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Numa dada apreensão muito particular, pedras e sementes me convocam a estabelecer um tipo de relação com elas. Menos pela forma que apresentam, ainda que por vezes semelhantes, mas por uma certa potência

de tempo que cada uma instaura. Em geral, ambas podem ser vistas como

elementos estáticos, paralisados no tempo. No entanto, uma pedra isolada do leito de um rio – onde a água está em permanente troca com a pedra – ao habitar os nossos olhos, inimaginável seria sua transformação no decorrer do tempo por nós apreendido. Em nossos olhos de humana temporalidade, a pedra não se desgasta, não evapora, não coagula, não tem bactéria ou outro ser vivo – fora a ação concreta do homem – que a transforme. A pedra em mim, então, evoca a pensar o longínquo, o distante, aquilo que concentrado perdura, que atravessa o tempo de nossa experiência. A pedra, em sua dureza concentrada, me faz quase tocar com a imaginação a inapreensível duração, como se realmente habitasse o, ainda que ilusório, infinito. Por sua vez, a semente distante do solo, também habita os meus olhos por um longo tempo feito natureza morta. Muitas delas, inclusive, são de aspecto duro como pedra, impossíveis de serem esmagadas pela mão, ou pelos dedos. No entanto, a semente parece deixar-se viver o tempo

da espera, nela reside uma espécie de paciência, muito própria, diante das

circunstâncias relacionais que a ela se apresentam. Protegida da água, do sol, de fungos e de outros seres vivos, a semente pode perdurar no tempo, seca e dura, feito uma pedra em repouso. No entanto, uma vez caída no

chão de terras pretas4, sob condições relacionais favoráveis, a semente ganha

vida. Vida que transforma-se rapidamente, instaurando um ambiente de acolha integral, entre o chão e o céu. Nesse estado, a semente conecta em si o sol, a terra e a água, o ar passa a ser seu alimento, a planta nasce e cresce. De repente, um ser vivo que se movimenta e se autorecria, vive

4 Chão de terras pretas é metáfora para dizer ambiente propício à eclosão de uma semente, com nutrientes, umidade, temperatura e calor, entre outras propriedades equilibradas.

toda uma vida, gera novas sementes. Dessa forma imagino com a semente, uma temporalidade feita de mola, concentra-se, distende-se e concentra-se. Pode durar um longo tempo vivendo feito pedra o movimento corrente, pura potência reunida, quando tudo se harmoniza ao seu redor, ela explode novamente. A vida transcorre numa planta, numa árvore, mais uma vez as frutas surgem. No seu interior, a semente habita de novo a calmaria, o silêncio, o tempo da espera de uma nova explosão. Ao pensar sobre essa temporalidade da semente como uma mola, de certa forma inspirado em Bergson, ela nos dá além da duração, a vontade do instante. Menos porque a explosão – ou a eclosão de uma semente – seja um ponto parado entre duas durações, mas porque é ruptura, é um evento digno de ser celebrado.

Em chão de terras pretas, pensar a eclosão de uma semente é pensar o instante de uma certa explosão. Seja de uma semente palpável, como a de andiroba que carrego em meu bolso, ou a de tucumã que carrega Alfredo, no livro de Dalcídio. Ou, ainda, uma semente como poética, devaneante, que instaura o ato de imaginar. Seja esta primeira semente que coleto, a partir da qual passo a habitar memórias e imaginações no ato de escrever este texto, ou a semente de Alfredo, “bolinha fiel e rica de fazer de conta” (JURANDIR, 2011:133). Pensar, portanto, essa eclosão física ou imaginante, é pensar o instante que o elemento deixa de ser uma quase pedra para romper-se em uma nova forma, em uma nova imagem. Ao tentar fixar o instante, Bergson é enfático em dizer, para ele “nunca há instantâneo” (BERGSON, 2006:31). Na medida em que tentamos apreendê-lo, como um ponto na linha que é puro movimento, já aí terá sido “um trabalho de nossa memória” (BERGSON, 2006:31). Por outro lado, Bachelard, em seu livro

A intuição do instante, afirma que “a duração, como a substância, só nos envia

fantasmas”, para ele, com a duração “pode-se talvez medir a espera, mas não a própria atenção, que recebe todo seu valor de intensidade num único instante” (BACHELARD, 2007:39). Ao reduzir a atenção ao mínimo, o instante do aqui e agora, no exato momento em que toco com a ponta de meu dedo indicador na ponta de meu dedo polegar, difícil imaginar o instante. Ou percebo com os sentidos antes do toque, ou depois de tocar. O instante da atenção parece mais um envolvimento, o instante preciso é ilusório, inapreensível como duração, pois não há pausa. O tempo não pára diz o poeta Cazuza. Tentar parar o movimento é impulso ilusório gerado pela indústria da fotografia, quando disse fabricar o instante. Ao reduzirmos ao máximo nossa percepção deste mínimo, estaremos novamente diante do abismo, prestes a habitar o fantasma, o nada, onde a vida transcorre, e toma de explosão em explosão nova propulsão, como a mola que se contrai e se distende no vazio. “O devir é o fenômeno da substância, a substância é o

fenômeno do devir” (BACHELARD, 2007:37).

Na imagem imaginante, a semente explode, feita de matéria ou de ideia, concreta ou poética. É o rompimento de uma superfície, rasgada, que passa a dar forma a uma nova superfície, como uma flor. Um mundo que habita dentro de outro mundo. Tal qual o estrondo que faz em nosso corpo a aparição de uma imagem poética, de um lugar novo em que podemos habitar. Para Bachelard em sua Poética do espaço, ao pensar uma fenomenologia da imaginação, o surgimento de uma imagem poética: “não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar” (BACHELARD, 1978:183). Nisso reside uma beleza que me interessa nessa pesquisa, beleza que encontra repouso na imagem da semente, no seu tempo da espera, para falar sobretudo, da explosão de uma imagem poética, um lugar disponível a ser habitado. Assim caminho. Ao mesmo tempo, acaricio a semente que carrego em minha mão, as águas de rio mar habitam o fundo dos meus olhos, entre lembranças e pensamentos eu experiencio a paisagem e faço dela um habitar em meu próprio texto, essa pele de papel, como diz Kopenawa.

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