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Capítulo 3. Integração financeira e regulação bancária na zona do euro no período 1999-2016: andamento, crise e perspectivas

1. Visões teóricas sobre integração financeira e regulação.

1.1. Definições conceituais.

1.1.1. Movimentos de capitais.

Os movimentos de capitais, também chamados de fluxos financeiros, surgem com a transferência de propriedade de um ativo financeiro de um país para outro. Os instrumentos de capital envolvidos nessas transações podem ser ações, e outros vinculados ao patrimônio, ou então títulos de dívida como

letras, debêntures ou “bonds” governamentais. As transações são registradas na Conta Financeira do Balanço de Pagamentos de um país.

O canal pode ser o investimento direto externo (IDE), que é a aquisição por um não residente de parte ou totalidade de uma empresa, possivelmente uma grande parte das ações, em caráter não negociável. Pode ser também outro dos instrumentos de mercado, como investimentos de carteira ou portfólio, que se referem à aquisição de títulos por não residentes, sejam eles os estoques de capital de empresas (pequena parte das ações), ou também títulos de dívida, pública ou privada, compra de moeda estrangeira e de outros papéis, geralmente com elevada liquidez, negociados em mercados secundários por empresas não financeiras. Outro canal pode ser o investimento bancário, isto é, participações de bancos estrangeiros ou de indivíduos em negócios e depósitos bancários, bem como a concessão de crédito a indivíduos, empresas e governos estrangeiros por bancos nacionais. Há, ainda, o canal dos investimentos não bancários, de agentes como fundos de pensão e seguradoras e, por fim, o das transferências governamentais oficiais.

A maturação dos movimentos de capitais refere-se ao período de tempo em que o dinheiro permanece investido, sendo as operações de curto prazo aquelas com menos de um ano, e operações de longo prazo aquelas com pelo menos um ano, mas geralmente de três anos ou mais. Médio prazo pode abranger de um a dois anos.

Quadro 1.1. Resumo simplificado das contas do balanço de pagamentos.

Fonte: BIS. Elaboração própria. Bens Serviços Transferências Unilaterais IDE Portfólio Investimento bancário Investimento não bancário Transfrências oficiais Entradas líquidas de capital (sinal +) Saídas líquidas de capital (sinal -) Erros e Omissões Variação de Reservas SALDO ZERO Conta Financeira Conta Corrente

Os fluxos financeiros brutos são de volume consideravelmente alto, de modo que as transações da Conta Financeira do Balanço de Pagamentos (tabela 1.1) são ordenadas de acordo com o critério líquido, isto é, significa que as retiradas de capital dos investidores não residentes são subtraídas das entradas, assim como as retiradas de capital dos investidores residentes feitas no exterior são adicionadas e assim por diante. Cabe mencionar duas nomenclaturas comumente usadas: “inflows” ou influxos de capitais são movimentos de entrada num país feitos por não residentes, enquanto que uma “fuga de capitais” é um movimento de saída de um país feita por residentes, os “ouflows”. Recentemente, o BIS (TARASHEV ET AL.; 2016, p.15) demonstrou que a intensidade dos fluxos financeiros brutos revelaram vulnerabilidades no sistema internacional.

Para “liberalização de capitais” utilizaremos a conceituação geral de Bakker (1996, p.2), que a denota como a flexibilização ou a abolição das restrições e dos controles administrativos das transações financeiras entre os países, de acordo com principais tipos:

 controles administrativos sobre os movimentos transnacionais de capitais, principalmente os procedimentos de aprovação. Controles de câmbio, por exemplo, tratam de proibir ou restringir quantidades de moeda estrangeira ou de moeda local que pode ser negociada ou comprada por governos e bancos centrais;

 sistemas de taxa de câmbio dupla ou múltipla;

 tributação específica dos fluxos financeiros internacionais ou dos rendimentos resultantes de carteiras externas;

 outras restrições ou regras de efeito indireto, tais como pagamentos de juros sobre contas de depósitos de não residentes, exigências de reservas discriminativas entre residentes e não residentes, e as provisões para a posição externa líquida dos bancos comerciais.

Quadro 1.2. Motivos para controles de capital.

Fonte: Bakker (1996, p.22). Elaboração própria.

Manter taxas de juros baixas Proteger as poupanças domésticas Evitar desvalorização da taxa de câmbio Proteger o mercado de capitais doméstico Preservar estabilidade dos preços domésticos

Evitar valorização da taxa de câmbio

Saídas

Entradas Proteção à indústria doméstica

Os controles podem afetar diferentes canais dos movimentos de capital, de acordo com a maturação e a direção, apresentados na tabela 1.2. Bakker (1996; p.22) entende que controles de curto prazo costumam refletir preocupações de governos com os movimentos especulativos e os impactos sobre as taxas de câmbio, juros e inflação em seus países. Os controles de longo prazo, por sua vez, refletiriam, para o autor, preocupações com a competitividade do setor industrial e com o setor financeiro.

Os canais bancários podem apresentar diferentes prazos de vencimento de acordo com o tipo de operação. Os canais e a maturação diversificada dos fluxos financeiros ampliam as condições de financiamento do comércio exterior. Nesse sentido, Cohen (1996, p.269) tem uma ideia importante: quanto mais os ativos financeiros podem ser considerados substitutos uns dos outros, maior é o grau de mobilidade de capitais.

1.1.2. O ambiente regulatório.

Existem duas acepções econômicas do termo “regulação” e o uso delas pode ser relativizado de acordo com uma sistematização de visões teóricas, o que será visto mais adiante tendo por referência, inclusive, uma discussão do cunho jurídico do termo1. Uma primeira reflete a interpretação anglo-saxã de referencial de regras e organização jurídico-político no campo da economia, traduzido do inglês “regulation”, dando a entender o controle e a vigilância estatal a serem exercidos no ambiente econômico. Isto está próximo do sentido de “regularizar”, que é estar de acordo com a regra, ou no sentido de “regulamentar”, que é aqui entendido como a aplicação de regras pelo poder executivo do governo. A segunda acepção, muito mais densa, indica regulação econômica como “mediação” das relações econômicas, que não estão isoladas e são, basicamente, relações sociais, sob a égide estatal em termos gerais, mas não somente, porque as instituições econômicas como a moeda e os mercados estão intrinsecamente ligadas às outras instituições sociais como o Estado. Tal acepção será retomada mais adiante no item 1.4.2.

Inicialmente, apresentamos a acepção anglo-saxônica para tratar da “regulação financeira” como a existência de regras, ou mesmo como sinônimo da sua

criação e implantação, isto é, a “regulamentação”, ou ainda a “regularização” do sistema financeiro, que é a adequação desse sistema às regras de um determinado acordo. De acordo com Bakker (1996, p.2), a “regulação” (“regulation”) afeta a legislação financeira ou o conjunto de regras sob uma jurisdição comum, que trata principalmente do âmbito nacional. “Desregulação financeira” (“financial deregulation”) significa, para o autor, a flexibilização ou a abolição de regras nos mercados e instituições financeiros nacionais. Assim, indica a retirada de restrições às operações realizadas entre agentes financeiros em um país, de modo a facilitá-las e a incrementar seu volume. No entanto, se considerada a possibilidade de discutir o ambiente internacional, podem ser suscitadas algumas questões. Quando os países impõem regras sobre os movimentos de capitais internacionais, sejam controles e/ou restrições, estão fechando seus sistemas financeiros e, portanto, delimitando o alcance de seu aparato regulatório às suas fronteiras. Se os movimentos de capitais forem liberalizados, e se regras financeiras iguais forem aplicadas a países diferentes, as fronteiras nacionais deixam de ser relevantes do ponto de vista dos agentes financeiros, como os bancos, porque eles operarão sob a mesma lei, como se estivessem “no mesmo país” nesse quesito.

Quando há um ambiente regulatório comum, os agentes financeiros participantes desses mercados formam o chamado centro financeiro “onshore”. Num centro “offshore”, ao contrário, bancos e outros agentes regulados por um determinado aparato prestam serviços financeiros a não participantes, contraindo e ofertando empréstimos de acordo com outras regras, financiados por passivos de bancos mutuantes ou junto a participantes diversos do mercado também fora do aparato. Trata-se de um centro no qual os serviços financeiros também podem assumir a forma de depósitos de pessoas físicas e investimentos em mercados financeiros originados igualmente fora do ambiente regulatório em questão (IMF; 2000). A principal característica é que a regulação nos mercados “offshore” é diferente daquela dos países de origem dos investimentos bancários, sem uma entidade soberana claramente definida. Combinando as definições de Bakker para o caso em que países pretendem criar um acordo de harmonização do ambiente regulatório, tem-se, de um lado, a “regulação financeira internacional” como a promoção, por órgãos internacionais, da garantia e do reforço de regras para os movimentos

transnacionais de capitais. E de outro, classifica-se um ambiente financeiro liberalizado como desregulado quando ele prescinde de um aparato regulatório harmônico entre os membros, e isto inclui os referidos mercados “offshore” e mercados de capitais “à margem” da regulação como, por exemplo, o sistema de “shadow banking” (ou sistema bancário na sombra), no qual intermediários financeiros não bancários atuam de forma semelhante, porém sem garantias e exigências reguladas pelo sistema bancário tradicional.

Figura 1.1. Movimentos de capitais liberalizados num ambiente financeiro desregulado.

Legenda.

Fonte: Elaboração própria.

Um ambiente financeiro internacional liberalizado indica a retirada de controles e/ou restrições a canais, direção e maturação dos movimentos de capitais entre países, sendo desregulado se não há um conjunto de regras claras e definidas, como na figura 1.1. Os fluxos financeiros liberalizados entre países

assemelham-se àqueles à margem, posto que ambos não estão regulamentados por uma entidade soberana claramente definida.

Figura 1.2. Homogeneização regulatória de movimentos de capitais.

Legenda.

Fonte: Elaboração própria.

Por outro lado, a existência de regulação internacional implica num ambiente financeiro em que há um conjunto de regras claras e definidas por alguma entidade soberana, estabelecendo controles e/ou restrições à circulação de capitais entre agentes de diferentes países de um acordo, sendo tão mais branda conforme seja mais livre a movimentação de capitais, e tão mais rígida conforme existam mais controles. Na figura 1.2, mostramos que as fronteiras nacionais de A e B “aproximam-se” porque os fluxos financeiros entre seus agentes estão regulamentados pela entidade soberana, diferenciando-se claramente daqueles fluxos à margem.

1.1.3. Integração financeira.

Entretanto, a integração de um conjunto de países é um fenômeno mais complexo. Não se trata apenas de participar de um acordo, ou mesmo de uma união monetária ou ainda política. Do ponto de vista financeiro, integrar países ou regiões é mais do que simplesmente liberalizar o movimento de capitais entre eles, porque a ocorrência de volumosos fluxos financeiros, apesar de conectar economicamente regiões e mercados, mesmo profundamente, não necessariamente cria uma tendência para que reduzam suas diferenças.

Uma integração econômica regional pode se dar em vários níveis, como bem assinala Wolf (2011, pp.18-19): de uma “zona de comércio preferencial” ou de “livre comércio”, na qual se reduzem ou mesmo se eliminam restrições e barreiras comerciais, passando por uma “união aduaneira” onde há acordo alfandegário e política comercial unificada no bloco, até atingir o chamado “mercado comum”, no qual não existem impedimentos às “quatro liberdades econômicas fundamentais”, quais sejam, a de movimentação de bens, a de estabelecimento de serviços, a de circulação de pessoas (o fator trabalho) e a de capitais. Uma união monetária, por sua vez, exige minimamente a harmonização das políticas econômicas porque os países membros renunciam à sua soberania em nome da atuação de uma autoridade monetária supranacional comum, donde emanam as regras para o estabelecimento das políticas cambial, fiscal e monetária.

Antes de ocorrer uma união propriamente dita, é possível desenvolver uma “cooperação financeira”, no sentido de criar mecanismos de auxílio mútuo entre membros de um acordo ou mesmo entre países com boas relações econômicas para se auferir o bem comum. A cooperação financeira internacional é um movimento de Estado que se ocupa de criar instrumentos comuns nos mercados de capitais de países diferentes com vistas a favorecer tanto as decisões de investimento quanto o desenvolvimento regional. Organismos internacionais como a UNCTAD reconhecem que, após o colapso do sistema monetário de caráter global de Bretton Woods, a “cooperação regional no âmbito financeiro”, e mesmo no monetário, surgiu como uma forma de integrar comercialmente os países e estabilizar taxas de câmbio (UNCTAD; 2007, p.120). Muitos mecanismos podem evoluir para arranjos financeiros regionais que almejem mais do que apenas complementar ou, em algumas

circunstâncias, substituir fontes multilaterais de financiamento do balanço de pagamentos. Destacam-se as propriedades de bancos regionais e sub- regionais de desenvolvimento, e a possibilidade de mercados de títulos regionais tornarem-se uma fonte estável de financiamento para empresas, bancos e entidades públicas, ao oferecer oportunidades de investimento a agentes regionais, incluindo fundos de pensão (IBID.).

A integração financeira remete à dimensão dos capitais. Ela não está necessariamente implícita na união monetária porque países membros dessa união podem ter mercados de capitais independentes, isto é, obedecendo a diferentes regras, e assim os indicadores macroeconômicos podem resultar discrepantes. O sistema bancário de cada país obedece a uma regulação nacional, assim como a jurisdição sobre o mercado de capitais. Numa zona em integração financeira, empresas podem se organizar em contextos locais sob a coordenação de câmeras de compensação locais, também concebidas como bancos públicos locais, responsáveis por calcular e compatibilizar a relação entre pequenas e médias empresas, no que se entende por “integração regional” (HERZ; HOFFMAN; 2004).

Portanto, “integrar” tais membros num mesmo bloco implica em cooperar politicamente de alguma forma para que surja uma tendência de que os países se tornem menos diferentes. Dessa necessidade de cooperação podem surgir propostas como uma união bancária, que é a unificação de regras e até de práticas transnacionais, ou ainda uma união de mercados de capitais, que é colocar sob a mesma jurisdição todos os agentes financeiros e todas as operações. Em última instância, a integração financeira pode exigir alinhamento tão profundo de políticas e regras de maneira a surgir uma proposta de união política, na qual se estabelece um Estado único e soberano que harmoniza e mesmo padroniza políticas econômicas e orçamentárias.