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DEFINIÇÕES POSSÍVEIS E ASPECTOS HISTÓRICOS ACERCA DOS RELATOS DE VIAGEM

Desde a chegada dos europeus à América em fins do século XV e com as sucessivas expedições de exploração e conquista destes novos territórios no século XVI, os relatos de viagem se multiplicaram e sua recepção na cultura letrada do Ocidente se fez perceber de forma inédita em diversas áreas do saber153. Disto, entretanto, não se deduz que estes textos não tiveram importância e repercussão nos períodos anteriores à época da expansão marítima. Ainda que difusos em outras formas textuais da Cultura Ocidental, alguns de seus aspectos remontam autores da Grécia Antiga como Homero em seus poemas épicos ou, em uma vertente mais próxima de um conteúdo factual, Heródoto em suas Histórias. No mundo medieval, as peregrinações, as missões de expansão da fé cristã, o comércio e a busca por conhecimento acerca dos povos pagãos da Ásia e da África estiveram entre os principais fatores de motivação das viagens então realizadas154. Nas décadas que sucederam a chegada

de Colombo às Índias Ocidentais, os textos de viajantes medievais foram as bases para as primeiras projeções e compreensões daquilo que se encontrou no Novo Mundo. Os territórios, paisagens, plantas, animais, povos, costumes e religiões ali encontrados foram, em um primeiro momento, associados a tudo que se sabia ou se imaginava acerca dos reinos asiáticos e africanos. Na confluência entre, de um lado, experiências e referências já acumuladas sobre

153 Para aspectos gerais sobre a escrita e difusão de relatos de viagem após a chegada dos europeus à América ver: SHERMAN, William H. Stirrings and searchings (1500-1720). In: HULME, Peter; YOUNGS, Tim (ed.).

The Cambridge Companion to Travel Writing, pp. 17-36; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. 1. Das notícias do

Novo Mundo. In: A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII, pp. 13-59; Para ver mais sobre relatos de viagem escritos por autores residentes ou nascidos na América: BENDIXEN, Alfred; HAMERA, Judith (ed.). The Cambridge Companion to American Travel Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

154 GIUCCI, Guillermo. 1. Condenação e Redenção; 2. Maravilhas do Oriente. In: GIUCCI, Viajantes do

Maravilhoso, pp. 23-98. Para ver mais sobre viagens em períodos anteriores à chegada dos europeus à América:

CASSON, Lionel. Travel in the Ancient World. London: George Allen and Unwin, 1974; MARTELS, Zweder von. Travel fact and travel fiction: studies on fiction, literary tradition, scholarly discovery, and observation in travel writing. Leiden: E. J. Brill, 1994; FRIEDMAN, John Block; FIGG, Kristen Mossler (ed.). Trade, Travel

and Expoloration in the Midle Ages: An Encyclopedia. New York: Routledge, 2000; HALL, D. J. English Medieval Pilgrimage. London: Routledge and Kegan Paul, 1965; WHALEN, Brett Edward. Pilgrimage in the Middle Ages:A Reader. Toronto: University of Toronto Press, 2011.

outras localidades e, de outro, do esforço de construção de um conhecimento sobre aquelas realidades desconhecidas aos poucos os viajantes perceberam as especificidades deste continente, desvencilhando-o das tradições que não serviam para explicá-lo. Como veremos adiante, os séculos XVI e XVII não alteraram apenas a história das viagens, mas também a dinâmica de edição e publicação dos textos que as narravam.

Para uma definição que seja abrangente o suficiente de forma que contemple a diversidade de obras que usualmente são designadas por termos como “relatos de viagem”, pode-se compreender que esta forma textual inclui todos os textos cuja estrutura e conteúdo são marcados pela narrativa da locomoção dos personagens envolvidos ou que sejam resultado indireto deste movimento. Isto não significa, necessariamente, que todo relato deste gênero contenha a narrativa dos eventos de uma viagem ou de tudo aquilo que aconteceu aos viajantes que protagonizaram o feito. O relato de um viajante pode se apresentar por meio de notas, descrições ou reflexões sobre aquilo que foi visto e presenciado, mesmo quando sua preocupação central não seja o trajeto ou os eventos no decorrer da viagem. Esta ampla acepção da expressão é, sobretudo, útil para estudos que contemplam relatos de viagem em diferentes épocas e que tem o intuito de pensar a alteração desta forma textual no decorrer dos séculos, tal como Percy Adams em seu clássico e ainda pertinente Travel literature and the

evolution of the novel (1983)155. Na obra – que marcou um novo interesse pelos relatos de viagem nos meios intelectuais –, Adams, deliberadamente, não propõe uma definição objetiva e sintética do que consiste um relato de viagem, sugerindo que o leitor a compreenda no decorrer de sua argumentação. Entretanto, é possível perceber que o autor partilha desta definição abrangente tendo em vista a multiplicidade de textos com que lida e a forma como os classifica e utiliza em comparações com o romance. Mais adiante demarcaremos algumas especificidades dos relatos de viagem na Época Moderna e abordaremos a relação deste gênero como a difusão de um conhecimento sobre a América neste período.

O caráter diverso das obras que compõem este conjunto de textos não impede que algumas questões de ordem geral sejam formuladas com base em elementos que se repetem ou que são comuns em muitas destas narrativas. Em The Witness and the Other World (1983), Mary Campbell reflete sobre alguns dos elementos literários que interessam de forma geral para a análise de relatos de viagem e que levantam questionamentos importantes para a compreensão do gênero. Segundo a autora, o relato do viajante recorrentemente busca "a tradução da experiência em narrativa e descrição, do estranho em visível, da observação

em construção verbal do fato"156. Lidando com o desconhecido, ou com a atualização e melhoramento do que se sabia acerca de realidades já conhecidas, o viajante parte de seu vocabulário e de suas referências culturais para pensar objetos que nem sempre são contemplados em sua linguagem. A despeito deste desafio, um dos aspectos que em diferentes épocas se repete nestes textos – tal como no romance – é o empenho em se afirmar a verdade da narrativa. Sendo ficcional ou factual, empírico ou fantástico, o relato do viajante reivindica seu estatuto como um testemunho sobre o que se presenciou, se colocando como uma acurada representação do real157. Estes padrões, contudo, sempre devem ser pensados em uma temporalidade, pois tanto o viajante como a realidade observada por ele se alteram durante os séculos e demandam uma demarcação histórica. Ademais, os fatores que condicionaram a relação entre os viajantes europeus e os contextos representados em seus textos variaram não só de acordo com as conjunturas políticas e econômicas da colonização, mas também em consonância com as transformações da moralidade, da ciência, da escrita, da leitura e de outros fatores culturais que estão em constante transformação e que orientaram as possibilidades de compreensão daquilo que é distinto e desconhecido158.