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CAPÍTULO 1 LUDICIDADANIA COMO RECURSO DE PRÁTICA EDUCATIVA

1.3. Definindo autoconhecimento

O autoconhecimento é recurso básico para uma prática educativa, ao mesmo tempo singular e plural, que pretenda incluir, intencionalmente, a ludicidade e a cidadania, na medida em que ele é o suporte para a construção/assunção da identidade, para o acolhimento da diferença e para o dar-se conta do que é um e do que é o outro. O educando, assim como o educador, é oriundo de um contexto; este contexto precisa ser, minimamente, conhecido para que o processo educativo aconteça de uma maneira mais criativa. É aí que entra a necessidade do autoconhecimento: a busca da inclusão, no cotidiano, dos elementos que compõem as múltiplas realidades dinâmicas, superpostas, fragmentadas e não fragmentadas.

“O autoconhecimento pode ser visto como um passeio por territórios individuais e coletivos, o espaço de si mesmo e o espaço do jogo das relações sociais” (OLIVEIRA, 2002, p.78). Considerar a possibilidade de que os fatos cotidianos (violentos, suaves, alegres, cruéis,

dispersos, consistentes, instáveis, seguros, delirantes, luminosos, sombrios...) também podem ser espelhos de nós, pode nos abrir cadeados, janelas e portas para o reconhecimento de alguns dos muitos “eus” e “outros” que nos habitam. Inclusive uma dimensão de silêncio, tão pouco acessível na lógica de velocidade consumista na qual vivemos atualmente. Certa vez, numa coletânea do Gepel, apresentei a seguinte definição:

O autoconhecimento pode ser entendido como um contínuo desenvolvimento da observação participante (a mais integrada possível, dentro e fora dos condicionamentos) a respeito do próprio pensar, sentir e agir – sem proposições de metas finais, mas, em processos cíclicos espiralados. Praticar o autoconhecimento é dispor-se a não ocultar de si mesmo os próprios sentimentos de raiva, inveja, ambição, medo, culpa, prazer, sucesso, bondade, compaixão...Trazer para o consciente as questões relativas à própria sexualidade, espiritualidade, morte, marcas da infância, ancestralidade, traições, necessidade de aprovação, e alguns outros assuntos aprisionados nos “arquivos-mortos” das gavetas mentais e corporais, socialmente condicionadas (OLIVEIRA-W, 2000, p.72).

Se prestarmos atenção, o primeiro ambiente de observação que dispomos é o próprio corpo, somos nós mesmos. O nosso corpo fala, registra e transmite a nossa história, interage com os outros “ambientes” humanos, físicos e simbólicos. Segundo Stanley Keleman (1992, p.71), o estudo da forma humana revela sua história genética e emocional: “a forma reflete a natureza dos desafios individuais e como eles afetam o organismo humano”. A partir de um extenso estudo do corpo e dos sentimentos humanos, ele demonstra “como a emoção e a lógica se formam como respostas ao sofrimento e se tornam um modo de pensar e sentir que diminui a dor e incentiva a sobrevivência” implicando a constituição de determinada forma. Acentua-se que a herança genética e as relações sociais desempenham papel crucial neste processo. “Ser um indivíduo é seguir os impulsos da própria forma e aprender suas regras únicas de organização; a forma somática expressa aquilo que vivenciamos, nossas satisfações e desapontamentos”(KELEMAN, 1992).

Para facilitar a compreensão de sua teoria, ele apresenta diversas estruturas didáticas, onde são vinculadas posturas corporais com estados emocionais; no entanto, ressalva para a não existência de qualquer modelo, seja somático ou psicológico, a ser seguido - é tudo uma questão de se conhecer e continuar investigando. Esta última observação é essencial para evitar a armadilha dos rótulos corporais e para ampliar a tolerância com o processo de crescimento de cada um de nós.

O autoconhecimento talvez possa propiciar a percepção de nossa singularidade e de nossa pluralidade: a diversidade de heranças dos grupos humanos que carregamos dentro de nós; pode permitir e estimular cada criança, adolescente ou adulto, construir, assumir e/ou ressignificar sua identidade singular como um recurso saudável para a convivência consigo e com o outro. E, aqui, não há qualquer sentido moral na expressão “saudável”, posto que algum nível de “não saudável” é intrínseco ao processo de convivência.

Dentro deste ponto de vista, a realidade (enquanto sucessão e simultaneidade de acontecimentos) nunca está errada, ela é fruto de um jogo de forças que atende a determinados interesses subordinados ao instável acordo de poder hegemônico (seja em nível individual, grupal, social, político, econômico, cultural, espiritual....); o dar-se conta do próprio lugar, histórico, neste jogo de forças, pode possibilitar autonomia de escolha de quais lugares ocupar, de quais compromissos –instáveis- assumir e de quais perspectivas tentar seguir/acompanhar o fluxo do jogo. “Deste local, podemos descobrir muita coisa a respeito de nossa auto-imagem, ou seja, da pessoa que pensamos ser (RAINWATER, 1987, p.126). Considerando esta premissa, o autoconhecimento não possui qualquer vínculo como os conceitos correntes relacionados com auto-ajuda, voltados para solucionar ou fugir de problemas específicos. A noção de certo e errado passa a ser subordinada às mensagens resultantes da expressão, o mais direta possível, do jogo da vida.

O educador que pratica o autoconhecimento pode expressar-se mais direta e claramente, estimulando que o educando também o faça – afinando, cada vez, mais o próprio “instrumento” de percepção que confronta motivações, meios, obstáculos, produtos e reavaliações. Isto possibilita lidar com a transgressão de uma maneira mais humana, menos autoritária ou permissiva; o descumprimento de acordos assumidos previamente pode ser visto, na maioria das vezes, como mensagens internas de nosso lado menos visível – a sombra, na terminologia junguiana.

Outra importante fonte para que nos situemos no contexto do educador, da sua relação consigo mesmo e com o educando é a obra de Piaget. Segundo Iris Goular, ele nos “ajuda a compreender a seqüência de desenvolvimento do modelo de mundo que uma criança vai construindo ao longo de cada período de sua vida; nos ajuda a compreender os “erros” cometidos pelas crianças, percebendo-os como resultados de uma maneira particular de interpretar a realidade” (GOULART, 1983, p.16). Poder considerar as trajetórias que compreendem os “erros” e lacunas na própria vida, e na de outrem, representa significativos passos para a percepção das múltiplas realidades que nos rodeiam.

Pode-se até abordar a transgressão às regras, elemento cada vez mais presente nas relações educativas atuais, através da abertura para a percepção dos motivos que a originam e, em alguns casos, do humor inerente ao ato. Ampliando, redirecionando e diversificando o vetor unidirecional de indignação contra a transgressão e o transgressor, freqüentemente presente nos acontecimentos que envolvem traições,rupturas, trapaças e malandragens.

Segundo Alan Chinen, o humor do “malandro transgressor, ao ridicularizar autoridades e dogmas, pode ter como finalidade romper convenções rígidas (freqüentemente vinculadas ao patriarcalismo), impondo atitudes mais criativas” (1998, p.80). Nesta abordagem, a “malandragem” é, nitidamente, diferenciada da atividade criminosa, pois nesta última, na maioria das vezes, há um móvel essencialmente egóico que busca um tipo de vantagem pessoal que se dispõe a negar o direito à existência de aspectos do “outro”. Para o educador que não pretende ser herói, salvador de almas ou palmatória do mundo – e que pode, ou pretende, incluir, junto com o rigor disciplinar, o reconhecimento do direito à malandragem, à preguiça, à transgressão -, as observações de Chinen podem trazer reflexões bastante instigadoras (posto que seu alcance é muito abrangente, mesmo tendo sido, originalmente, dirigidas para homens em crise da meia idade).

Outra característica do autoconhecimento, bastante interessante para o campo educacional, é a ressonância, ou melhor a participação ressonante. O indivíduo que se dedica, minimamente, ao conhecimento dos próprios mecanismos de atuação no mundo (nada a ver com culpas ou “deverias”), pode perceber, mais diretamente, quais movimentos sociais ressoam em seus próprios pontos de atração. Isto é, a participação e graus de envolvimento com os acontecimentos cotidianos tendem a ser menos compulsivos e menos determinados por causas externas. A sensibilidade para a própria ressonância pode permitir o desmascaramento de muitos condicionamentos individuais e sociais, é um bom instrumento para mapear discurso e percurso nas relações de poder/autoridade.

Vale advertir que, no campo do autoconhecimento, se encontram muitos aspectos onde Educação e Terapia se tocam; no entanto, é indispensável manter a distinção de papéis: a terapia lida com forças regressivas (pretendendo compreender as motivações para se chegar ao presente) e a educação lida com forças progressivas (pretendendo compreender o presente e construindo o futuro). Independente disso, para ambos, o educador e o terapeuta, a consciência da jornada pessoal tem um reflexo acentuado sobre suas atividades.

Todavia, há que se ter ciência que a jornada não é um caminho regular e único. Ela tem nuances, idas e vindas, avanços e recuos, alegrias e tristezas, certezas e

desânimos, buscas e desistências. Defrontar-se tanto com os monstros do caminho quanto com as glórias a que se tem direito não são situações fáceis e simples. (BASSO, 2000, p.104).

Inerente a este processo, há que se reconhecer a tendência humana de fixar-se, pendularmente, na polaridade de atração e/ou repulsão, sejam dos monstros, das glórias ou o que vier– como se estas oscilações não fossem essências integrantes do viver.

Ao incluir esta abordagem do autoconhecimento nos defrontamos com a possibilidade de percepção de nossos pensamentos condicionados pela memória, como afirma Krishnamurti

as nossas mentes estão condicionados por fórmulas: as minhas experiências, o meu conhecimento, a minha família, o meu país, o gostar, o antagonismo, o ciúme, a inveja, o sofrimento, o medo. Esse é o círculo, o muro por detrás do qual vivemos. E temos medo tanto do que está dentro e quanto do que está fora do muro (...) Se olhássemos para dentro de nós, pondo de lado o que pensamos que deveríamos ser, e vendo o que de fato somos, então talvez descobríssemos a existência dessas fórmulas e conceitos- verdadeiros preconceitos e condicionamentos (...) Olhar para nós próprios, sem qualquer juízo de valor é a única maneira de podermos compreender-nos e conhecer-nos – não como um processo egocêntrico (...); este tipo de autoconhecimento só é possível quando estamos atentos aos nossos relacionamentos, aí podemos apercebermo-nos que a mente está sempre em busca de certezas, de estar a salvo, de estar segura. Mas psicologicamente, isso não existe (1985, p.63-111 passim).

Confrontar-se que esta condicionada busca de segurança pode ser uma meta ilusória é um violento impacto em nossa relação com o mundo, mas também pode nos ajudar a ter momentos de vivenciar uma mente criadora não condicionada que “saberá distinguir onde o pensamento, o conhecimento e as técnicas são necessários, e onde não têm lugar por serem bloqueadores de energias” (KRISHNAMURTI, 1985, p.10). Dispor-se a vivenciar tal processo inclui o exercício da própria autoridade interna, a redução do poder atribuído aos livros, laboratórios e especialistas (sejam científicos, religiosos, filosóficos...) e, principalmente, abertura para o conhecimento direto, abrindo mão da crença na necessidade de estágios intermediários.

Ao contrário da mente que está sempre adquirindo conhecimentos, a mente que aprende é uma mente inocente, sempre aberta para ver e ouvir o novo, sem a interferência do passado (...) ela aprende a todo momento porque não é escrava dos hábitos (...) Provavelmente, a prática de uma pedagogia

direcionada para o autoconhecimento do ser humano implicará uma mudança no centro gravitacional da educação. (SOARES, 2001, p.566) Apesar destas observações acrescentarem mais exigências àquela lista enumerada por Paulo Freire para os educadores, quando inseridas no conjunto de elementos que compõem uma educação singular e plural, elas também podem ser vistas como sinalizadoras de rumos em meio ao, muitas vezes, emaranhando de possibilidades do cotidiano.

Justamente na atividade lúdica está uma das mais acessíveis possibilidades da mente inocente manifestar-se – base para o autoconhecimento. A natural atenção plena de uma atividade lúdica saudável, com predomínio das características apontadas no item 1.1, faz com que os brincadores deixem de estar apenas ocupados com o próprio desempenho e sejam absorvidos pelo momento integrador. O relaxamento dos terminais nervosos, durante uma brincadeira lúdica, impele a mente para liberar, mesmo que por poucos momentos, a busca de segurança, de certezas, de salvação – o medo abre espaço para o que emerge, permitindo que as relações se aprofundem, num misto de atenção, recepção e silêncio simultâneos.