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Narrativa visual a partir do vídeo Delírio em Rio Mar. Trabalho realizado dentro do projeto Exílio do Tempo, com a Bolsa de Pesquisa e Experimentação SEIVA 2018 / Fundação Cultural do Pará. José Viana em colaboração com Camila Fialho e Felipe Mendonça.

Ver Bolhas. Peça sonora, 2018. José Viana Página anterior:

águas salobras separam Rio Mar do continente extremamente veloz. águas densas e límpidas, ora de rio,

ora de mar, nesse estuário onde as matérias se encontram. águas que vem de dentro, barrentas, floresta acumulada. águas de mitologia

própria, das Amazonas eles disseram. andinas, nascidas no alto das

montanhas, pingam as gotas de água, uma a uma, a construir imensidão. escorregam por entre curvas, ganham força, crescem as águas que vêm de tantas nascentes. de cores diferentes, as águas delineiam formas de serpente. escondidas sob as árvores, alimentadas pela terra, nutrem-se ao longo do extenso grande rio, banhado por todos os outros que nele desaguam. águas esculpem pedras, formam igapós. ora atormentadas, guardam em si o repouso dos olhos amantes. em seu movimento incessante, dão de beber, de banhar e de lavar, servem de caminho àqueles que desejam ir e vir de um lugar a outro. de vila em vila povos brincam e se alimentam do leito de seu rio. morada de seres, águas de reza, benção e sabedorias inalcançáveis. o rio é uma entidade na forma de uma cobra. tudo nele, o rio, habita. as memórias estão. o sangue vermelho que a terra chupou – e ainda chupa – para que não seja de todo um desperdício. o sangue caboclo, do índio, da negra, o

sangue da árvore, a seiva. balas de canhão ainda ressoam pelo ar.

a memória dos tiros implacáveis na cabeceira do rio. o sangue fugido, refugiado, capturado. corpos absorvidos pela água misturam-se ao sangue do boi naufragado. estórias contam que nesse rio cinco mil bois ainda se debatem. afogados, alguns afundam e outros boiam pela correnteza. se misturam ao pó do minério.

homens do garimpo gotejam em busca do ouro lágrimas de esperança, mercúrio e suor. misturam-se às gotas do óleo, pequenas e grandes embarcações. lágrimas que também caem daquelas que outrora eram as donas do rio sem precisarem ser. o rio é maior que tudo isso. o rio também é isso. o rio está em disputa. demarcado, fatiado, posto sob interesses invisíveis, confusos, complexos, e sobretudo, longínquos. sob a ordem dos

cálculos, grandes máquinas tentam dominá-lo, mudar o curso de suas águas, controlar sua força, domar suas vontades. o rio, que é uma entidade, resiste. aparentemente calmo, caudaloso e profundo,

move-se rumo ao mar, mundo afora, em direção às tão sonhadas águas cristalinas, salgadas, não menos cheias de mistério. águas que vêm de fora, as águas atlânticas. triangulares, também marcadas de cicatrizes. moventes no silêncio oceânico, buraco negro oposto ao sol. mais espalhadas que as águas do rio, as águas do mar têm suas mitologias próprias, um verdadeiro livro de histórias. morada de deuses. de Poseidon, o grego, de Netuno, o romano, águas do cuidado de Olokun, orixá iorubá pai e mãe de Yemanjá, salve a

rainha do mar. nas águas se fazem as rotas marcadas pelas grandes navegações, águas habitadas de naufrágios. encontros e tensões apagadas, lágrimas também choraram

neste oceano. águas por onde os outros aqui chegaram ao supostamente renascerem, dando início à sua modernidade. águas por onde foram trazidos nas piores condições inimagináveis de um navio sem luz. sementes também vieram sob o signo do tráfico, rotas históricas de vergonha demarcam linhas dolorosas no inconsciente. oceano sem fundo, reflexo da imaginação, de transparências cuja luz não penetra completamente. do fundo, onde talvez namorem Olokun e Poseidon, de onde se viram as caravelas outrora passarem, hoje veêm-se transoceânicos saírem da boca do rio das Amazonas com outros cinco mil bois, abarrotados de ferro, de cobre, de terra, de grão.

no inverso sem lei, cargueiros

também entram pela boca empacotados, manufaturados, a despejar necessidades antes não necessárias.

é aí, precisamente aí, nessas águas femininas que dão forma ao rio e ao mar, nessa tensão incessante, surge a potência, riqueza do estuário. entrada e saída entre floresta e mundo. matérias sedimentam num acúmulo que vem desde as cabeceiras. a água é salobra, essa terceira água que é água de encontro. campo de forças permanente. e no lugar desse encontro surge uma ilha. Rio Mar, um condensado de matérias e memórias, do lado de lá do continente extremamente veloz.

sementes que germinam no movente, imaginação nos olhos postiços do palhaço. aderem-se as sementes umas nas outras. minério e mangue. mitos, estórias e amores. folhas, garrafas e sangue. do fundo de uma manhã de pesca sem peixes. de barcos que resistem, no horizonte, navios gigantes passam sem parar habitados de saudade. saudade de casa. germinadas as sementes absorvem em si a poesia do rio e do mar. a explosão se alimenta dessa água. dádivas de estórias próprias, duração perdura no emergir deste encontro.

posso guardar uma palavra do fundo dos seus olhos - perguntou. carrego comigo todos esses olhares. levo-os em uma sacola invisível guardada no céu da boca.

tem um pouco de cada, têm olhos de bila, olhos de vidro, olhos de tique, olhos de fuga, olhos de fogo. olhos da noite. olhos revirados, olhos descortinados, olhos

revoltados, olhos inquisidores. olhos perambuladores. olhos espaciais, olhos frenéticos, olhos cansados, olhos poéticos, olhos fonéticos, olhos dados, olhos

perturbados. olhos românticos, olhos mudos, olhos de plástico. olhos de sombra, olhos de gozo, olhos deitados. olhos calados, olhos atentos, olhos carentes. olhos

espertos, olhos profundos, olhos abjetos, olhos escrotos. olhos de ontem, olhos de dúvida, olhos de chuva, olhos largados, olhos resssecados, olhos sedentos, olhos de sangue. olhos de peixe, olhos

de vento.

posso guardar uma palavra

não era de todo falsas ilusões, mas certamente algum achismo de quem ainda está com a semente plantada na cela de um quadrado. ilusões não de todo inocentes. o palhaço estava certo de que haveriam lugares disponíveis e que cercas não diziam respeito, mas não saberia dizer a quanto tempo já caminhava. seus pés iam e vinham, a luz girava de um lado a outro, se fazendo de sol permanentem de noite e de dia. sempre que dobrava a curva de uma esquina era como se voltasse ao mesmo ponto. seria um encanto o possível exílio? a minhoca passeava pelo interior da semente até esquecer seus próprios passos.

um encantado destinado a andar continuamente em volta de si, desenterrando pedras, cavando, molhando árvores secas no caminho. cabeça oca, vazia como o crânio, espaço interior de potência. sua cabeça seria sua própria prisão. escravizado pelas próprias ideias, herança maldita. as ideias percorrendo os caminhos imaginados no espaço vácuo vazio. ímpeto escravocrata, seu corpo seu domínio. veio caminhando de longe açoitar a mata, em busca do eldorado, dentes ausentes trocados por dentes de ouro de um cabra da peste. sementes

germinando qualquer coisa fruto do encontro das ideias com a terra, de um solo fértil, habitado, um quarto, um quadrado, um espaço disponível.

minhoca cavando em direção ao centro da semente sem nunca nada encontrar. — cava cava minhoca, cava mais fundo! os guardas diziam trazendo nas mãos um prato vazio. os pés pisavam tateando as horas, que lentas pareciam paradas como quem aguarda o amanhã chegar.

assim passava o tempo na cela do palhaço. — não tem fim, gritavam eles enlouquecidos. não tem fim!

a música lá fora anuncia a chegada de alguém. música ritmada como máquina de produzir silêncios. sirenes e helicópteros, pássaros livres sobrevoam, mas do céu não podem passar. uma janela inalcançável no topo de seu quarto. o chão já molhado pelas águas que vêm e vão. seus pés encolhidos que nem sentem os grãos de areia entre os dedos. será um encanto o possível exílio?

perguntam-se os olhos que o observa caminhar. a minhoca passeia pelo escuro da semente até esquecer seus

próprios passos. a cada canto, de novo e de novo. perdido, talvez o palhaço estivesse mesmo perdido. confuso com tudo aquilo que aconteceu ao seu redor, quando na frente de toda sua plateia ria o palhaço carregado por três ou quatro homens para o camburão. indelicados. as pessoas acharam por um momento que

fosse parte do espetáculo. pura tragédia. poderia ser um simples desmaio em que tudo girava infinitamente como aquela semente suada em suas mãos.

perguntavam por suas mãos de ternura, seus pés

carregavam aquele mundo de passos, acúmulo de memórias, inchados de tanto andar. na cabeça, um capacete de

semente pronto pra guerra. todo dia a mesma coisa, a luz trazendo o horizonte e um menino que voa. em uma dessas tardes ele assobiou de longe como se chamasse o vento, como se dissesse, – ei, acorda e vai pra tua casa. ele riu, bateu asas e voou.

epílogo

Sobre a fotografia azul

Ser da beira

Poema na escrita dos turus

A partir das inscrições de Rio Mar

Ver Sobre a fotografia azul. Vídeo, 2018. José Viana Ver Delírio em Rio Mar. Vídeo, 2018. José Viana

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