• Nenhum resultado encontrado

Deletrix do inglês ​delet ​ e do latim ​deletus ​

Capítulo 2 Mirar hacia otro lado ​

2.2. Regimes de Verdades

2.2.3 Deletrix do inglês ​delet ​ e do latim ​deletus ​

"Fanatismo, censura: preservando o dogma sem qualquer violação, limitando a liberdade de pensamento e de expressão. Suspensão da linguagem. Tornando palavras opacas, repreendendo conhecimento, atacando inteligência. Gestos de agressão - inútil, necessário - filtrados pelo tempo: invocando a plasticidade de artistas como Pollock, Tàpies ou Mathieu. A estética resgata a violência?" Trecho do livro "Deletrix" de Joan Fontcuberta, 2013.

Durante diversos momentos históricos existiram casos de censura institucionalizados ou não. A censura é nada mais que o temor das autoridades em deixar transcorrer conteúdos com temáticas diferentes de suas visões. Quando a censura não é institucionalizada, existe uma ideia já assimilada culturalmente de que não devemos tratar de determinados assuntos ou então algum tipo de abuso de poder e manifestação orgânica, como o caso do Queer Museum: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira62, que trazia obras de diversos artistas com a temática queer63.

Também relacionado às questões de ordenação, por outro lado temos a censura institucionalizada, como o caso da censura artística, especialmente a musical, durante a Ditadura Militar brasileira de 1964 a 1985. Diversos artistas expoentes da época como Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré e Tom Zé tiveram músicas impedidas, vetadas ou dificultadas de serem lançadas. A Ditadura Militar tentou impedir a livre circulação de ideias e a música e o teatro foram os grandes alvos nessa época.

Para tornar o mecanismo de censura parte do regime e atingir todas as canções, foi criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Toda vez que leio esse nome me faz rir, pois realmente a ideia era acabar com as diversões públicas por meio de vetos musicais sem nenhum critério. Os censores literalmente agiam como queriam e utilizavam qualquer motivo para proibir uma canção de ser executada diante do 62 Um movimento de direita brasileiro concluiu sem ver a exposição que era um mau uso do dinheiro público e, por isso, se manifestaram para que a exposição parasse de acontecer. O Banco que estava patrocinando e recebendo na sua instituição cultural o projeto, resolveu tirar o patrocínio, pois se sentiu pressionado.

63 A teoria Queer passou a se consolidar nos anos 90 com a publicação do livro "Problemas de Gênero" da Judith Butler. Nele, a pesquisadora propõe o questionamento das epistemes com relação ao que entendemos como verdade referente às noções de masculino e feminino.

público. Os motivos para a censura eram variados, iam de questões políticas à questões morais.

E, em alguns casos, o censor simplesmente não entendia o que o conteúdo da música queria dizer e, por isso, a vetava.

A censura representa o medo das autoridades diante da mínima possibilidade de existir opiniões contrárias à ordem estabelecida. Era antes escancarada e comum em governos não democráticos, no entanto tudo têm mudado organicamente com o controle a partir das informações dos usuários de redes sociais, por exemplo.

Isso não é novo, mas estamos aprendendo mais e mais sobre a extensão da espionagem que os estados democráticos fazem de seus cidadãos para juntar informação que é usada de um jeito que pouco sabemos, mas que com certeza não nos beneficia, como eles deveriam saber. Infelizmente, nós não podemos mais considerar que o Estado está nos vigiando, mas sim que alguém que quer saber tudo sobre nós para nos manipular com mais eficácia e tirar proveito de possibilidades imprevistas. Somos flagrados sob holofotes, e nada do que fazemos escapa aos olhos do Todo-poderoso, seja o Estado ou as grandes corporações. (ARENAS, 2013, pg. 11, tradução nossa).64

Justamente por isso que o livro 1984 de George Orwell alcançou o primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos em 2017 na Amazon. A procura levou a editora Penguin a imprimir mais de 75 mil cópias. A distopia escrita por Orwell parecia, naquele momento, estabelecer uma relação muito íntima com a realidade vivida pelos países democráticos. No entanto, toda a "previsão" por Orwell tem muita relação com diversos momentos históricos, não somente com os mais recentes que, por acaso, podemos nomear de pós-verdade.

Segundo o diretor de publicidade da editora [Penguin], a demanda pelo 64 This is not news, but we are learning more and more about the extent to which democratic states spy on their citizens and gather information that is used in ways we know very little about, but are certainly not for the benefit of us citizens, as they should be. Unfortunately, we can no longer regard the state as watching over us, but rather as anyone as wanting to know all about us in order to manipulate us more effectively and take advantage of unforeseen possibilities. We are caught in a spotlight, and nothing we do escapes the eyes of the All-powerful, whether it be the state or the big corporations.

livro começou a subir logo após a exibição de uma entrevista de Kellyanne Conway, conselheira do então recém-empossado presidente norte-americano, Donald Trump. Ao ser questionada a respeito das falsas estimativas de comparecimento da população ao discurso de posse do novo presidente, divulgadas pelo secretário de Imprensa de forma inflacionada (e desmentidas pelas imagens das redes locais de televisão), Conway afirmou que o governo Trump havia apresentado “fatos alternativos” (alternative facts). (BEZERRA, CAPURRO, SCHNEIDER, 2017, pg. 372).

No livro e exposição Deletrix (2013), Joan Fontcuberta discute o papel da censura em tornar inacessível um conteúdo ao público. Para ele, apesar de toda a questão ideológica e repressiva, existe também a binaridade entre a imagem e a palavra. No livro, o artista exibe fotografias de diversos conteúdos escritos que foram censurados em diferentes épocas. Algumas páginas fotografadas por ele revelam pouquíssimas pistas sobre o conteúdo do texto, uma vez que estão quase completamente manchadas de preto, por conta da censura. Outrora, o que era texto verbal passa a ser, então, uma imagem concreta da limitação, condicionamento e manipulação e ordenação do conhecimento.

Segundo Arenas (2013), o espaço de crítica à censura é quase uma obrigação aos artistas e intelectuais, pois são eles que garantem o livre pensamento, são capazes de imaginar novos mundos e estimular os indivíduos a pensarem diferentemente daquilo que lhe são impostos pelas autoridades e poderes. Nesse sentido, Fontcuberta tem um papel importante em trazer à tona o quanto a censura escondeu, especialmente os textos que não são acessíveis à maioria das pessoas.

Além de mostrar conteúdos que são restritos, Fontcuberta chama atenção para como a realidade pode ser distorcida pelos regimes de poder. Desse modo, o projeto livro/exposição coloca em pauta novamente a discussão sobre o acesso e sobre as inúmeras manipulações que chegam até nós através de diferentes sistemas autoritários. Somos portanto, estimulados a pensar sobre os parâmetros e as distorções daquilo que chamamos de realidade.

Figura 37: Erasme de Rotterdam, Adagiorum chiliades, Basilea, 1541.

Figura 38: Juan de Robles Corvalan. Historia del Mysterioso Aparecimiento de la Santissima Cruz de Carabaca, Madrid, 1619.

Fonte: Acervo Pessoal.

Além de toda a questão de impedimento da livre expressão e as restrições de disseminação e violação dos direitos universais ao conhecimento, Deletrix também reflete toda a violência performada a um documento. O compilado de documentos registrados por Fontcuberta pertencem à sabedoria universal e englobam pensadores famosos como Erasmo de Rotterdam.

No caso de Deletrix o papel do artista está em colocar à disposição esses documentos escondidos e mostrar a violência com que eles foram tratados. Portanto, Fontcuberta não exerce uma performance ou intervenção que não seja encontrar esses documentos, selecioná-los e registrá-los fotograficamente. Ao invés de mostrar a

violência social como estamos acostumados, ou seja, através das fotografias de choque, o artista aponta e se transforma numa testemunha da intolerância e do totalitarismo que estão escancarados nestes documentos riscados. Além disso, essas imagens nos lembram a importância em resgatar a nossa herança cultural e lutar bravamente contra qualquer impedimento da liberdade e da livre expressão.

Como Serge Daney gosta de dizer, “ficamos cegos diante da hipervisibilidade do mundo”. De tanto ver já não vemos nada: o excesso de visão conduz à cegueira por saturação. Essa mecânica contagia outras esferas da nossa experiência: se antigamente a censura era aplicada privando-nos de informação, hoje, ao contrário, consegue-se a desinformação imergindo em uma superabundância indiscriminada e indigerível de informação. Hoje, a informação cega o conhecimento. (FONTCUBERTA, 2012, pos. 814-819)