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Descrever os processos de transformação da identidade e as instâncias de um campo de possibilidades, ações e sentidos que tangenciam o devir indígena demanda uma abordagem específica, que permita perceber as nuances da cultura como práxis simbólica, e que coloque o pesquisador em posição de intérprete do campo. A etnopsicologia possibilita o diálogo entre etnoteorias nativas e as teorias do pesquisador – a fim de investigar em que medida ambas se compreenderão. Pelo pressuposto de que a linguagem estrutura a performance simbólica, é considerada o instrumento para se adentrar metodologicamente em um sistema cultural distinto. Para isso, os atos (verbais ou não) cotidianos servem de indícios de interpretação de si e do outro, comportando a estrutura do sistema de conhecimento cultural que engloba tais ações (Lutz 1985). A linguagem, por sua vez pode ser apreendida pelos dizeres e ações das pessoas, e comporta hábitos e costumes que denotam saberes culturais (Ribeiro, 1996).

Conforme a linguagem se faz instrumental, pela escuta e observação, o instrumento de interpretação que vem sendo utilizado e desenvolvido no Laboratório de Etnopsicologia mostra ser pertinente ao presente estudo, já tendo sido utilizado em investigação com povos indígenas (como em Tiveron, 2014), e alicerça a prática investigativa desse estudo – um estudo de caso coletivo em campo etnográfico. Esse instrumento denomina-se escuta participante (Bairrão, 2005, 2015) e propõe a percepção dos sentidos presentes nas falas dos participantes que podem não ser conscientemente ditos, mas que implicam uma enunciação do inconsciente que revela posições de sujeito imerso em uma matriz discursiva. Essa distinção advém da psicanálise lacaniana distinguindo um Eu, do enunciado consciente, da enunciação inconsciente que demarca posições de sujeito perante à estrutura do discurso – que por sua vez está suposto na partilha de significantes socioculturais (Bairrão, 2015).

Nessa relação conceitual, está referido um sujeito constituído, dependente e ator nessa relação com os outros e o universo simbólico do qual emergiu, universo que por sua vez é marcado por surpresas, paradoxos, atos falhos, zonas de silêncio ou de estranheza que enunciam memórias ou traços sociais. Essas marcas enunciam justamente o que escapa de ser simbolizado (Bairrão, 2012). Portanto, cabe a possibilidade de investigação do inconsciente, conceitualmente presente como parte faltante no discurso concreto, através de suas partes efetivamente proferidas nesse discurso (Lacan, 1966).

Além disso, a escuta participante tem raízes na técnica etnográfica da observação participante, desenvolvida por Malinowski, envolvendo a escrita minuciosa do campo de pesquisa em diário de campo a fim de que se registre a organização social, seja ela física ou da própria relação com que o pesquisado desenvolve com o campo (Bairrão, 2012). Malinowski (1984) contempla o estudo da sociedade como totalidade, a partir de seu funcionamento no momento de sua observação. Sua etnografia busca inserção no contexto natural para acessar experiências, comportamentos, interações e documentos do grupo estudado, buscando a compreensão de sua dinâmica particular. Se visa a compreensão dos significados atribuídos pelos próprios sujeitos ao seu contexto e cultura. A escuta participante depende dos traços do observador serem subtraídos à sua observação, de forma a repor o sujeito no seu efetivo estatuto de desconhecido – permitindo subtrair, de suas evidências de escuta, o próprio inconsciente (Bairrão, 2011) para tal, a percepção subjetiva do pesquisador é digna de atenção, mesmo que nas interações se pretenda realizar uma suspensão do juízo pessoal de forma que se permita a compreensão da realidade empírica do campo pelo intermédio dos participantes.

O rigor científico deste método se dá na responsabilidade de apreensão do que é manifesto no campo de pesquisa, implicados nas enunciações significantes presentes nos atos dos participantes. Os sentidos apercebidos pelo pesquisador são verificados pelos participantes, para o encontro ou não de ressonância semântica, para além da mera assimilação do pesquisador. A relação transferencial entre participante-pesquisador denota instrumento valioso, a fim de que se perceba em que posição o pesquisador e pesquisado se colocam na narrativa de interação (Bairrão, 2015) – aspecto em que a escuta participante se mostra indispensável para o presente estudo.

Pelas posições assumidas pelo pesquisador e participante se podem mapear demandas e formas de vínculo – modos de apreensão da linguagem e cultura da alteridade pelos participantes. Essas repercussões subjetivas da interação compõem informações sutis sobre a relação que não poderiam ser verificadas de outra forma. Ser afetado, portanto, é dimensão central do trabalho de campo, e as percepções subjetivas devem ser descritas no diário de campo (Favret-Saada, 2005). Para a análise do campo, nem sempre é necessário que um colaborador empírico fale. No contexto de um campo considera-se o conteúdo livros, um mitos, uma inferências lógicas que se repetem, podem valer como dito, mesmo sem terem sido vocalizados. Cabe ao cuidado do pesquisador que essas associações sejam dialógica e diacronicamente ratificadas e sancionadas em campo. As respostas (do Outro, a posição do campo simbólico) são atuadas ou mostradas em acontecimentos e não propriamente narradas (Bairrão, 2015).

A escuta participante como técnica etnográfica, contribuindo para situar o intérprete em posições discursivas no campo da linguagem investigada (o simbólico do campo empírico), para além da observação apenas de transformações factuais da identidade indígena, mas enquanto possibilidade de interação semântica, dispostos em comparação com o conhecimento produzido pelos participantes a partir da escuta. Se busca um campo de valências subjetivas, de possibilidade de criação de sentido e inserção dos atores dentro desse campo semântico a que se dará ouvidos.