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Deontologia Médica e Bioética

No documento Psicologia e bioética muller (páginas 59-68)

GENIVAL VELOSO DE FRANÇA∗

ntes, a Deontologia Médica era um assunto que dizia respeito apenas à profissão médica, distante de qualquer outro interesse que não fossem aqueles ditados e protegidos pelos ditames morais e culturais dos que exerciam a profissão.

Atualmente, isso não se verifica mais. A Deontologia Médica alcança aspectos significantes a partir do instante em que as grandes inovações no campo da saúde começam a modificar a vida humana e quando há dúvidas e reclamações na maneira como tudo isso ocorre. Como diz Martin:1

Desse modo, a Deontologia Médica vai pouco a pouco se transformando num projeto do interesse de todos, pois a vida e a saúde não são apenas do interesse dos médicos e de suas corporações, mas também de todos os segmentos da sociedade. Algumas das posições antes assumidas pelos médicos foram esquecidas e outras questionadas, sendo certamente reformuladas com o passar do tempo, pois muitas serão as pressões para isto. A velha fórmula de entender que o médico sabe sempre o que é bom para o paciente, sem nenhuma justificativa ou consentimento do paciente ou dos seus familiares, vai sendo paulatinamente substituída por outra onde as pessoas exigem o direito de saber as razões e os motivos do que nelas se faz. E, até mesmo, o direito e a motivação para cobrar do profissional possíveis danos onde fique manifesto o descumprimento de seus deveres de conduta ética ou de ofício.

“Além da questão técnica do que se pode fazer, surge a questão ética do que se deve fazer.”

Universidade Federal da Paraíba. 1

MARTIN,... A ética médica diante do paciente terminal. Aparecida: Santuário, 1993.

A

Isso quer dizer, portanto, que numa sociedade pluralista não sejam apenas os médicos a contribuir para a reformulação das regras éticas de suas atividades. Eles próprios reconhecem hoje a importância e a necessidade da contribuição que a sociedade como um todo venha a dar às questões cujas diretrizes e valores estão em jogo na relação cada vez mais trágica entre o médico e o paciente, principalmente com ênfase ao que se chama de “direitos dos doentes”. Tal fato está claramente evidenciado dentro de uma concepção que agora é chamada de “bioética”. Esta concepção fez com que, no atual Código de Ética Médica, a base dos direitos do paciente não seja mais pelo fato de ele ser doente, mas pela sua condição de ser humano. Houve, portanto, um notável avanço na relação entre o médico e a população, ambos como que assumindo um compromisso mais sério em querer transformar a sociedade.

Por outro lado, a socialização da medicina com a expansão dos serviços de saúde e a criação das instituições prestadoras da assistência médica, colocou-se entre o médico e o paciente, inclusive assimilando as situações novas e suas complexas implicações de ordem éticas e morais. E, assim, o que antes era apenas da exclusiva responsabilidade do médico, passou, também, a ser dessas instituições que prestam serviços à saúde, as quais não poderiam ficar indiferentes às normas que se inclinam em favor das ordens pública e do interesse social.

Desse modo, há motivos políticos e sociais que começam a reclamar dos médicos posições mais coerentes com a realidade que se vive. Um modelo capaz de revelar o melhor papel que essa postura venha desempenhar no complexo projeto de direitos e deveres, e que possa apontar, com justiça e conveniência, o caminho ideal na realização do ato médico e nas exigências do bem comum. Cria-se uma nova conceituação baseada em princípios de uma bioética, onde se faz uma ponte ou um elo mais ajustado entre as ciências da vida e o humanismo.

A Medicina sofreu um extraordinário e excitante progresso, obrigando o médico a enfrentar situações novas, algumas delas até em conflito com seu passado hipocrático. Situações jamais imagináveis começam a ser da rotina comum da prática médica, como os transplantes de órgãos e tecidos, a fertilização assistida e o próprio uso da cartografia do gene humano e, do desdobramento disto, a necessidade de se criar limites de regras éticas, colocando cada coisa no seu devido lugar: de um lado, a necessidade de se propiciar condições de vida e de saúde cada vez melhor; de outro, a preocupação de não se descuidar da dignidade humana.

Não é exagero dizer, portanto, que a saúde e a doença, como fenômenos puramente sociais, exigem soluções políticas. Exigiu-se do médico uma saída imediata em busca de um processo de conscientização crítica, no sentido de não perder seu direito de decisão. Ele não pode permanecer na periferia das doenças. Teve de reduzir seu poder sobre o indivíduo e ampliar sua capacidade de intervenção sobre o meio. Assim, as regras éticas contemporâneas, mesmo sem se distanciar das influências hipocráticas, foram necessariamente incorporadas às novas idéias oriundas de muitos anos de exercício profissional, de sentidas reflexões e de duros embates.

Tal fato se deve não apenas às questões de ordem econômica, social, política e jurídica, mas, também, às incursões de ordem filosófica que se registram na discussão e na avaliação sobre o poder médico. A Deontologia Médica mais tradicional vai se transformando, queira-se ou não, num ramo da filosofia moral e particularmente da ética prática, e isto, com certeza, se bem aproveitado, dará oportunidade para se responder a muitas questões que ainda continuam desafiando o estudioso desta matéria. Queira-se ou não, somos obrigados a reconhecer que muita coisa se deve às teorias filosóficas da moral quando se fala da evidente transformação da ética médica. Dificilmente a Medicina voltará ao tempo em que a sua ética era uma questão apenas corporativa. Assim, por exemplo, questões como o suicídio assistido, a cirurgia

transgenital e o próprio conceito de morte serão assuntos muito mais da discussão do conjunto da sociedade do que propriamente de uma decisão

interna corporis.

Se a Deontologia Médica é uma harmonia entre a teoria e a prática, não se pode carregar numa ou noutra coisa, pois se corre o risco de transformar a Medicina numa atividade eminentemente subjetiva ou reduzi-Ia a simples executora de regras técnicas.

Ninguém pode esquecer que as teorias dos filósofos da moral têm influenciado muito a forma de exercer a profissão naquilo que diz respeito a certas condutas até então inimagináveis, notadamente numa profissão de regras não-tradicionais. Isto não quer dizer que os médicos vão deixar que o curso de sua profissão seja ditado por aqueles pensadores. Não. Mas é muito importante que se aliem algumas propostas no sentido de restabelecer o humanismo que se perde a cada instante.

A Medicina viveu ao longo de muito tempo no período hipocrático, presa aos rigores da tradição e das influências religiosas. Pode-se dizer que esta fase permaneceu por muitos séculos e se estendeu até o final dos nossos anos cinqüenta. Já no século XVII e XVIII o pensamento ético se afasta da religião (Hobbes, Locke, Hume, Kant). A obra de Thomas Percival, Medical ethics (1803), tem muito da filosofia moral de David Hume. Naquela época, tudo levava o médico a conduzir-se da forma mais virtuosa e sua profissão equiparava-se a um sacerdócio, inclusive servindo-se como modelo pedagógico para as regras da vida moral das outras pessoas.

Tal postura respondia a um modelo calcado no corpus hipocraticum, constituído de um elenco de normas morais imposto pelos mestres de Cós. A virtude e a prudência eram os pilares dessa escola. Esses postulados, é claro, colocavam o médico muito mais perto da cortesia que de um profissional que enfrenta no seu dia-a-dia uma avalanche enorme de situações tão complexas e tão desafiadoras. Assim, este modelo consistia numa avaliação sobre

determinada conduta, o que certamente lhe deixava com poucas opções, pois o médico virtuoso era aquele que sempre acatava os ditames preconizados nas regras inflexíveis do juramento hipocrático.

Nesse estágio, a vinculação da Medicina com a Filosofia era de tal ordem que foi preciso reencontrar sua independência, justificando o caráter experimental e circunstancial do exercício da profissão. Mesmo assim, esta ética hipocrática permaneceu quase inteira, a ponto de interferir em quase todos os Códigos de Ética e nas Declarações de Princípios adotados no mundo inteiro e de que se tem conhecimento até o fim da década de 60, apenas com algumas atenuações dos rigores morais mais históricos.

O segundo período, a partir dos anos sessenta, foi caracterizado por uma modificação da ética médica tradicional por teorias emergentes da filosofia moral, das decisões emanadas dos tribunais, da institucionalização das especialidades e da despersonalização da relação médico-paciente. Além disso, verificou-se que, a partir da utilização de uma tecnologia médica mais sofisticada, muitos foram os conflitos com a ética do médico até então. A Ética Médica mais tradicional foi sendo deixada de lado quando se tinha de decidir sobre algo tão complexo e premente, e quando uma maior capacidade técnica de resolução gerava mais desafios àquela ética convencional. Precisamente nos anos setenta, começou-se a desenvolver a chamada teoria de princípios, onde se preconizava a beneficência, a não-maleficência, a autonomia e a

justiça, sempre baseada num raciocínio de que, se um ato tem conseqüência

boa e está ajustado a uma regra, ele é eticamente recomendável.

De início, essa teoria foi amplamente aceita em virtude de não existir, à primeira vista, algo que se conflitasse com as teses deontológicas da teoria das

virtudes. E mais: ela apresenta a vantagem de reduzir o aspecto mais subjetivo

que permeia as questões da ética tradicional, permitindo algumas posições mais claras, principalmente diante de certos problemas até então dogmáticos. No entanto, essa teoria foi demonstrando na prática que não era suficiente para

responder a certas indagações de ordem mais pragmática, as quais exigiam respostas mais iminentes, como, por exemplo, o aborto, a eutanásia e a doação compulsória de órgãos, assuntos estes em que os principialistas divergem abertamente. E mais: daqueles princípios, apenas o da beneficência e o da não-

maleficência ajustam-se às regras hipocráticas, enquanto o da justiça e o da autonomia tudo faz crer que colide com aqueles postulados, face ao confronto

com o velho paternalismo da ética tradicional, que não abria espaço para as decisões do paciente e da sociedade.

O próprio Código de Ética Médica, atualmente em vigor, não elege o princípio da autonomia como o mais legítimo. Muitos até admitem que a sua aceitação absoluta pode colocar em segundo plano o melhor juízo do médico e o bem do paciente, embora reconheçam neste princípio um meio legítimo para a obtenção do consentimento esclarecido. O princípio da justiça ou da eqüidade é o que se afasta mais da concepção hipocrática, pois esta sempre esteve mais ao lado do bem do paciente do que do bem da sociedade. Este princípio só tomou força a partir do momento em que se flagrou as desigualdades sociais e a péssima distribuição dos cuidados com a saúde das comunidades flageladas pela iniqüidade e pela penúria. Esta doutrina hoje tem muitos adeptos face ao prestígio e à mobilização dos iniciados na Bioética, os quais vêm passando aos mais jovens tais conceitos como proposta de solução para os problemas éticos do dia-a-dia. Todavia, seus defensores, conhecendo as limitações dessas idéias, principalmente pela inexistência de uma base moral mais convincente, começam a defender a justificativa de que não há princípios morais inflexíveis e que cada um deve condicionar sua postura de acordo com as nuanças de cada caso em particular. A maior falha deste sistema é a não-fixação de uma hierarquia em seus princípios, mesmo entre os chamados “principialistas”. Isto não quer dizer que a Bioética não seja um caminho para uma grande discussão em favor da ética do médico.

O terceiro período, no qual estamos convivendo, pode ser chamado de

antiprincipialista, porque a justificativa moral é de que aqueles princípios se

conflitam entre si, criando-se uma disputa acirrada pela hierarquia deles. Diz-se, aqui, que aqueles princípios são insuficientes para satisfazer as necessidades dos dias de hoje e trazer respostas aos desafios do exercício da medicina mais atual. Outros o chamam de teoria da ética do cuidado. Dizem, ainda, que a

teoria dos princípios é por demais abstrata, não levando em conta certas

particularidades que não poderiam passar sem reparo, como, por exemplo, as características pessoais de sexo, idade, cultura, história pessoal, gravidade dos transtornos e circunstâncias do atendimento. Outros afirmam ainda que esses princípios são por demais abstratos e distantes das situações que se apresentam. Quando os principialistas discutem, nota-se que os caminhos da ética são muitos e diferentes.

Esse terceiro período, então, passa a ser o da virtude, do cuidado solícito e da casuística. A teoria da virtude não se preocupa tanto do tema do bom e sim na resposta à pergunta: “que tipo de pessoa gostaria de ser?” (A resposta seria: “competente”, “fiel”, “alegre”..., que corresponde a uma virtude.) A ética do cuidado solícito estaria sujeita a uma pauta confiável de tomada de decisões morais específicas. A casuística seria uma posição tomada a partir de casos concretos e singulares, capazes de serem usados como exemplo de consenso. Este conjunto, representante deste terceiro período, mas apenas não aceita a sua absolutização. Por outro lado, deve-se considerar que é difícil considerar a virtude como base desse sistema, pois não existe um ideário muito claro para as tomadas de posição. O mesmo pode-se dizer quanto à ética dos cuidados solícitos e à prática da casuística.

O quarto período, que ainda não começou, está se desenhando como uma crise entre os conceitos principialistas, as idéias anti-principialistas e o ceticismo de uma filosofia moral que não vem contribuindo para a verdade a que se quer chegar. Mesmo assim, esses filósofos e eticistas vão propor uma

idéia global e normativa, comum e humanitária, capaz de respeitar as opiniões divergentes e que permita confrontar diferentes crenças e concepções. E mais: que seja capaz de atenuar os impulsos da ciência e da tecnologia que tudo parece saber e explicar e quando a vida do homem começa a ser controlada pelo interesse de uma economia centralizada.

É bom repetir que aqueles princípios isoladamente deixem de existir, até porque a ética sempre foi mantida por um sistema que se sustenta em “princípios”. É claro que essa proposta não é tão fácil de ser assimilada quanto se imagina, pois é difícil admitir-se uma idéia de homogeneização cultural da moralidade, principalmente quando se quer impor uma ética de padrão ocidental em confronto com outros costumes tão diferentes. Ainda mais porque a idéia de uma verdade única é ilusória.

Mesmo que exista a possibilidade real de se entender a doença e a cura como um fenômeno universalizado, ainda assim não será fácil a generalização de um sistema de normas que sustente e ampare a ética do médico. Ou que garanta que aqui ou acolá não se venha privilegiar indivíduos ou grupos numa verdadeira “ditadura de cuidados”. É preciso que esse ideal não se transforme num pesadelo.

Por isso, é imprescindível que se mantenham as discussões não apenas no sentido da aceitação plural de idéias, mas que estas idéias sirvam para desbastar cada vez mais as divergências sociais que existem em determinadas concepções políticas e ideológicas, fazendo com que a Medicina seja um instrumento capaz de promover o bem comum.

Finalmente, é justo dizer que não se pode afirmar com certeza o que será do futuro da ética dos médicos nos próximos anos, a partir do momento que não se sabe afinal qual será o resultado do diálogo entre médicos e filósofos da moral. Esperamos que deste encontro não surja um descompasso entre estas duas ordens, onde, de um lado, tenha-se um tecnicismo exageradamente frio, e, de outro, uma ética de situação falsa e extremamente

subjetiva. O ideal será uma ética capaz de alcançar o homem de agora na sua integralidade, restabelecendo a dignidade e denunciando os horrores de seus dramas e de suas iniqüidades.

As interfaces entre a Bioética

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