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Democracia como proteção

1.3. Os modelos de democracia liberal

1.3.1. Democracia como proteção

De um modo geral, o paradigma da democracia protetora encontra como justificação maior para a adoção de um sistema democrático de governo a função de proteção que somente este regime pode propiciar aos governados contra a opressão do Estado. Este primeiro modelo foi elaborado e defendido principalmente por Jeremy BHENTHAM e James MILL, e tinha como base a doutrina utilitarista.72

Brevemente, podemos dizer que o utilitarismo defende que o único critério racional para determinar-se o bem social é a maior felicidade do maior número possível de membros

69 MACPHERSON, C. B, La democracia liberal y su epoca. Trad, de Fernando Santos Fontela. Buenos Aires: Alianza, 1991, p. 20.

70 Define assim sua noção de modelo, ou paradigma: “construção teórica, destinada a exibir e explicar as relações reais que subjazem às aparências, existentes entre os fenômenos que se estudam ou no interior de cada um destes”. Aplicados às ciências sociais, os modelos apresentam três dimensões: (1) possibilita fazer asserções acerca das probabilidades de mudança do modelo; (2) oferecem não apenas descrições neutras dos fenômenos estudados, mas implica uma justificação, mesmo que explicitamente negada, como no modelo de democracia como equilíbrio, constituindo uma dimensão ética ou normativa; (3) os modelos trabalham com uma concepção de indivíduo, e esta concepção pode ser evolutiva ou estática. Idem, p. 11 e ss.

71 O quarto é o proposto normativamente pelo próprio autor, e consiste num paradigma participacionista 12 ”A partir de BENTHAA4 utilitarismo e o liberalismo passam a caminhar no mesmo passo, e a filosofia utilitarista torna-se a maior aliada teórica do Estado liberal'’. Em: BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6a ed, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 63-4.

de uma sociedade; considerada a felicidade como quantidade de prazer e ausência de dor73. Nesta doutrina, os indivíduos são por natureza maximizadores ilimitados do seu prazer, com uma ênfase especial nos bens materiais. Como a conexão entre riqueza e poder é direta, um sendo o instrumento para a obtenção do outro, e considerando que as ações humanas são o maior meio de gerar riquezas, a sociedade é concebida como uma coleção de indivíduos que buscam incessantemente o poder às expensas dos outros.74

Neste contexto, a legislação é apontada com a quádrupla função de viabilizar a subsistência, produzir a abundância, favorecer a igualdade e manter a segurança. Mas, por trás deste enunciado genérico -encontramos-na verdade, "pela caracterização de cada função, uma justificação de um sistema de propriedade privada sem qualquer restrição. Vejamos.

No que toca à subsistência, a legislação faz melhor em abster-se de interferir, dado que mecanismos melhores -busca do prazer, temor da dor- estimulam o homem ao trabalho e assim promovem a subsistência dos membros da sociedade. O que cabe à lei é apenas proteger os trabalhadores na fruição do resultado de seu trabalho. O mesmo vale para abundância.

Quanto à igualdade, isoladamente vista aparece com grande generosidade. Dado que, quanto maior a riqueza, maior o prazer e a correlata felicidade, e considerando que todos os indivíduos têm a mesma capacidade de prazer, o máximo de felicidade total será obtido se as riquezas estiverem bem distribuídas. A primeira impressão se desfaz quando vê-se que BENTHAM subordina a igualdade à segurança.73

Neste campo, a legislação tem uma importante tarefa: garantir a propriedade individual, de modo a não desestimular a produção dos bens necessários à subsistência. A legislação não deve tentar igualar os indivíduos, já que, sendo naturalmente diferentes em capacidades e energia, sentir-se-iam desestimulados para produzir. Para BENTHAM, o sistema existente de propriedade deveria ser mantido em favor da segurança, ficando em segundo plano o valor da igualdade para evitar-se o desestímulo dos produtores.

73 "BENTHAM afirmava que o que é bom é o prazer ou a felicidade (empregava estas palavras como sinônimos) e o que é mau é a dor. Por conseguinte, um estado de coisas é melhor que outro se implicar uma maior quantidade de prazer que de dor, ou uma menor quantidade de dor que de prazer. De todas as situações possíveis, a melhor é a que implica maior quantidade de prazer que de dor. ” RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969, vol. IV, p. 335.

14 MACPHERSON, C. B, La democracia libera lysu epoca. Trad. de Fernando Santos Fontela. Buenos Aires: Alianza, 1991, p. 38.

Desta forma, temos que neste paradigma o sistema político deve atender a dois requisitos fundamentais: proteger a economia de mercado, deixando-a o mais livre possível e proteger os cidadãos contra a ganância dos governos. Neste segundo aspecto encontramos a justificação da adoção de um regime democrático. Pois, se o grupo no poder tende sempre a buscar a satisfação dos seus interesses particulares, tentará maximizar suas riquezas às custas da felicidade total dos governados. O remédio para evitar isto é colocar nas mãos dos governados o poder de revogar os mandatos dos governantes, periodicamente, ou seja, autoproteção através da democracia. Somente assim, acreditavam os corifeus destemodelo, os governantes tentariam conciliar seus interesses com o interesse público geral.76 J>

Considerando que na Inglaterra do início do século XIX já existia o Parlamento representativo, estando definidas as regras para escolha periódica dos seus componentes e do Governo, a questão que mais interessava era a da extensão do sufrágio, ou seja, a quem deveria ser estendido o direito de voto de modo a atender os requisitos da organização social consentânea com os princípios utilitários.77

Neste ponto, BENTHAM defendeu o sufrágio universal, o que melhor protegia os indivíduos contra os governantes, incluindo até as mulheres. Recuou, porém, quanto a estas últimas, pelo fato de que um tal avanço traria grandes perturbações à segurança da época em que se encontrava. O primeiro requisito, o da proteção do mercado livre, não estava ameaçado pelo livre sufrágio, dado que estava convencido que os pobres não atacariam a propriedade com o seu voto.78

James MTLL, conhecido seguidor de BENTHAM em sua doutrina, ademais de seguí- la com regularidade, acresceu um argumento forte à tese do sufrágio universal, em 1820. Para ele, o voto é poder político, estando quem não vota à mercê da opressão daquele que vota. Aduz um raciocínio que pode inscrevê-lo entre os partidários de um censo alto, afirmando que não necessitam votar aqueles cujos interesses encontram-se incluídos nos dos outros, como os das mulheres incluem-se nos dos pais ou maridos, e os dos mais jovens nos

76 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969, vol. IV, p. 336.

77 Para ROCHA: “O utilitarismo é, assim, uma teoria voltada para a defesa do indivíduo (ínexiste qualquer preocupação social), ameaçado, segundo BENTHAM, pelo poder crescente do Estado. Trata-se de uma form a política, na qual os cidadãos devem eleger o Parlamento, cuja maioria deveria indicar, com toda independência, o governo, estando os ministros responsáveis por seus atos perante a Câmara. Este sistema obteria a sua legitimidade pela ampliação do direito de voto a todas as camadas sociais, à procura de uma efetiva soberania popular. ” In: ROCHA, Leonel Severo. A democracia em Rui Barbosa: O projeto político liberal-racional. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1995, p. 14.

/8 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1969, vol. IV, p. 338.

dos mais velhos. Mas, acabava por defender o sufrágio universal, já que acreditava que os pobres sempre se deixam levar pela classe média.

Ambos criam que a política podia ser governada pela razão, defendendo a tese de que o resultado do livre sufrágio, desde que os lados opostos tivessem sido bem esclarecidos, expressava, nas decisões obtidas por maioria, uma resposta verdadeira.

Este, em grandes linhas, foi o modelo fundador da democracia ocidental moderna, conclui MACPHERSON. Este modelo toma o homem tal como estava configurado pela sociedade de mercado e o universaliza. Ror esta concepção os modelos posteriores o criticaram fortemente. BENTHAM e MILL não vislumbram7 a possibilidade de um novo tipo de sociedade ou de homem, visto restritamente como um maximizador de riquezas e explorador de outros homens. A democracia protetora era um modelo suficiente para esta determinada visão de mundo.79