções não são iguais ao preconceito no sentido vulgar. Em países de modernidade tardia, como o Brasil, a questão principal é perquirir a possibilidade de se obter uma resposta constitucionalmente adequada, diante da indeterminabilidade do Direito e da crise de efetividade da Constituição. Em debate, Dworkin foi de encontro à tese sustentada por Hart acerca do poder discricionário dos juízes para solver os casos difíceis – se propondo a construir uma teoria jurídica antidiscricionária –, afirmando que a

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FENOLL, Nieva Jordi. La duda em el proceso penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. Disponível em: <https://www.marcialpons.es/static/pdf/9788415664673.pdf>. Acesso em: 24 out. 2017. p. 70, tradução nossa.

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STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 24 out. 2017.

herança kelseniana do decisionismo não foi superada e a discricionariedade hartiana tem sido, de algum modo, reapropriada pelas teorias argumentativas.361

Heidegger ensina que o círculo hermenêutico não deve ser degradado a um círculo vicioso, pois esconde uma possibilidade positiva do conhecimento originário, que, evidentemente, só será compreendida de modo claro quando ficar patente que a tarefa cerne, constante e definitiva da interpretação continua sendo não permitir que a posição antecipada, a visão pretérita e a concepção prévia lhe sejam impostas por instituições ou noções populares, ou mesmo, por uma “mera” investidura. “Sua tarefa é antes assegurar o tema científico, elaborando esses conceitos a partir da coisa, ela mesma. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter técnico”, como leciona Gadamer.362

Para Gadamer, esse círculo tem um sentido ontológico positivo, sendo que “toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da espera dos hábitos de pensar imperceptíveis”, e voltar seu olhar para as coisas como elas são, a primeira tarefa, presente e última. Quem busca a compreensão está exposto a erros de concepções prévias que não se constatam nas coisas. Projetar corretamente às coisas que, como projetos, são antecipações que só podem ser confirmadas nas coisas, pois “tal é a tarefa constante da compreensão.”363

Nesse sentido, Gadamer indaga sobre o que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas senão o fato de que, no processo de sua execução, acabam sendo aniquiladas. A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões antecipadas não sejam, na essência, arbitrárias. Assim, o intérprete não pode se dirigir diretamente aos textos a partir de sua opinião prévia, mas deve examiná-los quanto à sua legitimação, à sua origem e à sua validez. O autor constata que “é preciso dizer que o que nos faz parar e perceber uma possível

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STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2442370/mod_resource/content/1/VerdadeEM%C3%A9todo. pdf>. Acesso em: 24 out. 2017. p. 355.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2442370/mod_resource/content/1/VerdadeEM%C3%A9todo. pdf>. Acesso em: 24 out. 2017. p. 355.

distinção do uso da linguagem é o choque causado pelo texto, seja porque não nos faz sentir ou porque eventual sentido não atende às nossas expectativas.”364

A Lei 12.965/2014 tem lacunas que devem ser preenchidas constitucionalmente até a edição de um Marco Processual Penal da Internet, com completude probatória, porque a CF/88 não é um “tigre sem dentes” e seus mandados explícitos estão aí para preencherem algumas decisões materialmente desmotivadas, que estão sendo proferidas na coleta do conteúdo tecnológico estanque.

Considerando-se que a necessidade de ordem judicial para aceder a esses elementos probatórios se constitui num ponto de partida para as etapas de aquisição da prova eletrônica, são necessários requisitos e pressupostos, hipóteses de cabimento, legitimidade, competência e o acesso ao contraditório, especialmente pelo caráter volátil que engrandece os cuidados necessários à conservação desse material oculto.

Se a crise da hermenêutica jurídica passeia por uma discricionariedade (livre) – e por um redundante convencimento deitado no art. 155 do CPP –, apenas a subsunção dessa técnica de investigação aos direitos fundamentais previstos na Constituição pode evitar o decisionismo provocador de manifestações acéfalas de algumas autoridades na efetivação desse novo tema probatório.

Segundo Ferraz Júnior, o conceito de lacuna veio alargar o âmbito da positividade do Direito, atrelada à ideia de sistema que dá força e serve de sustento ao intérprete do Direito. Mas constatar a existência de lacuna implica ver o Direito como sinônimo de lei (infraconstitucional), pois, se o Direito extrapola a lei, não há lacunas. Inexistem, assim, lacunas técnicas, sendo todas axiológicas, faltando valores morais, convencionais e constitucionais nas decisões.365