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Imagens complexas exigem olhares complexos ​

Capítulo 1 "¿I qué és la veritat?" ​

1.4 Imagens complexas exigem olhares complexos ​

Uma das coisas que Català (2005) coloca em seu livro é o fato de que temos que repensar o modo como olhamos as imagens e como as tratamos. Quando cheguei em seu tomo de mais de 500 páginas, que chamo carinhosamente de “a Bíblia da minha tese“, pude concluir que alguns termos como “analfabetismo visual“ podiam ser banidos, uma vez que devemos nos desprender do paradigma textual. E por isso que o método de Català envolve o que ele chama de mirada compleja ou o ato de apreender imagens, considerando não somente o que está em sua superfície, mas também as conexões que ela estabelece. Esse “olhar complexo” nos ajuda a desenvolver a nossa capacidade de perceber o usos e funções das imagens e, principalmente, afrouxa os laços da realidade imagética.

Em março de 2019 eu apresentei uma comunicação oral no Festival de Fotografia Floripa na Foto. Na palestra tratei da encenação fotográfica como representação/prova da realidade por meio de projetos artísticos de vários fotógrafos, entre eles o Fontcuberta. Na plateia havia vários fotógrafos documentais e fotojornalistas que ficaram ligeiramente chocados - alguns animados - quando eu expressei verbalmente que toda fotografia nasce como ficção. Após a palestra, alguns deles vieram falar comigo, tanto para elogiar a abordagem, quanto para perguntar de onde havia tirado essa ideia de que o fotojornalismo pode nascer de uma ficção. Um deles inclusive me convidou para assistir um documentário que ele havia realizado na Síria e ao ir embora falou “mas o meu documentário não é igual às fotografias artísticas que você mostrou, ele é real mesmo“. E demos risada.

Sete anos antes eu estava em uma mesa no Encuentro Panamericano de Comunicación debatendo com um professor da Universidad de Córdoba sobre a mesma coisa. Na ocasião ele defendia que toda fotografia jornalística tinha que vir acompanhada de informações matemáticas e técnicas de como ela foi realizada para as pessoas saberem se aquela imagem era real ou não.

O universo de estudos da fotografia é enorme e abrangente, por isso existem pessoas que pensam de maneira diferente. O que para mim pode ser considerado um "purismo imagético", para outros estabelece conexões importantes entre as relações

sociais mediadas pela fotografia. No entanto, é na teoria de Català e nas obras de Fontcuberta que encontro abrigo e, principalmente, enxergo a necessidade de uma discussão aprofundada sobre como devemos olhar as imagens.

O Renascimento, por exemplo, foi o momento em que o universo das imagens foi tomado pelas ideias sistematicamente controladas, que fez com que a produção e circulação imagética encontrasse na verossimilhança uma funcionalidade objetiva. A perspectiva renascentista sistematizada por Alberti em 1443, definiu as leis espaciais relativas à realidade visível e, a partir dela, foi criada a noção de que a imagem deveria ser justa e fiel ao real. E justamente durante o Renascimento que o uso da câmera escura, se torna generalizado.

Toda a atmosfera quatrocentista do homem renascentista é refletida na configuração ideal das coisas, onde se preconiza a harmonia e a estrutura dos objetos em relação aos outros. Dessa estrutura "perfeita" encontramos a fotografia como "filha legítima da iconografia renascentista" (MACHADO, 2005, pg. 227), vítima da idealização técnica e responsabilizada pela reprodução mimética do visível durante todos os séculos seguintes ao século XIX.

A visão do homem renascentista determina também a visão do indivíduo contemporâneo, ainda marcada pelos modelos sistemáticos do passado. E as imagens técnicas contribuem para a manutenção do conceito de espaço em torno do ponto de fuga. Os modelos imagéticos contemporâneos acabam sendo os mesmos que os renascentistas, onde é perceptível a forte presença de uma repetição imaginativa e, talvez, fenomenológica. Mesmo assim, a visão objetiva da realidade, preconizada pelo Renascimento, fez surgir movimentos artísticos que caminharam na direção oposta estruturada pelo ponto de fuga, tendo como consequência toda a criação da arte moderna, calcada na abstração.

Na posição inversa, entretanto, situam-se as imagens técnicas: quando o impressionismo e o cubismo desferem o golpe mortal no modelo de representação do século XV, a fotografia e logo em seguida o cinema surgem como alternativas para repor e perpetuar a figuração que havia sido colocada em crise. No século

XX, vamos aprender a conviver simultaneamente com dois modelos iconográficos: o modelo renascentista, mantido vivo pela imagem técnica, e o modelo “moderno” de que as artes plásticas serão as principais articuladoras. (MACHADO, 2005, pg. 229)

Alguns fotógrafos como Moholy-Nagy, Aleksander Rodtchenko e Man Ray foram bem sucedidos em inserir a fotografia dentro do contexto abstrato da arte moderna, provando que a imagem técnica pode funcionar como suporte potencializador da complexidade contemporânea. A partir das dimensões estéticas desenvolvidas por uma geração de fotógrafos preocupados em articular as imagens técnicas e a arte abstrata, podemos ver o surgimento de outras formas expressivas nesse universo, como a videoarte, que uniu de forma primorosa a experiência estética com as imagens técnicas, dando abertura para produções e investigações plásticas no campo da imagem fotográfica.

A iconografia desprendida da videoarte, por exemplo, foi em parte incorporada pelas imagens fotográficas digitais que, apesar de serem geradas por um computador, ainda se baseiam no universo imagético renascentista, inclusive por conta do ponto de fuga. O que a imagem digital representa, contudo, é um realismo matemático, criado a partir de abstrações numéricas e não possuem relação com a "realidade visível". E isso serve tanto para as fotografias artísticas quanto para o fotojornalismo. Trataremos mais disso ao analisar algumas obras de Fontcuberta que se utilizam do universo matemático para gerar imagens fotográficas que parecem reais, mas que são abstrações do real.

Diante dessas constatações, pode-se dizer que Català (2005) desenvolve um conceito fenomenológico que tem como fundamento trazer interrogações acerca das imagens e como elas podem ser vistas de maneira complexa. Partindo desse pressuposto, há de se levar em consideração também a ação do observador e como ele investe o olhar sobre as imagens complexas. Este olhar ativo é chamado de mirada, resultado da articulação entre o olhar investido sobre a imagem e a imagem, ou seja, uma mirada complexa.

A ativação da mirada complexa resulta no entendimento das imagens e a relação delas com as dimensões subjetivas e objetivas, no espaço e no tempo e no

pensamento que provêm dessas articulações de modo a entender as consequências epistemológicas provenientes da imagem complexa. A mirada se desenvolve no pensamento imagético, ou seja, na capacidade de não só pensar sobre as imagens, mas também pensar com elas. Nesse momento é importante dizer que Fontcuberta não deixa de ser um belo exemplo do quão importante é olharmos de forma complexa para as imagens, especialmente as fotográficas. Por isso, tentarei ativar meu olhar complexo nos ensaios sobre as suas obras.

A complexidade visual, no entanto, pode ser encontrada em diversos produtos imagéticos e audiovisuais, especialmente quando o produto passa por alguma articulação que interfira no espaço e no tempo, e quando permite ao observador interagir com ele. A mistura de produtos de origens diferentes (fotografias, vídeos, multimídia, etc) também pode ser um caminho para a complexidade visual, visto que os produtos ultrapassam os artifícios estéticos individuais, o que, por sua vez, estimula a produção de sentido. Veremos também adiantes, nas reflexões sobre as instalações de Fontcuberta, o percurso que ele faz para nos promover conhecimento através de imagens complexas.

A simultaneidade com que vemos as imagens no mundo nos mostra que é necessário um processo de imersão para que, somente assim, consigamos entendê-las de forma complexa. Dessa forma, é possível pensar como as imagens estão presentes na construção de conhecimento. As imagens complexas têm presença importante na comunicação digital e virtual porque nesses mecanismos pode-se explorar as diversas possibilidades de conexões entre as imagens.

Català (2011) abre o caminho pelo qual é preciso levar em consideração o conjunto de imagens, como elas se relacionam e transmitem intenções para outras imagens. Nessa ecologia do visual tudo está se inter relacionando e os modos de percepção estão sendo alterados por causa de uma constelação imagética. A era da visão trouxe a diferença entre ver e olhar. O olhar se torna atento e descobridor dessas várias camadas e as imagens são fluidas, modernas e possuem, sem dúvida, diversas superfícies.

Ao conhecer o potencial das imagens, entender as suas capacidades reflexivas, e, principalmente, não importa sua origem, elas são e não deixarão de ser

representações, podemos utilizá-las como formas representativas de nosso pensamento.

Minha tese de doutorado, portanto, trata de imagens complexas e de imagens no plural. Não só pelos impactos que as imagens aqui apresentadas causam nas pessoas, mas também porque todas essas imagens discutem, metaforicamente, o papel das fotografias e outras visualidades na atualidade; contradizem e ressignificam o olhar imagético e, principalmente, colocam à prova os regimes de verdades.

Figura 13. Charge dos argentinos Daniel Paz e Rudy (2019) brincando com o conceito linear do tempo.