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Nessa perspectiva, quaisquer objetos podem se configurar como ex-voto, desde que adquiram, no contexto da relação com o sagrado, toda uma força sígnica. De tal forma que:

Quando vislumbramos uma garrafa de aguardente fora do contexto da sala das promessas, entendemos que se trata de um bem de consumo humano: trata-se se um recipiente de vidro ou plástico que em seu interior traz uma bebida alcoólica. Entretanto, quando essa mesma garrafa tem sua trajetória social marcada pelo seu ingresso na sala das promessas, ali esse objeto biográfico acrescenta à sua história social como objeto o fato de, agora, ser um objeto votivo, isto é, representa uma relação de fé com a santa de devoção[...]. (MURGUIA E SOUZA, 2013, p.10).

Também a formulação dos pedidos de forma epistolar, depositados no local do culto passam também a compor os ex-votos (OLIVEIRA, 2013). Considerando que o ex-voto é uma retribuição, agradecimento do cumprimento do pacto entre devoto e santo, podemos assim, conceber a carta, num dado instante, como forma dessa relação, ou seja, como ex-voto. Quando os escreventes assumem estar escrevendo pela segunda vez, comprova essa nossa afirmação. A primeira carta traça uma série de pedidos, enquanto na segunda já, de posse da graça, resta agradecer ao padrinho através das cartas. Assim, a constatação feita é que nem toda carta é um ex-voto, na concepção do termo, mas somente as cartas que mencionam ou constam os agradecimentos dos devotos.

Tentamos nesta pesquisa, perscrutar os diversos arquivos onde se encontram as cartas, no afã de achar cartas escritas pelo mesmo remetente, nas situações de pedido e, logo a seguir, de agradecimento. No entanto, por conta de uma série de fatores, como queima de muitas cartas, extravios, ou mesmo a não entrega das mesmas, não

encontramos nenhuma que pudéssemos fazer esse link. Ficamos apenas com a informação da segunda carta, quando o remetente menciona e por vezes relata, aspectos da primeira:

Agradecimento ao Pe. Cícero

Padre Cícero, estou lhe escrevendo para agradecer ao meu padrinho Cícero do Juazeiro por uma graça alcançada, de uma carta que escrevi pedindo: Meu Padrinho Cícero, para trazer uma filha minha que foi para a África do Sul acompanhando o pai dos filhos dela e não deu certo o casamento dela...

Fiz de tudo, pois fui ao Juazeiro do Norte, chorei lá no horto. Aí fiz o pedido a meu padrinho Cícero que ele trouxesse minha filha ao Brasil, que ela morava em Moçambique, nas África do Sul. Demorou um pouco, mas recebi um telefonemade outra que mora em Brasília dizendo que minha filha já estava no Brasil, morando em Salvador...” Obrigado, Padre Cícero, pela graça alcançada! (Grifo nosso).

(M.N. M., Tipi, 16/03/2011 – Carta nº 36).

Achamos em outra carta um dado importante, no que se refere aos ex-votos. Trata-se de uma escrevente que na sua cartinha, além de frases de gratidão ao padrinho por tantas bênçãos conseguidas, constam diversos objetos, que segundo a escrevente, trata-se de presentes para o padrinho como prova de seu reconhecimento, chegando a derramar-se em desculpas:

[...] Olhe, meu padrinho, me desculpe porque eu não vou levar as fotos do jeito que falei [...] Também tou muito feliz por você ter ajudado minha mãe a ficar boa, eu vou pagar as promessa quando eu chegar aí, vou levar seu dinheiro, a promessa das 2 cabeças, rezar 1 terço na estátua, rezar um terço na hora que eu chegar, quando esfriar o calor e acender um março de vela [...].

Vejamos que a missivista enumera as diferentes formas de ex-votos, além das tradicionais miniaturas de cabeças, a reza do terço e a prática de acender velas, e até o dinheiro, fazem parte desse contrato simbólico. A preocupação da devota em não entregar o ex-voto, conforme a promessa realizada, revela um dado novo sobre a materialização desse sistema de troca. Ou conforme Mauss (2003, p.200): “Aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma”. Daí a gratidão e o valor atribuído à graça alcançada; não se trata, neste caso, apenas uma graça do santo, mas da doação e aquisição da essência deste donatário.

Como o ex-voto apresenta toda uma carga semiótica e analógica ao pedido feito, nessa ótica, não pode haver desvio da parte beneficiada, uma vez que o santo cumprira fielmente a dádiva, cabe ao contemplado também fazer o mesmo. Do contrário, pode ocorrer de não ser mais atendido em outra ocasião.

É importante, entretanto, frisarmos que nem toda carta pode assim ser taxada de ex-voto; em muitas há registro de promessas de quando atendido, o devoto levará consigo algo para o santo. Geralmente esses objetos apresentam uma determinada relação simbólica com o contexto do pedido. Durante as nossas investidas nas romarias, deparamos com um casal com um tijolo na mão, dizendo que era para entregar ao padre Cícero por conta de sua intervenção na realização de seu maior sonho em construir a casa própria. Assim, a carta assume essa intermediação entre o pedido e a entrega do ex-voto.

Se bem observarmos há uma profunda relação entre os ex-votos entregues no museu e nas igrejas de Juazeiro com a emissão das cartas. Em que os primeiros são consequências da última. É assim que expressa uma devota “Peço pelo meu pai, ajude que ele possa construir a casinha dele na roça, por favor, deixa ele botar cerâmica lá e pintar.” (Anônima, carta nº 71).

Não é à toa que as miniaturas de casas compõem o acervo dos ex-votos na terra do padre Cícero. Igualmente, podemos inferir a relação intrínseca entre as peças votivas com as cartas enviadas e confirmarmos mais uma vez a tese de que nem toda carta se caracteriza como ex-voto, somente aquelas com teor de agradecimento é que podem assim ser consideradas. As demais se configuram como pedidos, sendo o primeiro passo

nesse processo de negociação com o transcendente. Poderiam ainda ser definidas como o anúncio do ex-voto, visto que os pedidos feitos, muitas vezes, são acompanhados de promessas que já previamente determinam como e o que será dado ao santo nesse ínterim. Mas vejamos uma peça que nos chamou profunda atenção:

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