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4.2 Descrevendo e discutindo os resultados

4.2.3 Demandas de consumo e a fragmentação do lugar

A cidade é formada por lugares (familiares, cheios de significados, dos hábitos conhecidos e reproduzidos, da norma) e espaços indiferenciados (vazios de significados, amplos, desconhecidos, estranhos) (TUAN, 1983) que se sobrepõem ao longo do tempo estabelecendo uma configuração territorial única, tanto técnica quanto antropológicamente.

Nesta perspectiva, a Barra de São Miguel, para o morador, – mesmo com dimensões urbanas diminutas – revela-se fragmentada, e os lugares do acontecer da vida não compreendem a cidade (perímetro urbano) em sua totalidade, mas a parcelas dela, comprovada por meio dos itinerários cotidianos. Desconstruindo a ideia de a pequena cidade poder ser “vivida [...] em todos os seus cantos” (CARLOS, 2007b, p.17).

Deste modo, a premissa de que cidades menores permitem ao habitante uma experiência e conhecimento total das mesmas, não corresponde à realidade. Outros fatores deverão ser considerados para se chegar a uma consideração acertada. Exemplo relevante, são os mecanismos econômicos e políticos hegemônicos e exógenos. No caso da Barra de São Miguel, estes mecanismos hegemônicos são representados pelo turismo e seus empreendimentos, inclusive imobiliários.

Por se tratar de uma cidade de interesse para mercado capitalista, de grande potencial turístico, e ter o segmento de segunda residência como principal expressão, a Barra de São Miguel tem distinções territoriais significativas, que são percebidas pelo seu habitante.Do mesmo modo, o mercado imobiliário tem transformado consideravelmente as feições da cidade, elevado o valor dos terrenos e determinado a ocupação do solo urbano. Algumas

divisões administrativas31 – Porto das Vacas, Brejo e Barra Mar – são caracterizadas como áreas de expansão urbana típicas para veraneio, pousadas e hotéis, onde se encontram edificações de alto padrão técnico de engenharia, ocupando lotes imensos e arquitetura diferente da vernácula.

Durante a maior parte do ano, as ruas dessa área encontram-se desertas, as casas fechadas, as pousadas com baixa ocupação, lojas e lanchonetes deixam de funcionar. Lembram um grande parque temático fechado para manutenção: vazio, silencioso e sem vida. Durante o verão, no entanto, o quadro se inverte: pousadas repletas de turistas, casas de veraneio lotadas, grande número de veículos transitando pelas ruas estreitas da cidade, supermercado, lojas e lanchonetes funcionando dia e noite, shows e espetáculos culturais diários.

O mercado turístico exerce grande influência na captação do território da cidade para mais empreendimentos voltados para interesses externos e para atrair consumidores de outras cidades e estados, e afastar o morador. Gera espaços estranhos, não-familiares e não- relacionais para aqueles que ali vivem e reproduzem suas vidas. Os espaços do espetáculo turístico e imobiliário são os mesmos lugares não-identitários identificados pelos moradores como ausentes de significados, de referenciais, de conhecimento e de história (AUGÉ, 1994; DEBORD, 1997).

Esta realidade é constatada nos relatos, nas comunicações e na forma do morador expressar o que sente e pensa. O que se pretende agora é confirmar as considerações conseguidas com os itinerários. Ao perguntar se existem diferenças (e quais diferenças) entre o lugar de moradia e a cidade como um todo, obteve-se como resposta: 90% dizem que sim, contra 10% que dizem não. As respostas e explicações desta questão fazem parte do procedimento de associação livre. Na tabela 07 são descriminadas as diferenças declaradas.

TABELA 07 – Diferenças verificadas pelo morador na cidade

Respostas %

Existem duas Barras: a dos ricos e a dos pobres 88,0

A tranquilidade 2,0

Não se aplica* 10,0

Total 100,0

Fonte: o autor/2012.

*Os 10% que dizem não ver diferenças entre o lugar de moradia e outros lugares da cidade.

31

Segundo a tabela e relatos, 88% dos depoentes percebem a existência de duas cidades: a Barra de São Miguel – dos ricos – limpa, pavimentada, saneada e a Barra de São Miguel – dos pobres – em que o lixo fica quadro dias nas ruas sem ser recolhido, lama e buracos por toda parte, e falta de manutenção dos equipamentos urbanos. Conforme os resultados do instrumental, a figura 56 ilustra a divisão percebida pelo morador.

FIGURA 56 – Duas cidades percebidas – Barra de São Miguel/AL

A área em azul da figura delimita o lugar do acontecer da vida. É o loco das relações com o outro e com os espaços urbanos, onde a realidade ordinária e cotidiana – feita de fatos e acontecimentos que mantém a vida – nasce e se constitui (DAMIANI, 2007, p. 164). E é por meio do uso e da apropriação espacial que o homem – no contato diário do seu corpo (sentidos corpóreos) com os objetos e os equipamentos urbanos – transfere aos espaços significados e sentidos únicos (CARLOS, 2007a; TUAN,1983).

As relações cotidianas culminam em laços de identidade com os espaços urbanos, ou seja, o vivido encontra sua realização plena e de fato enquanto processo espacializado,

enquanto identidade com o espaço, gerado pelo uso e apropriação através do corpo e dos sentidos – assim o homem percebe o mundo e o reproduz (CARLOS, 2007a, p. 17).

Desta forma, dá-se o processo ininterrupto de construção do lugar identitário: conhecido e reconhecido em cada canto do dia a dia; repleto de subjetividades adquiridas no linear curso da vida, no ir e vir dos afazeres ordinários (CARLOS, 2007b); palco de relações dialéticas entre necessidades humanas e determinações técnicas.

É no lugar identitário, no perímetro do acontecer da vida, que a história do indivíduo é escrita, não com tinta e em papel, mas com o pó do chão, com o suor diário, no calor das emoções e dos acontecimentos, no contato direto e íntimo com o outro (vizinhos, amigos, parentes).

No entanto, devido a ação do mercado consumista, a cidade apresenta-se, ainda, como um espaço em migalhas, estando estas últimas ligadas por conexões hierárquicas. Assim, a área destacada em vermelho, na figura, representa a confluência entre lugar não-identitário e o território onde os agentes do capital exercem suas forças e concretizam as transformações necessárias para adaptar o local aos moldes gerais de consumo. E, a partir deste ponto, tem-se irradiado por parcelas de solo, ainda não ocupadas, do município – apropriando-se do território.

Como foi dito anteriormente, o turismo e a especulação imobiliária são as principais expressões da mercantilização do território da Barra de São Miguel. São responsáveis pela abertura (dissolução) das fronteiras para ações econômicas exteriores (CARLOS, 2007c, p. 174) e transformação da cidade em um território-mercadoria, destruída, pasteurizada e adaptada para atender a sociedade do consumo (DEBORD, 1997, p. 109).

Os condomínios-clube (pontuados no primeiro capítulo) são a materialização (resultado e expressão) desta conjuntura acima descrita: resultam da assimilação do território por agentes exógenos, que têm por interesse transformá-lo em mercadoria, exaltando suas potencialidades paisagísticas naturais, criando a pseudo-imagem de maior balneário turístico do estado e vendendo, esta realidade inventada, por meio das diversas mídias.

O lugar aos poucos perde seu caráter relacional para adquirir funcionalidades específicas: de recreação, diversão, lazer. E como tal não pode envelhecer, pois é palco do espetáculo do consumo, simulação do real (BAUDRILLARD, 1991; DEBORD, 1997) e manifestação do lugar não-identitário. Este processo de especialização do lugar, “retira [...] sua historicidade complexa, e ele tende a simulacro da história. Quanto mais inserido na

mundialidade, mais apartado da história, ainda mais se torna um sistema fechado em suas possibilidades” (DAMIANI, 2007, p. 164).

O turismo de segunda residência representado pelos empreendimentos supracitados, e outros lotes individualizados, paulatinamente, está fragmentando e isolando parcelas imensas do território e transformando-as em grandes parques aquáticos e complexos recreativo- esportivos, dos quais o morador não participa.

Com a venda dos apartamentos e lotes, surge outro tipo de relação socioespacial regida pelo consumo: os donos desta nova forma de morar são hóspedes na própria casa, são consumidores da natureza, da paisagem, do lazer, da felicidade vinculada à imagem criada do lugar pelo setor imobiliário. É a sobreposição do valor de troca ao valor de uso do lugar. Assim,

[...] não se vendem mais objetos, tijolos ou habitações, mas cidades. Isso significa dizer que o espaço torna-se mercadoria, entra no circuito da troca, e com isso espaços antes desocupados se transformam em mercadoria, entrando na esfera da comercialização (CARLOS, 2007c, p. 175).

Com isso, ocorre a modificação dos antigos lugares de uso em lugares de consumo: a praia deixa de representar diversão desinteressada, para ter funções específicas e normatizadas. Permanecer na faixa de areia é sinônimo de consumo de produtos, alimentos e serviços destinados a não moradores (turistas e veranistas). E, ainda, verifica-se que mesmo se tratando de uma cidade pequena, o morador não se reconhece em todos os cantos, nem mantêm contato com o perímetro urbano em sua totalidade, não se confirmando, deste modo, a reflexão proposta por Carlos (2007b) e problematizada no segundo capítulo deste trabalho.

Diante deste cenário, a relação morador-turismo é delineada, e o cotidiano sofre dinamização singular. No processo, as representações da atuação do segmento turístico são formuladas. Assim, o morador-entrevistado foi convidado a expressar seu pensamento a respeito do turismo. As associações livres atribuídas à questão foram categorizadas no gráfico 19, a seguir.

GRÁFICO 19 – Opinião sobre a palavra TURISMO

24%

48% 4%

2%

22%

Sentimento de descontentamento, não tem desenvolvimento nesta área, apesar da cidade ser muito conhecida.

Dinheiro para a cidade O morador não é beneficiário Deixa sujeira e lixo na cidade

Vantajoso apenas para comerciantes, donos de restaurantes e pousadas

Infere-se do resultado que, apesar de 48% dos entrevistados associar as atividades do turismo ao desenvolvimento econômico da cidade, para 52%, o turismo não trás mudanças significativas na vida pessoal (econômica e social). No entendimento dos entrevistados, a riqueza gerada permanece sob a custódia dos próprios agentes propulsores do turismo e não demonstram haver ligação da crescente ação do turismo com melhorias na qualidade de vida.

Simultaneamente, a lógica do consumo vem se consolidando ao longo dos anos na cidade da Barra de São Miguel, e gerando novos espaços, modificando as relações cotidianas com a cidade. São numerosos os estabelecimentos comerciais, lugares de consumo, voltados apenas a servir aos não moradores, (lanchonetes, lojas de moda praia, óticas, salões de beleza, bares, restaurantes, casas de shows), e que acompanham o movimento pendular dos veranistas: a maioria instala-se no verão e, terminada a estação, fecha as portas para só reabri- las no ano seguinte.

Um exemplo significativo das transformações drásticas e pontuais acontece no período do carnaval na Barra de São Miguel, pois 52% das pessoas entrevistadas afirma alugar suas casas durante o carnaval. E com o aluguel do imóvel, famílias inteiras migram para outras cidades (36%), outra parcela (56%) hospeda-se na casa de parentes que moram mais distantes da praia e dos locais onde acontecem os eventos festivos, e um pequeno percentual (8%) improvisa cabanas nos fundos da própria casa (gráfico 20).

GRÁFICO 20 – Lugar de destino quando aluga a residência

Este exemplo é revelador de que o turismo em desenvolvimento na cidade da Barra de São Miguel inclui o morador da participação em suas promoções, atividades e expressões. O modo encontrado por uma parcela significativa dos moradores para benefício próprio foi garantir renda extra para a família por meio dos alugueis por temporada (valor praticado varia entre R$ 1.000,00 a R$ 3.000,00, dependendo do tamanho do imóvel). O que representa um ganho expressivo diante da renda familiar (78% têm rendimentos abaixo de um salário mínimo).

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Casa de parentes na Barra de São Miguel Casa de parentes, em outra cidade. Uma cabana no quintal de casa Casa própria, em outra cidade

56% 32%

8% 4%

Estas atividades do turismo e seus empreendimentos são representantes do exótico, instalam-se na cidade não em solicitação às necessidades autóctones, mas para atender demandas consumistas inventadas e externas, são o lugar não-identitário, e por excelência transformam grandes parcelas da área urbana em simulacro, no intuito de atrair muitos consumidores, elevar o lucro e, consequentemente, a (re)produção do capital (BAUDRILLARD, 1991).

Esta concepção é verificada nos depoimentos a seguir: ao ser perguntado sobre os aspectos positivos e negativos do turismo, o entrevistado depôs livremente seu pensamento elencando respostas para cada categoria. Primeiramente, explorar-se-á os aspectos categorizados como negativos sobre o turismo – gráfico 21.

GRÁFICO 21 – Aspectos NEGATIVOS do turismo

Assim, corroborando com o explanado no decurso do capítulo, os aspectos negativos apontados pelos entrevistados sobre o turismo, revelam o papel segregador desempenhado por este segmento econômico em relação aos moradores do lugar: 19% dos entrevistados verificam que os preços de tudo que é comercializado na cidade ficam abusivos, principalmente, no período da alta estação turística. E os lugares de lazer, recreação, diversão que surgem sazonalmente na cidade, cobram valores excessivamente altos para os padrões de consumo locais, gerando um processo de exclusão socioespacial, acentuando as fronteiras que separam a cidade vivida pelo morador da cidade cooptada pelo capital.

Deste modo, impõem-se limites ao passo e ao uso dos espaços urbanos pelo morador, privatizando-se os lugares e encarecendo-se produtos, serviços e alimentos. A cidade é transformada em mercadoria para não moradores, em virtude dos preços proibitivos praticados. Além, evidentemente, do fato do turismo tornar a cidade suja (para 15% dos

0% 10% 20% 30%

A cidade é apenas estacionamento de ônibus Os preços dos produtos aumentam Sujeira Não trás benefícios para os moradores Barulho Violência Única opção de lazer é a praia Muitos quadricículos e trânsito ruim

26% 19% 15% 14% 14% 6% 3% 3% Fonte: autor/2012

entrevistados), barulhenta (14%), violenta (6%) e – reafirmando – não oferece benefícios, diretos, para os moradores (14%).

Como é possível perceber muitos pressupostos teóricos adotados nesta pesquisa são ratificados, ao longo do tempo, pela aplicação do instrumental metodológico e, principalmente, pelos resultados empíricos obtidos. Comprovando-se a eficácia da tríplice fundamentação que concatena teoria, metodologia e prática.

Um aspecto importante percebido pelos entrevistados, que tem se acentuado nos últimos anos, é o fato da cidade estar se tornando um ponto de apoio para os receptivos de turismo: grande número de ônibus fica estacionado na cidade e os turistas seguem de barco para praias (por exemplo, praia do Gunga em Roteiro) de municípios circunvizinhos.

As implicações econômicas e sociais desta organização turística são: a queda do faturamento do comércio formal (bares, restaurantes, pousadas e hotéis), desaparecimento do comércio informal (vendedores ambulantes de lanches, artesanato, souvenir), estagnação e falência do setor de serviços, e, consequentemente, diminuição do número de empregos formais permanentes, e redução das possibilidades de renda extra para os habitantes pobres – boa parte sem qualificação profissional (46%) e/ou com baixa escolaridade (58%)32.

Mesmo analisando os aspectos positivos citados pelos entrevistados, infere-se que 25% dos entrevistados não percebem nenhum aspecto relevante (Gráfico 22). Torna-se patente, por meio das comunicações, que o turismo tende a ser percebido e representado por meio das tensões que provoca e na sua forma predatória, na qual sua atuação é pouco compatível com os desejos, necessidades e interesses do morador.

GRÁFICO 22 – Aspectos POSITIVOS do turismo

32

Conferir gráficos 5 e 7, respectivamente páginas 95 e 96, capítulo 4.

0% 5% 10% 15% 20% 25%

Não vê aspecto positivo Renda para os moradores Emprego para os moradores Desenvolvimento para a cidade Movimento de pessoas Trás eventos, shows para a cidade A cidade fica mais limpa

25% 23% 23% 15% 6% 5% 2% Fonte: autor/2012

Esta percepção do turismo aponta para o entendimento de que as construções mentais levam em conta não apenas os elementos reificados do entorno, mas, também, as forças exógenas intangíveis atuantes no lugar de convívio diário. Mesclando as três figuras do excesso (AUGÉ, 1994) com a estrutura espacial circundante (LYNCH, 1997) para a formulação das representações socioespaciais.

Apesar das tensões entre interesses capitalistas e a produção (manutenção da vida) do cotidiano, existe afinidades do morador com o turismo, enquanto fonte de renda e emprego, possibilidade de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento para a cidade. (resultados associados tanto aos aspectos positivos quanto ao significado do turismo e apresentados no gráfico anterior e no gráfico 23, a seguir).

GRÁFICO 23 – Significado do turismo para a cidade

Infere-se, então, que existe uma segregação espacial, reconhecida pelo morador- entrevistado, mas não há uma rejeição, plena e total, em relação ao turismo e suas ações na cidade. Este dado é confirmado ao avaliar-se as respostas à questão sobre o que é viver na Barra de São Miguel. Entende-se que mesmo com a consolidação de uma estrutura socioeconômica excludente a cidade é considerada tranquila e boa para se viver, por 84% dos entrevistados. Ver gráfico 24.

GRÁFICO 24 – O que é viver na Barra de São Miguel

0% 10% 20% 30% 40% 50%

Fonte de renda Desenvolvimento O turismo é muito fraco Emprego 50% 18% 18% 14% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80%

É bom, pois é uma cidade tranquila, própria para descanso Aqui é um paraíso. Ninguém morre de fome, tem o mar e o

rio para tirar o sustento e a sobrevivência É ter uma vida digna, porém falta emprego. Não gosto de morar aqui. Caso tivesse condições já teria ido

embora

A vida aqui é muito sofrida. O Padrão de vida é muito caro.

72% 12% 8% 6% 2% Fonte: autor/2012 Fonte: autor/2012

Este fato é revelador de um processo dinâmico e, por isso mesmo, não acabado operante na Barra de São Miguel, no qual, as tensões são constantes e muitas vezes tendem a se sobrepor reformulando as relações ordinárias e redimensionando, resignificando o lugar em que a vida acontece. E o morador tende a adaptar-se às novas determinações socioespaciais, criando novos vínculos, novos laços e novas representações.

Assim, decorrente do status quo apresentado, a cidade, mesmo pequena, apresenta-se repleta de contradições: existe a convivência simultânea entre elementos coercitivos e libertários, o conflito e a paz, o possível e as ações limitadas, as livres escolhas e os atos coordenados (normatizados), o cheio e o vazio, os sentimentos de identidade e estranhamento, a passagem e o permanecer, a continuidade e a descontinuidade, o fluido e o estático, o duradouro e o efêmero, o público e o privado, a memória e a amnésia, a construção e a destruição, o belo e o feio, o velho e o novo, o histórico e o anistórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Barra de São Miguel, como a maioria das cidades litorâneas do Nordeste brasileiro e do interior alagoano, sofre o processo de valorização exponencial do solo urbano e, consequentemente, a transformação da configuração espacial de seu território por meio de diversos empreendimentos nitidamente turísticos – hotéis, bares, restaurantes, condomínios, casas de veraneio com alto padrão arquitetônico, etc. Neste contexto, novas demandas de consumo surgem com os visitantes/turistas, e as redes de relações socioespaciais são reconfiguradas, gerando rupturas dos laços de familiaridade e lacunas no cotidiano vivido dos moradores da cidade.

Ao longo do processo de constituição do seu território, o município evoluiu de uma pequena vila de pescadores e marisqueiros (no início do séc. XVI), para um renomado balneário turístico de grande importância econômica para diversos segmentos empresariais atuantes no Estado de Alagoas, nos dias atuais. Assincronamente, os aspectos sociais da cidade não se desenvolveram no mesmo ritmo do crescimento econômico, constituindo uma frágil estrutura socioespacial e econômica.

Destarte, o modo como o habitante interage com a Barra de São Miguel está relacionado a diversos elementos atuantes no território do município – inclusive aos que têm origem e respondem a interesses exógenos. Deste modo, os laços de familiaridade, o sentimento de pertencimento, a imagem mental formulada, a atribuição de significados, as comunicações e a percepção da cidade revelam-se por meio da relação bilateral entre habitante/lugar/mundo, numa estrutura complexa de convergência de forças econômicas e políticas.

Nesta perspectiva, o viés escolhido nesta dissertação para se chegar ao entendimento das percepções e formulações mentais sobre a cidade foi a partir do estudo do diálogo cotidiano entre os homens e o espaço urbano em seus itinerários, tendo como pano de fundo os enlaces econômicos de consumo do lugar.

Inicialmente, levanta-se como hipótese que a representação da imagem da cidade, formulada pelo seu morador, evidencia contradições originárias do processo de expansão do mercado consumista (e excludente) em seu território, e consequentemente tem expropriado,

em um curto período de tempo, parcelas significativas do solo urbano para incorporá-las às atividades turística e imobiliária de lazer e de segunda residência.

Essa dinâmica singular, no território desta pequena cidade, tem provocado, ao longo dos anos, acelerada transformações no espraiamento técnico e arquitetônico, nas redes de relações socioespaciais, no cotidiano vivido pelos moradores. Por conseguinte, para [re]adaptar-se às novas nuances espaciais, o homem – dada suas limitações corpóreas – necessita de um tempo diferente para assimilá-las. A quebra das relações familiares do habitante com a cidade e, consequente despontar de lugares não-identirários, ocorre, inclusive, devido ao processo assíncrono entre o tempo de reprodução da vida humana e o tempo de evolução da técnica.

Nesses moldes, a representação do lugar obteve resultado bastante heterogêneo: o morador-entrevistado (55%) representa seu lugar por meio de elementos tradicionais (igreja, casa antiga) e modernos (agência bancária e supermercado) evidenciados no território vivido, e por meio da riqueza (áreas turísticas) e da pobreza (ruas lamacentas) verificadas nas diferentes tipologias habitacionais e na manutenção das áreas e dos equipamentos urbanos públicos.

A praia e o rio representam trabalho e sustento para o morador (76%) – é o lugar do uso – e, ao mesmo tempo, lazer oferecido aos visitantes (73%) – lugar funcional. Essas