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Demente: o abjeto que nada viveu

No documento sandramacieldecarvalho (páginas 124-128)

4. De 1998 a 2010: três processos, diferentes sujeitos

4.2 Doze anos em exame: a análise do discurso foucauldiana dos processos judiciais

4.2.3 O discurso jurídico designando posições de sujeito

4.2.3.3 Demente: o abjeto que nada viveu

O processo de interdição e curatela de Douglas, aberto em função do pedido de seu irmão “unilateral” em agosto de 1998 e que suscitou o problema de pesquisa apresentado nesta dissertação, teve como desfecho sua “Interdição Definitiva” averbada “à margem do

termo de nascimento”, em função de “sofrer o mesmo das faculdades mentais”, como está

doença mental e seus atos do cotidiano revelam incapacidade para reger sua própria pessoa e administrar seus bens, estando internado inclusive na Clínica X” (Grifo meu). Esta “doença mental” estaria supostamente comprovada pelos dispositivos médicos “Atestado de Internação e Alta100” da Clínica X e por um documento sem título, onde constam os “Quesitos Apresentados pelo Requerente”. No documento sem título, onde constam os “Quesitos Apresentados pelo Requerente”, pode-se ler que, provavelmente, o médico que

havia sido designado pelo Juiz101, afirma que Douglas apresenta “Distúrbios psiquiátricos

Deficiência Mental (Oligofrenia)”, “Psicose Esquizofrênica”, sendo a “doença” irreversível,

não sendo ele “capaz de reger sua pessoa e bens” “Internações Múltiplas em Clínica

Psiquiátrica”. Ao longo do processo, esse último dispositivo é citado para justificar a

interdição de Douglas nos seguintes documentos: (1) “Parecer do Ministério Público”: “De

acordo com as conclusões contidas no laudo pericial [...] Douglas padece de anomalia psíquica, de caráter irreversível, que o torna incapaz de reger sua própria pessoa e administrar seus bens e negócios.” e (2) no documento onde consta a decisão judicial: “verifica-se que o interditando, que realmente sofre de anomalia psíquica, de caráter irreversível, conforme se depara no laudo pericial de fls.25, precisa de ser-lhe nomeado curador” (Grifo meu). Torna-se importante ressaltar que a suposta “doença mental” de

Douglas estaria comprovada, também, através de critérios subjetivos, como a suposta afirmativa de seu irmão na Defensoria Pública, ao requerer sua “Interdição e Curatela”:

“pelos motivos de fato e de direito [...] eis que é irmão do paciente Interditando [...] O Paciente sofre de doença mental e seus atos do cotidiano revelam incapacidade para reger sua própria pessoa e administrar seus bens” e, também, pela avaliação empírica do Promotor

de Justiça, relatada no “Parecer do Ministério Público”: “padece de anomalia psíquica, de

caráter irreversível [...] Aliás, tal fato já ficara evidenciado, quando do seu interrogatório em juízo”. O Promotor de Justiça parece tão seguro de sua avaliação que, nesse documento

100 Ressalta-se que esse atestado é um formulário que tem, por finalidade, comprovar a alta do paciente, sendo o

texto original: “Atestado de Internação e Alta – Atesto que o(a) paciente _____ esteve internado(a) nesta

CLÍNICA no período de _/_/_ a _/_/_, para tratamento Médico Psiquiátrico.” No documento apresentado no

processo de Douglas, há uma rasura no verbo “esteve”, tendo sido datilografado o verbo no presente: “está” e, o espaço destinado à data da alta foi preenchido com diversos traços, estando datilografado, acima, a palavra

“indeterminado”.

101 Esse documento é um papel timbrado do Poder Judiciário do Estado de Minas Gerais, onde constam, além

dos quesitos e respostas, a identificação “Secretaria da Segunda Vara Cível”, “Proc. [nº]”, “Interditando –

Douglas”, “Quesitos Apresentados Pelo Requerente” e dois carimbos da respectiva secretaria. Não é possível

identificar o suposto profissional que assina o documento, estando o carimbo (profissional?) ilegível, assim como a assinatura.

citado, em seu “Parecer” (“Interrogatório Pessoal do Interditando”), pode-se ler: “Dada a

palavra ao Dr. Promotor de Justiça nada quis perguntar”.

Dessa forma, Douglas tem sua posição de sujeito “doente mental” designada já no início do processo e enfatizada em quase todos os momentos em que é enunciado: “O

Paciente sofre de doença mental” (fl.02), “internado(a) nesta Clínica [...] para tratamento Médico Psiquiátrico” (fl.07); “Apresenta Distúrbios Psiquiátricos Deficiência Mental (Oligofrenia)” (fl.25); “portador de deficiência mental”, “padece de anomalia psíquica”

(fl.29); “o mesmo sofre de doença mental” (fl.33); “é pessoa que sofre de anomalia

psíquica”, “pessoa portadora de anomalia psíquica de caráter irreversível”, “realmente sofre de anomalia psíquica de caráter irreversível” (fl.34); “por sofrer o mesmo das faculdades mentais” (fl.37 e fl.39). Essa posição de sujeito “doente mental” não é

questionada ao longo do processo, ainda que designada a partir de uma suposta afirmação do irmão de Douglas à Defensoria Pública, respaldada por um documento rasurado que comprova sua internação, curiosamente providenciada 15 dias antes do pedido de Interdição e Curatela (Grifos meus).

Como foi explicitado no início desta análise, foi, em função desse processo de interdição e curatela de Douglas, que o problema de pesquisa desta dissertação surgiu. A afirmação “Não converso com demente” pronunciada oito anos depois da abertura do processo, é um exemplo da “mecânica grotesca do poder” que Foucault (2001) afirma estar presente como um dos procedimentos necessários à soberania arbitrária e também inerente à burocracia aplicada. Uma forma de expressão do discurso que o autor classifica como “estatutário e desqualificado” que tem seu suporte nas instituições judiciária e médica, o discurso de “Ubu102”. Verifica-se que, mesmo anos depois, a “melhor” posição de sujeito

designada à Douglas pelo discurso jurídico, é a posição de sujeito “doente mental”, agora enunciada como “demente”.

Quando decretada sua interdição judicial e nomeada curadora, a tia que o teria “jogado na rua”, as possibilidades de resistência por parte de Douglas tornam-se escassas. No “Interrogatório Pessoal do Interditando”, realizado pelo Juiz de Direito, suas palavras foram anuladas através do objeto direto “nada” que cumpre também a função de, sinteticamente, adjetivar todo o seu depoimento que vem a seguir: “que inquirido pelo Juiz

102 Segundo Muniz e Sodré (2004), Foucault recorre ao personagem Ubu, da peça teatral “Ubu roi”, de Alfred

Jarry, para fundamentar sua teoria de que existe uma categoria precisa da análise histórico-política, que seria a categoria do grotesco ou do ubuesco. Para Foucault (2001), o terror ubuesco pode ser compreendido como “a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz, sendo uma engrenagem inerente aos mecanismos de poder. Segundo o autor, da soberania arbitrária à burocracia aplicada, o grotesco é um procedimento inerente, perpassando todos os graus do que se pode chamar indignidade do poder” (p. 15).

nada respondeu, que [...] residia na cidade de Z e atualmente reside nesta cidade, que [...] presenciou o assassinato de sua mãe, quando tinha treze anos de idade, sendo encaminhado posteriormente para a FEBEM pelo seu pai, quem assassinou a mãe do depoente foi um tal de João que trabalha na [nome da empresa], que [...] já trabalhou em um sítio atualmente está parado, que não sabe ler e nem escrever, que não conhece dinheiro, que [...] chegou a ir somente um dia na aula, que atualmente está morando com o seu irmão; que a tia do depoente jogou o depoente na rua; Que a tia do depoente chama Rita”(Grifos meus).

Assim, a história de vida enunciada no documento como sendo relatada por Douglas torna-se “nada”: presenciar o assassinato da mãe, ser encaminhado para a FEBEM pelo próprio pai, não saber ler ou escrever, não conhecer dinheiro, ir somente a um dia de aula, ter sido jogado na rua pela tia, tudo isto é “nada”. Questiona-se: vivências que supõem um grande sofrimento desde a infância e que se resumem a “nada” frente ao Poder Judiciário, designam qual posição de sujeito a Douglas, uma vez que sua história de vida não pode ser dissociada de sua subjetividade? A posição de sujeito “nada” também. Douglas é

“nada”, portanto, tudo o que lhe aconteceu ou vier a acontecer com ele pode ser considerado

“nada”.

Dessa forma, ocupar a posição de sujeito “demente” pode ser concebido uma benesse para este ser abjeto103; que nasceu em 1969, mas teve sua certidão de nascimento lavrada apenas em 1992; que é levado ou deixado como um objeto nas viagens do irmão; que tem sua saúde mental avaliada e sua “insanidade” “decretada” através de um documento com cinco itens, cujas respostas somam 23 palavras, sem o CID104 correspondente, por um médico que não se sabe quem é e qual sua especialidade; e com quem os “laços afetivos” possíveis de se estabelecer são jogá-lo na rua. Consequentemente, ninguém melhor para ser sua curadora do que a pessoa que o trata como “merece”: “a lei processual exige que, além de ser

parente, este tenha com o interditando laços de afetividade e proximidade que o façam capaz

103 O conceito de abjeto, apesar de utilizado em contexto diverso, está em consonância com o conceito de

abjeção em Judith Butler que, ao trabalhar o sujeito e o sexo, afirma que os sujeitos são formados a partir de uma matriz excludente que exige a produção simultânea dos que ainda não são sujeitos, os seres abjetos. “O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabilitabilidade constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela constitui aquele local de temida identificação contra a qual – e em virtude do qual – o domínio do sujeito circunscreverá sua própria reinvindicação de direito à autonomia e à vida. Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, “dentro” do sujeito como seu próprio e fundante repúdio”. Butler, J. (2000). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, G.L.(org.) O corpo educado: Pedagogias da Sexualidade. (2ª ed.) Belo Horizonte: Autêntica.

de saber das razões que tornaram necessária a medida pleiteada e de compreender da sua conveniência. É o caso dos autos, indubitavelmente” (Juiz de Direito) (Grifo meu). O

parentesco e os “laços de afetividade e proximidade” já estão claros no “Interrogatório” de Douglas, entretanto, as “razões que tornaram necessária a medida pleiteada e de

compreender da sua conveniência”, só se esclarecem anos depois, quando ele revela à equipe

do CAPS os maus-tratos, abandono e negligência que sofria por parte da curadora.

Logo, pode-se compreender porque, ao tentar oferecer resistência ao denunciar a curadora para o Ministério Público e, mais tarde, ao tentar ser ouvido pela Promotora de Justiça, Douglas não pode sequer entrar em seu gabinete. Ele não é digno de conversar com ela. Como abjeto que é, sua exclusão precisa ser concreta, ele precisa ficar fora: fora do rol dos “nascidos”, fora da cidade, fora da escola, fora de casa, fora da sala da Promotoria. Ele só pode estar “dentro”, se for da clínica psiquiátrica ou do CAPS, lugares a serem ocupados pelos “dementes”, “anti-sociais” e “hipossuficientes”, fabricados pelos dispositivos médico- jurídicos, como se constatou na análise das posições de sujeito dos três processos que compõem esta dissertação.

4.2.4 O diagnóstico de transtorno mental em ação: enunciados a que se associam e/ou se

No documento sandramacieldecarvalho (páginas 124-128)