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Na terceira e quarta décadas do século XVIII a prosa de ficção alcançou uma grande repercussão por meio dos romances de Defoe, sobretudo Robinson Crusoe e Moll Flanders. O autor continua entre os nomes de destaque da ficção nas décadas que sucedem sua morte, mas por volta de 1740 Samuel Richardson e Henry Fielding passam a compor junto dele os pilares da tradição do romance setecentista que ainda conheceria grandes escritores como, Eliza Haywood, Laurence Sterne, Tobias Smollett e Fanny Burney. Entre o início do setecentos e o lançamento dos primeiros romances de Richardson e Fielding – período que contempla a produção ficcional de Defoe – a publicação de prosa de ficção na Inglaterra girava em torno de sete títulos anuais, número que começou a se multiplicar na quinta década e que ao fim do século somava aproximadamente quarenta obras por ano 129. O gênero paulatinamente passou

a ser praticado abertamente por homens de formação clássica, o que não acontecia na época de Defoe. Se até então a circulação de obras de prosa de ficção na Inglaterra ocorria majoritariamente por meio de traduções e adaptações dos títulos franceses, o romance setecentista não só se difundiu entre o público inglês, como também atravessou o Canal da Mancha em obras traduzidas que ganharam o gosto do público na França130.

A despeito da popularidade que esta forma literária alcançou no decorrer do século, sua ascensão foi acompanhada pela resistência por parte de alguns letrados conservadores, autores ligados às convenções e aos gêneros tradicionais e que estavam percebendo a mudança no gosto e no consumo da literatura. No final da década em que Defoe publicou seus romances, o crítico literário e poeta, Alexander Pope, lançou The Dunciad (1728), um longo poema satírico que atacava simultaneamente os Whigs radicais, as controvérsias político- religiosas que ainda ocorriam na Grã-Bretanha setecentista e, acima de tudo, a transformação no gosto e na produção artística dos ingleses que, segundo ele, estavam cada vez mais marcados por falta de requinte, ignorância e imoralidade. Este ataque se volta tanto para as

128 BRIGGS, História social de Inglaterra, pp. 160-161. 129 WATT, A ascensão do romance, p. 252.

novas tendências literárias de grande circulação, como o romance, quanto para uma transformação sociológica que se desdobra no decorrer do século XVIII no que tange o trabalho dos escritores. Com o desenvolvimento do mercado editorial e uma gradual desvinculação entre a produção literária e a influência da aristocracia, os livreiros e editores passam a ter maior poder de intervenção tanto na escrita quanto na percepção das demandas de leitura. Se por um lado havia uma maior liberdade criativa por parte do autor que não estava condicionado pelas convenções aristocráticas, por outro as obras encomendadas por livreiros ou editores tinham de levar em consideração o gosto do público131. Em The Dunciad, uma das principais críticas de Pope é direcionada aos autores por ele denominados mercenários, pois escrevem apenas por dinheiro, sem uma grande preocupação com a qualidade e a sofisticação literárias. Para o autor, grande defensor das referências clássicas e da formação tradicional, o problema não era a escrita remunerada, mas a adequação da escrita aos interesses daqueles que pagavam uma quantia maior de dinheiro132. Na obra, os ataques mais diretos a Defoe são relativos a seus posicionamentos políticos e à qualidade da sua escrita, estando o romancista incluído entre os autores desta literatura vista como menos sofisticada e desvinculada das convenções literárias tradicionais, tendência repudiada por Pope no poema133.

As transformações literárias resultantes da grande difusão do romance ocorrida na primeira metade do século também foi percebida pelos letrados da época que não deixaram de se posicionar sobre as novas concepções de enredo e personagem. Em 1750, no quarto número do periódico The Rambler (1750-1752), Samuel Johnson, um dos mais destacados poetas e críticos literários de meados do século XVIII, comenta sobre a nova tendência da ficção surgida nas décadas anteriores em um ensaio em que descreve e se posiciona diante deste novo ramo da escrita:

As obras de ficção, com as quais a presente geração, particularmente, tem se deleitado, são aquelas que exibem a vida em seu verdadeiro estado, diversificado apenas por acidentes que diariamente acontecem no mundo e influenciada por paixões e qualidades que realmente podem ser encontradas em conversas com a humanidade.

[...] Estes livros são escritos principalmente para os jovens, os ignorantes e os desocupados, para quem servem como leituras de conduta e introduções para a vida. Eles são o entretenimento de mentes desprovidas de ideias e, portanto, facilmente suscetíveis a serem impressionadas; sem uma base de princípios e, portanto, facilmente levadas pelo fluxo da imaginação, sem o

131 HUNTER, The novel and social/cultural history, p. 24.

132 POPE, Alexander. The Dunciad. With notes Variorum, and the Prolegomena of Scriblerus. London: Lawton Gilliver, 1729.

aprendizado da experiência e consequentemente abertas a qualquer sugestão ou relato parcial134.

Algumas décadas mais tarde, Hester Thrale, biógrafa e amiga do crítico, em seu Anecdotes of

the Late Samuel Johnson (1786) relatou que, em uma de suas conversas, o escritor indagou:

“Houve já qualquer coisa escrita por um simples homem que foi por mais tempo desejada pelos seus leitores, exceto por Dom Quixote, Robinson Crusoe ou Pilgrim’s Progress?” 135.

Precisar se Johnson realmente proferiu tal questionamento reproduzido por Thrale é algo menos pertinente do que perceber a repercussão do primeiro romance de Defoe, importância ressaltada pela autora depois de mais de seis décadas do lançamento do livro.

O posicionamento de Pope em The Dunciad e o parecer de Johnson acerca das obras de ficção lidas pela nova geração de jovens nos são importante em três aspectos principais. Primeiramente, demonstram a repercussão desta nova tendência da ficção que se fazia popular entre os jovens leitores a ponto de, já no fim da década de 1720, preocupar os autores conservadores que viam nestes textos uma ameaça ao bom gosto e à moralidade. Se a opinião destes contemporâneos não expressa este processo em termos quantitativos, ela evidencia a difusão de uma nova forma de escrita que questiona os gêneros predominantes desde o século anterior. As falas destes críticos, em segundo lugar, confirmam a busca dos jovens por estes textos que lhe serviam de referenciais de conduta e introdução para sociabilidade nas cidades, seja nos negócios, nos relacionamentos, na religião ou em tantas outras esferas da vida urbana. A despeito de não serem bem vistas pelos literatos de formação clássica, estas obras cumpriam importante papel de instrução e orientação para este novo público composto por mercadores, trabalhadores urbanos, mulheres de diferentes estratos sociais, servos e outros grupos que apenas tiveram acesso ao letramento nas décadas anteriores. Por fim, os referidos textos dos críticos literários explicitam a percepção dos coetâneos acerca da verossimilhança da prosa de ficção setecentista que, nas palavras de Johnson, representa a “vida em seu verdadeiro estado”. Este, por sua vez, posicionava-se contra os personagens mistos que contemplavam virtudes e vícios tal como homens verdadeiros e comuns. Percebe-se, portanto,

134 No original: “The works of fiction, with which the present generation seems more particularly delighted, are such as exhibit life in its true state, diversified only by accidents that daily happen in the world, and influenced by passions and qualities which are really to be found in conversing with mankind. […] These books are written chiefly to the young, the ignorant, and the idle, to whom they serve as lectures of conduct, and introductions of life. They are entertainment of minds unfurnished with ideas, and therefore easily susceptible of impressions; not fixed by principles, and therefore easily following the current of fancy; not informed by experience, and consequently open to every false suggestion and partial account.” (tradução nossa). JOHNSON, Samuel; CHALMERS, Alexander. The Rambler: In four volumes. Philadelphia: J. J. Woodward, 1827, pp. 56-57. 135 No original: “Was there ever yet any thing written by mere man that was wished longer by its readers, excepting Don Quixote, Robinson Crusoe, and the Pilgrim’s Progress?” (tradução nossa). HILL, George Birkbeck N. Johnsonian Miscellanies, vol. 1. Oxford: Clarendon P, 1897, p. 332.

que esta radical semelhança com a vida cotidiana era repudiada pelos autores conservadores, pois estes textos poderiam incitar a má conduta, o pecado e a criminalidade caso fossem lidos por um jovem sem uma educação adequada. Ainda que estas leituras tenham sido condenadas por autores de renome, a popularidade do romance setecentista e sua verossimilhança não só o distanciaram da prosa de ficção anterior como também permitiram que este gênero em ascensão cumprisse um papel instrutivo como referencial de conduta para os jovens leitores.