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2. Cinema e Ideologia

2.2. O aparelho de base

2.2.3. Película/Câmera (registro sonoro)

Seguindo com o esquema, temos a etapa em que a câmera entra no processo — assim como a película e, possivelmente, o registro sonoro. Retomando a linha vertical que divide o esquema, notamos que a câmera ocupa uma posição intermediária no processo, distanciada do material bruto (realidade objetiva), assim como do produto final (filme em projeção). Para Baudry, no desenrolar dos processos de produção de um filme, a câmera ocupa um lugar central, marcado por uma transformação. É na câmera que ocorre a inscrição da realidade objetiva, caracterizada por uma impressão de diversas intensidades luminosas. Cabe insistir que essa inscrição na película diferencia- se da transformação do material significante operada na decupagem (transformação linguística) ou, ainda, na montagem (transformação imagética). Segundo Baudry, a inscrição operada pela câmera não pode ser reduzida a uma transcrição ou tradução da realidade objetiva; trata-se, mesmo, de uma “mutação do material significante” (Baudry, 1970/1983, p. 385).

Cabe aqui retomarmos o aspecto de mediação realizado pela câmera cinematográfica, pois ela é aquela que representa os espectadores no set de filmagens. Ela é a marca de que a presença do espectador se faz de antemão; porém, a presença da câmera, em si, precisa ser ignorada — o ator não pode “olhar para a câmera”. O espectador precisa esquecer de que há uma câmera mediando sua experiência, precisa sentir-se excluído da cena que assiste, demanda a ilusão de estar assistindo através do olho de uma fechadura. Para que a câmera possa representar o espectador no jogo da cena cinematográfica, ela precisa ser apagada da mediação. Um “recalque necessário” se faz imprescindível (Goldenberg, 2010, p. 74): o recalque da câmera como espectador. Esse imperativo é um efeito do necessário apagamento da câmera enquanto mediadora da diegese e espectador. Os filmes de Jean-Luc Godard são exemplares de como ao olhar para a câmera e dirigir-se diretamente ao espectador é a melhor maneira

16 O artigo de Baudry refere-se a película do filme como lugar em que opera a inscrição da câmera.

Atualmente, poucos filmes são realizados com rolos de película cinematográfica, já que convivemos com a possibilidade e facilidade da realização de gravações em câmeras digitais. Entretanto, indicamos que a troca das películas cinematográficas por informações digitais (bits) muda pouco nossa discussão. Talvez poderíamos investigar o que mudanças a digitalização da inscrição cinematográfica produziu em seus efeitos ideológicos.

de apagar a câmera do processo como máquina de mediação. Godard é subversivo, pois retorna à verdadeira magia do cinema que estava presente nos primeiros filmes dos irmãos Lumière e em O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903) de Edwin S. Porter, por exemplo. A cena final de O Grande Roubo mostra um close no rosto de um pistoleiro, que após alguns segundos encarando a câmera/espectador, saca uma pistola e “mata” o espectador. A lendária reação dos espectadores das primeiras exibições do filme dos irmãos Lumière, A Chegada de um Trem à Estação (L'arrivée d'un train à La Ciotat, 1896), não devem exatamente à este “recalque” da câmera cinematográfica? Segundo a lenda, os espectadores acreditavam que as imagens do filme eram reais, sendo assim achavam que o trem que vinha em direção à câmera iria atropelá-los causando um efeito de fascinação e terror ao mesmo tempo.

O apagamento da câmera opera no deslizamento característico do cinema entre realidade e ficção. O gênero documentário e subgênero de terror found footage17 joga com esse tipo de recalque, trazendo-o para a própria construção narrativa. Não recorrendo à discussão já apresentada sobre as relações entre ficção e documento, o ponto é que ambos os exemplos apoiam-se no fenômeno do “cinegrafista amador” como testemunha de um acontecimento. Testemunho verdadeiro ou não, a câmera fatalmente torna-se parte da diegese — noção proibida no cinema clássico. Em filmes como A bruxa de Blair (The Blair witch project, 1999) e Atividade paranormal (Paranormal activity, 2007) temos diversos recursos que sinalizam constantemente a presença da câmera como mediadora entre espectador e acontecimento. Péssima qualidade de imagem, instabilidade da câmera e do foco, ruídos invasores, pequenas marcações como quantidade de bateria e a indicação rec no canto da filmagem são alguns desses recursos.

A questão é deixar evidente que se trata de uma gravação, ou seja, que há uma câmera mediando espectador e a suposta realidade. Ainda assim, a impressão de realidade demanda a ocultação da câmera cinematográfica e, consequentemente, do aparelho de base como um todo. A estratégia é esconder a câmera cinematográfica,

17 São filmes que, em seu universo ficcional, foram filmados ao acaso, contendo registros não

programados da realidade que geralmente são testemunhos de uma situação de horror vivida pelo proprietário da câmera. A tradução ao pé-da-letra é “filmagens encontradas”, partindo do pressuposto de que, após a morte do dono das imagens, as mesmas passaram adiante, sendo encontradas por terceiros.

aquele trambolho de estúdios de cinema, em sua própria ausência. Isso significa que a troca de uma câmera especializada em fazer cinema por uma caseira e amadora busca ofuscar a noção de que os acontecimentos presentes no filme são encenações. Ao mesmo tempo em que temos uma câmera gravando os atores, substituindo e antecipando o espectador da mesma maneira que uma câmera cinematográfica tradicional, temos esta câmera amadora como marca da ausência de um instrumento constitutivo do aparelho de base. O que temos aqui é algo muito parecido com o apólogo de Zêuxis e Parrásios, em que — para vencer uma competição de pintura — o primeiro pinta uvas tão realistas que enganam os pássaros; e o segundo, no entanto, pinta uma cortina tão realista que engana o próprio Zêuxis — que acreditou ser tratar de uma cortina cobrindo o verdadeiro quadro (Lacan, 1964/2008, p. 104).

A câmera ainda inclui outra problemática apontada por Baudry referente à “ideologia inerente à perspectiva” (Baudry, 1970/1983, p. 387). A perspectiva no cinema fundamenta-se em um enquadre ideal, tal como a pintura renascentista. Mesmo quando, sob o efeito de uma diversidade de lentes que produzem alterações e distorções significativas na perspectiva, o modelo referencial sobrevive na forma de espaço centrado, fixo e monocular. Ou seja, os desvios de perspectivas, por mais inovadores que sejam, são desvios de uma proporção referenciada às dimensões de uma média tirada da pintura de cavalete (Baudry, 1970/1983, p. 387). A multiplicidade de pontos de vista — isto é, um espaço descontínuo e heterogêneo — pode até ocorrer no cinema, com o artifício de deslocamentos da câmera ou mesmo com o recurso da filmagem realizada com uma ou mais câmeras da mesma cena. Entretanto, esses recursos não são o suficiente para corrigir o caráter unificador da imagem em perspectiva18. O efeito ideológico não ocorre na representação em si, mas no sujeito/espectador antecipado por essa perspectiva. Este ponto a partir do qual os objetos representados se organizam é chamado de “fixo” ou “sujeito”.

Mais do que chamuscar a película cinematográfica, fazendo a inscrição das intensidades luminosas da realidade objetiva, a câmera constitui para o olho do sujeito uma demarcação do espaço, que não se limita ao dar-se-a-ver, mas — como descreve Lacan (1964/2008, p. 89) — trata-se de uma “perspectiva geometral”. Baudry busca

diferenciar esse “sujeito”, ponto principal da perspectiva, situado no nível do olho, do “sujeito do inconsciente” psicanalítico. Aproxima o sujeito da perspectiva com o sujeito enquanto “[...] veículo e lugar da intersecção das implicações ideológicas” (Baudry, 1970/1983, p. 388, n. 6), buscando diferenciá-los do sujeito enquanto função estrutural do discurso analítico:

A visão monocular, que é a da câmera, [...], suscita uma espécie de jogo de reflexão; fundada sobre o princípio de um ponto fixo a partir do qual os objetos visualizados se organizam, ela circunscreve em troca a posição do “sujeito”, o próprio lugar que este necessariamente deve ocupar. (Baudry, 1970/1983, p. 388)

Nesse trecho, Baudry faz uma referência direta à noção de estádio do espelho de Lacan, principalmente em termos de como a imagem especular pode organizar a realidade do bebê que se vê refletido no espelho ou no olhar da mãe. Dessa maneira, como vemos em Lacan (1949/1988), o sujeito do inconsciente precipitar-se-ia da unidade imaginária oferecida pelo reflexo. Entretanto, Baudry não se estende na questão do sujeito do inconsciente, sua ambição está em indicar que a construção dessa posição cria uma realidade alucinatória, assegurando metafórica e metonimicamente um sujeito ausente da cena:

Ao focalizá-lo [o sujeito], a construção óptica aparece como a projeção-reflexão de uma “imagem virtual”, criadora de uma realidade alucinatória. É ela que dispõe o lugar de uma visão ideal e desse modo assegura, metaforicamente (pelo desconhecido ao qual acena, sendo preciso lembrar aqui o lugar estrutural que o ponto de fuga ocupa) e metonimicamente (pelo deslocamento que parece operar: um sujeito é, ao mesmo tempo, um “em-lugar-de” e uma “parte-pelo-todo”) a necessidade de uma transcendência. (Baudry, 1970/1983, p.388)

Essa posição de sujeito antecipada e construída pelo aparelho de base cinematográfico será mais aprofundada quando abordarmos as duas últimas etapas da figura 1 (Tela/Projeção/Reflexão); mas, por enquanto, basta sedimentarmos as incidências da mediação realizada pela câmera e suas implicações. Tanto o efeito de ocultação do elemento mediador quanto o efeito de perspectiva ideal produzem o que Baudry definiu como “função ideológica da arte”, ou seja, a construção de sujeito transcendental. Isto é, o cinema estabelece para o espectador uma posição única e invejável, aquela em que se pode ver o mundo desde um ponto de vista ideal. Ideal porque apresenta ao sujeito um universo dotado de continuidade, movimento e sentido. Faz do espectador um olho que está presente na cena, vendo tudo do melhor ângulo

possível — mas, ao mesmo tempo, sem materialidade alguma. Trata-se de um sujeito etéreo, metafisico; um olho transcendente que, aparentemente, em nada influencia no acontecimento.