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Delineamento do estudo de caso como abordagem metodológica

4. CONTEXTOS E PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

4.3 Delineamento do estudo de caso como abordagem metodológica

O processo de definição do nosso objeto de pesquisa certamente passou por considerações sobre quem participaria conosco, na condição de informante, sujeito que iria dispor-se a contribuir com o estudo.

Dávamos como certo que para nossos objetivos seria interessante encontrar participantes formados em cursos de licenciatura em matemática, principalmente porque, a

nosso ver, o curso superior tem como uma de suas funções promover o contato do professor com os saberes disciplinares ligados à matemática e propiciar sua apropriação/reconstrução criativa. Imaginamos que professores nestas condições tiveram contato com conhecimentos matemáticos acadêmicos e que esse fato ampliaria suas possibilidades de elabora- ção/reelaboração em relação aos saberes específicos de matemática e saberes pedagógicos.

Em meio a tais considerações, ocorreram-nos algumas indagações que julga- mos bastante pertinentes e que foram suscitadas pelo exame que fizemos na sessão anterior, sobre as características dos alunos do curso de licenciatura em matemática. Além das obser- vações que fizemos sobre o curso, nossa experiência como formadores que dele participam, nos indicava também que professores que tivessem passado por ele e que na época já estives- sem atuando como docentes na área de matemática constituíam um grupo interessante e do qual sabíamos pouco.

Em ambos os casos que descrevemos - de licenciandos que experimentam a docência durante o curso ou dos que já eram docentes antes do ingresso – o acesso à universi- dade muitas vezes exige deles um esforço substancial. São bastante freqüentes, por exemplo, os casos de professores que para freqüentar as aulas viajam diariamente de cidades situadas a mais de 150 km da universidade. Some-se a isso, a necessidade de compatibilizar os afazeres de sua profissão e seus horários com as atividades propostas no curso.

Nossa experiência de formadores nos permitiu notar que para estes professores é muito comum, mesmo considerando apenas os que estão bem adaptados35 ao curso, casos de trancamento de disciplinas ou de semestre, motivados pela incompatibilidade com os horários de trabalho. Estas perdas e trancamentos em disciplinas, na melhor das hipóteses fazem com que o tempo médio de conclusão do curso seja de 7 anos; na pior, acarretam a evasão. Entre as justificativas apresentadas por estes professores para atrasar o curso, além das já conheci- das dificuldades relacionadas à forma como a matemática é ensinada (principalmente focali- zando a ação dos professores formadores) figuram, isoladamente ou em conjunto: 1) a difi- culdade em compatibilizar trabalho e estudo; 2) as dificuldades inerentes à própria matemáti- ca, considerada por eles como naturalmente difícil; 3) o desinteresse pelo fato do curso não atender às suas expectativas.

O fato de muitos professores buscarem a universidade e persistirem em estudar e concluir o curso, a despeito das dificuldades de compatibilizar sua vida acadêmica com seu

35 Utilizamos o termo “adaptado” para nos referir a aqueles alunos que declaram e mostram através do seu enga- jamento, familiaridade com a forma como os estudos são realizados no curso.

trabalho, sempre foi objeto de nossa curiosidade, afinal, outros tantos desistem e outros não escondem que obter o diploma é sua única motivação.

Nossa intenção em pontuar nossa percepção é indicar como aos nossos olhos foi delineando-se a presente pesquisa, no que tange à abordagem metodológica e seus possí- veis participantes. Quando discorremos sobre a complexidade dos saberes docentes, a partir das contribuições teóricas de autores como Maurice Tardif e Bernard Charlot, indicamos tam- bém que tão importante quanto conhecer as características desses saberes que os professores dispõem é conhecer a relação que mantém com eles, o que envolve considerar o problema da mobilização do sujeito no campo do saber ou, mais precisamente, nas fontes dessa mobiliza- ção e nas formas que ela assume (CHARLOT, 2001; 1997).

A esta idéia, associamos também um imperativo metodológico muito bem ela- borado pelo autor que é o de praticar uma “leitura positiva do fenômeno”. Para ele, em termos teóricos isto equivale a evitar o erro de interpretar e categorizar fenômenos como o fracasso escolar em termo das falhas e ausências observadas. Ao invés disso deve-se buscar conhecer o que realmente estrutura o fenômeno nas condições em que pode ser observado.

Nestas condições, entendemos que seria interessante investigar professores que, mesmo enfrentando dificuldades para concluir seus estudos, estabeleceram uma relação positiva com o curso, com a matemática, com sua profissão. Dentro da perspectiva de fazer uma “leitura positiva do fenômeno”, julgamos que participantes que possuíssem uma relação positiva com os conhecimentos matemáticos poderiam fornecer informações fundamentais sobre suas formas de mobilização em relação a estes saberes. Também imaginamos que have- ria mais chances desses sujeitos se disporem a participar de um estudo sobre esta temática e, deste modo, mais chances de conseguirmos as informações com amplitude e qualidade sufici- entes para uma análise satisfatória em relação ao problema de pesquisa.

Deste modo, o confronto de nossas indagações acerca de nosso objeto de estu- do com nossa percepção da realidade empírica foi nos conduzindo ao delineamento de pesqui- sa conhecido como estudo de caso. Esta abordagem de pesquisa é muito utilizada em estudos na área de educação e ciências sociais e consiste em estudar algo singular que se destaca den- tro de um sistema mais amplo - um caso que nos desperta interesse particular.

Analisando as perspectivas de Robert K. Yin e Robert E. Stake, dois autores considerados referências sobre esta modalidade de pesquisa, Alves-Mazzotti (2006) destaca que apesar de haver divergências entre eles, ambos parecem concordar que

[...] o estudo de caso qualitativo constitui uma investigação de uma unidade especí- fica, situada em seu contexto, selecionada segundo critérios predeterminados e, utili- zando múltiplas fontes de dados, que se propõe a oferecer uma visão holística do fe- nômeno estudado (ALVES-MAZZOTTI, 2006, p. 650).

Outros autores aceitam essa definição (ANDRÉ, 1995; LÜDKE e ANDRÉ, 1986; STAKE, 1983; GOODE e HATT, 1977; entre outros) e concordam também que este tipo de delineamento cumpre papel importante na pesquisa social e educacional.

Particularmente na pesquisa educacional, este delineamento costuma ter carac- terísticas associadas aos pressupostos da abordagem que se convencionou chamar de pesquisa qualitativa. Este rótulo engloba muitas vertentes teórico-metodológicas distintas, dentre as quais, um grupo bastante numeroso que possui como raiz comum a fenomenologia, com seus diversos matizes (ANDRÉ, 1995).

Entre estas características, autores como André (2001; 1995), Lüdke e André (1986), Stake (1983), entre outros, destacam seu potencial para a descoberta, no sentido de ser uma via para o estudo de aspectos ainda não conhecidos ou pouco explorados, já que se trata do estudo de um caso que possui certa singularidade, mesmo que posteriormente venham a ficar evidentes certas semelhanças com outros casos ou situações.

Outra característica evidenciada por estes autores é o grau de completude e a- profundamento da análise que possibilita ao pesquisador, uma vez que a unidade estudada é vista sempre como uma totalidade complexa e integrada, na qual é possível estudar um núme- ro maior de dimensões do fenômeno do que em estudos com casos variados.

Da nossa parte, consideramos que estas qualidades são desejáveis a qualquer estudo e a constatação de que ambas poderiam estar potencialmente relacionadas ao nosso objeto de pesquisa pesou em favor de nossa opção por este delineamento.

Juntamente com as qualidades que destacamos, não podemos deixar de discu- tir, ainda que de maneira breve, dois aspectos sobre os quais alguns autores nos advertem: sobre as possibilidades de generalização nesta modalidade de pesquisa; e sobre o problema da definição pouco clara dos casos, verificada em muitos estudos (ALVES-MAZZOTTI, 2006; ANDRÉ, 2001; LUDKE e ANDRÉ, 1986; STAKE, 1983; entre outros).

O primeiro tem sido um dos pontos mais criticados em estudos de caso, princi- palmente por pesquisadores que tem como referência, de validade e verdade, estudos experi- mentais ou de validação estatística.

A crítica tecida, comparando-se o estudo de caso com o delineamento experi- mental, questiona a capacidade de generalização a partir de um único caso. A esse respeito

Yin (citado por ALVES MAZZOTTI, 2006), argumenta que da mesma forma que não se pode generalizar a partir de um único caso, também não se pode fazê-lo a partir de um único expe- rimento.

Para ele, a base do processo de generalização experimental é a replicabilidade do experimento, utilizando o mesmo esquema em diferentes condições. Neste sentido, embora os estudos de caso não representem amostras que possam ser estatisticamente generalizáveis, no processo que ele denomina “generalização analítica” o pesquisador não está interessado neste tipo de generalização, “[...] mas a partir de um conjunto particular de resultados, ele pode gerar proposições teóricas que seriam aplicáveis a outros contextos” (ALVES- MAZZOTTI, 2006, p. 646).

Parece-nos um argumento válido e consistente, embora tenhamos uma adesão mais completa à perspectiva apresentada por Stake (1983), que nos alerta sobre a tentação, para nós pesquisadores, de ficar buscando modos de justificar nossos estudos, procurando semelhanças entre o estudo de caso naturalista36 e os cânones das ciências experimentais. Para ele, embora em alguns casos possa haver semelhança entre procedimentos e metas, as formas de generalização diferem epistemologicamente.

A partir das observações feitas por este autor, podemos perceber com um olhar mais crítico as limitações de um estudo de caso no que toca às possibilidades de generalização dos resultados.

Na perspectiva que assumimos, o que há de intrínseco e único no caso justifica seu estudo, mesmo que o pesquisador não tenha a pretensão imediata de construir teorias ge- rais. E mesmo quando investiga um caso assim, visando apenas compreender suas especifici- dades, o pesquisador não evita a generalização, mas procura assegurar-se de condições para que os leitores do estudo possam tomar contato, de modo vicário, através de uma narrativa densa, com a riqueza e complexidade do(s) fenômeno(s) que o caso representa.

Esta é a essência da generalização que o autor denomina naturalista, cujas ca- racterísticas fundamentais são ser auto-construídas (self-made) e experienciais (STAKE, 1983, p.25).

Considerando o potencial para generalização nestes termos, julgamos que estu- dos de caso podem sim auxiliar na construção de quadros interpretativos que permitam uma discussão mais ampla sobre os saberes docentes, articulando contribuições de outros estudos -

discussões que contribuam para que construções teóricas sejam desenvolvidas ou refinadas pela comunidade de pesquisadores.

Assim, temos clareza do potencial heurístico deste tipo de estudo, principal- mente quando se trata de elucidar e ampliar noções e conceitos complexos, elaborados no domínio teórico. Também temos em mente que a generalização naturalística, própria deste tipo de delineamento de pesquisa, tem sua importância e se fortalece à medida que seus resul- tados encontram ressonância em outros estudos e na experiência de outros pesquisadores.

Examinemos agora um segundo foco das críticas direcionadas às pesquisas rea- lizadas sob o rótulo de “estudos de caso”: a denúncia de que a carência de uma definição pre- cisa do caso é um fator que compromete seu rigor (ALVES-MAZZOTTI, 2006; ANDRÉ, 2001).

A esse respeito, Alves-Mazzotti (2006) destaca que as perspectivas de Stake e Yin, apesar de suas peculiaridades relacionadas às suas vinculações paradigmáticas, conver- gem no que diz respeito à necessidade de se estabelecer critérios claros para identificação e seleção do caso a ser estudado. Nas palavras da autora, independente do paradigma de pesqui- sa:

O importante é que haja critérios explícitos para a seleção do caso e que este seja re- almente um “caso”, isto é, uma situação complexa e/ou intrigante, cuja relevância justifique o esforço de compreensão (ALVES-MAZZOTTI, 2006, p. 650).

Assim como André (2001), entendemos que tal esforço de tornar claro e preci- so o delineamento é desejável em qualquer pesquisa. A esse respeito, procuramos nos preca- ver contra a carência de rigor delimitando, a seguir, o caso a ser estudado.

O caso que despertou nosso interesse inicialmente e que vimos pontuando ao longo desta seção seria o de professores que reúnem as seguintes características: a) ter conclu- ído o curso de licenciatura em matemática e atuar na área; b) ter ingressado na carreira antes ou durante a realização do curso superior; c) ter uma relação positiva com o curso de gradua- ção, com a matemática e com sua profissão.

Nestas condições pensamos inicialmente em selecionar participantes de pesqui- sa que reunissem as características acima. Contudo, durante o processo de seleção destes par- ticipantes, ocorreu-nos que um dos professores que abordamos poderia constituir-se sozinho num caso, quer por reunir as características citadas e se identificar, através delas, com o grupo em que temos interesse; quer por apresentar traços particulares que julgamos serem favoráveis

ao estabelecimento das relações necessárias ao desenvolvimento da pesquisa e à sondagem em profundidade das questões a ela pertinentes.

Neste sentido, a redução do número de professores participantes a apenas um aconteceu, a nosso ver, de modo bastante natural durante o processo de seleção, como um refinamento oportuno, uma possibilidade particular, uma aposta pessoal bastante ligada ao nosso interesse na questão intrínseca da relação do sujeito com seu saber, na sua mobilização face ao saber.

Através desse refinamento chegamos à definição mais precisa do caso que efeti- vamente investigamos, qual seja, o caso de um professor que reúne as seguintes característi- cas:

a) Ter concluído o curso de licenciatura em matemática e atuar na área; b) Ter ingressado na carreira antes da realização do curso superior;

c) Ter uma relação positiva com o curso de graduação, com a matemática e com sua profissão;

Em síntese, do caso inicialmente previsto para o caso efetivamente estudado, o re- finamento na definição do caso consiste em uma restrição das condições expostas no item (b) inicialmente proposto – restrição ocorrida durante o processo de seleção de participantes da pesquisa, no qual optamos por conduzir a investigação com apenas um participante.

Voltamos a abordar este assunto na seção 4.5, onde relatamos o processo de sele- ção de participantes para esta pesquisa e descrevemos como decidimos que nosso caso pode- ria ser estudado a partir de um único participante. Antes disso, descrevemos na seção seguinte como planejamos o processo de coleta dos dados, preservando a cronologia das etapas de de- finição dos procedimentos em nosso estudo.