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2. Cinema e Ideologia

2.2. O aparelho de base

2.2.2. Decupagem/Roteiro

O segundo processo do esquema é a decupagem e o roteiro. O roteiro é a forma escrita do filme, nele encontra-se desde descrições de cenário e personagens, passando por diálogos e narrações, até anotações técnicas sobre qualquer outra etapa do processo cinematográfico. Essa forma escrita do filme também é conhecida como argumento ou guião. A decupagem é um termo cinematográfico que define o processo pelo qual o filme é decomposto em sequências de planos. Ela não é apenas a transposição do roteiro em imagens, mas também a maneira pela qual estas se organizarão tempo-espacialmente ao longo do desenvolvimento do filme. Porém, é possível argumentar que a decupagem possa ser a própria confecção do roteiro cinematográfico em si (Xavier, 2005, p. 27). Bazin (1985/2014) apresenta um exemplo muito esclarecedor sobre a decupagem:

Um personagem, trancado num quarto, espera que seu carrasco venha a seu encontro. Ele fixa angustiadamente a porta. No momento em que o carrasco vai entrar, o diretor não deixará de fazer um close da maçaneta da porta girando devagar; esse close é psicologicamente justificado pela extrema atenção da vítima ao sinal de sua aflição. É a sequência de planos, análise convencional de uma realidade contínua, que constitui propriamente a linguagem cinematográfica. (Bazin, 1985/2014, p.293)

Essa passagem traz a visualização do diretor como ponto crucial desse processo. De fato, a decupagem é um processo imaginativo, apesar de poder ser transposta para um storyboard ou algo do tipo. Esse é o processo pelo qual o texto narrativo transforma-se em texto fílmico, ou seja, uma sequência de imagens inscritas dentro de cenas. Exatamente pelo fato de a decupagem constituir a linguagem cinematográfica que ela se encontra na mesma etapa do roteiro no esquema. Burch (1969/2011) compreende a decupagem como o último estágio do roteiro, “[...] as indicações técnicas

que o diretor julga necessário registrar no papel, e que permite a seus colaboradores acompanharem o trabalho no plano técnico, preparando, em função dele, sua própria participação” (Burch, 1969/2011, p. 23). Para explicar decupagem, Xavier apresenta a maneira como se relacionam a esse processo o plano e o ponto de vista, que é explorado como um dos principais eixos do argumento de Baudry:

[...] definimos por enquanto decupagem como processo de decomposição do filme (e, portanto das sequências de cenas) em planos. O plano corresponde a cada tomada certa, ou seja, à extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que o plano é um segmento contínuo da imagem. O fato de que plano corresponde a um determinado ponto de vista em relação ao objeto filmado (quando a relação câmera-objeto é fixa), sugere um segundo sentido para este termo que passa a designar a posição particular da câmera (distância e ângulo) em relação ao objeto. (Xavier, 2005, p. 27)

Em resumo, a decupagem é o primeiro momento no qual o espectador é automaticamente antecipado, antes mesmo da filmagem. O que será visto pelo espectador começa a sofrer suas primeiras determinações, antecipando sua posição de testemunha. Quando o roteirista — ou o diretor — opta por tal sequência de planos, a partir de sua visualização de como a cena deve organizar-se no espaço e no tempo fílmico, o ponto de vista do espectador é antecipado e definido. Obviamente que mudanças ocorrem entre a visão do diretor e a execução do próprio filme; porém, há de se reconhecer que parte do processo de transformação da “realidade objetiva” já se inicia nesse primeiro processo da confecção de um filme, como demarca Baudry. Já há uma determinação nessa escolha que influenciará todos os outros processos do aparelho de base. Para exemplificar, tomemos como exemplo a entrevista de Stanley Kubrick (1928-1999) sobre as locações de Laranja mecânica (A clockwork orange, 1971). O filme foi essencialmente rodado em locações com cenários naturais da cidade de Londres, mas algumas cenas precisaram ser filmadas em estúdio. Kubrick em entrevista para Michel Ciment (2013) explica:

[No filme] só há quatro cenários e eles foram construídos em uma fábrica abandonada: o Korova Milk Bar, a entrada e o banheiro na casa dos Alexander, e o vestiário da prisão. E adotamos essa solução porque não encontramos um lugar adequado para filmar. Eu queria que os lugares tivessem um aspecto ligeiramente futurista e comprei todos os números antigos dos últimos dez anos de três revistas de arquitetura. A maioria dos lugares interessantes que acabamos escolhendo foram descobertos dessa maneira. Estava fora de cogitação

ir procurar em Londres, pois demoraria uns cinco anos. (Ciment, 2013, p.120)

Como vemos nessa passagem, o diretor possuía de maneira muito delimitada o que gostaria de filmar, o que esperava que fosse visto por seus espectadores. Há um direcionamento total sobre o que irá e o que não irá participar do campo de visão da câmera — e, por consequência, do espectador. É possível argumentar, como veremos com Benjamin (1989/2014), que a câmera captura mais realidade objetiva do que o antecipado pelo diretor, pelo cinegrafista ou pelo diretor de arte. Mas isso não muda o recorte que já ocorre, de antemão, na escolha dos fragmentos de realidade que comporão a diegese15.

Mesmo se recorrermos a exemplos mais radicais, como o filme Acossado (À bout de souffle, 1960) de Jean-Luc Godard, reconheceremos que a realidade objetiva dificilmente não é de um jeito ou outro antecipada e predeterminada. Carlos (2011) ressalta a maneira como Godard buscou apostar no improviso com o intuito de ir “[...] às ruas e ao mundo, abandonar o fundo falso do modo de produção industrial e abrir-se ao real, fazendo o público sentir o pulsar da vida” (Carlos, 2011, p. 42). Godard filma o dia-a-dia, escrevia as cenas durante o café da manhã e as filmava depois. Tanto quanto Kubrick, Godard tem uma intenção e faz seu recorte da realidade objetiva para atingir determinado efeito nos espectadores. Mesmo que aparentemente a situação de improviso liberte o diretor para filmar “acontecimentos”, e não apenas ilusões premeditadas, o breve momento de escrever algo pela manhã e filmá-lo posteriormente era imprescindível para Godard.

15 Diegese é uma palavra de origem grega que busca definir a realidade ficcional sobre a qual o filme

sustenta-se. Por exemplo, em uma cena que mostra uma árvore em uma planície, quando adicionamos, por meio de edição, o som de pássaros cantando, estes passaram a compor a realidade diegética do filme. A presença da imagem de pássaros na tela acaba sendo totalmente prescindível, para que na diegese possamos conceber que pássaros vivem naquela árvore.