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O primeiro depoimento foi de Márcia, com cinco páginas descrevendo o momento que residiu em Florianópolis. A garota natural da cidade de Canoas, (RS) chegou à capital em 25 de janeiro de 1987, onde foi primeiramente morar na praia Mole a convite de uma amiga. Lá, ela trabalhou como manicure. Neste tempo, Márcia conheceu Patrícia, que passou a convidá-las para participar das festas no Edifício

Helsinque. Segundo a garota, Patrícia a teria induzido a utilizar cocaína, justificando sua participação nas reuniões.

Nos apartamentos dos acusados, Márcia conheceu traficantes do morro do Mocotó. João Machado, o “Dedinho”, a quem ela se refere como sendo traficante, e Rosângela Corrêa, a “Zú”. Em relação a “Zú” a garota afirmou que a mesma compartilhava sua seringa com os outros participantes e que em 08 de agosto de 1987, a “Zú” soube através de exame que era portadora do vírus da Aids, juntamente com seu marido, “Dedinho”. E mesmo com o diagnóstico, o casal compartilhou sua seringa com os demais, sem lhes informar do estado de saúde, segundo Márcia.

O ponto alto desta acusação foi a declaração de que o casal afirmava abertamente que iria propagar a doença ao maior número de pessoas possíveis, através de seringas contaminadas para o consumo de cocaína e por meio de relações sexuais, que segundo a garota, as maiores protagonistas foram Rosana (Patinha) e Patrícia.

Na metade do depoimento descrito pelo escrivão Raul Raitz surgem alguns indícios da linguagem conflitante. Em meio a tantas revelações, Márcia falou sobre “vulgo Onça”, o Cláudio Veríssimo Vieira, também bastante presente nas reportagens de jornais, como freqüentador assíduo dos apartamentos do trio de envolvidos. Casado e com filhos menores, a declarante disse que a esposa de Cláudio desconhecia que o mesmo era portador da “famigerada” doença. O termo não veio de Márcia, mais do escrivão que assim reconstruiu o depoimento da garota. Aos poucos torna-se perceptível que o depoimento de Márcia é mais do que uma descrição fidedigna dos fato. O discurso da garota foi construído com estereótipos que alimentaram o acontecimento. Estereótipos estes que foram maneiras da justiça, por meio do trato do escrivão, significar o episódio.

Em seguida, a garota disse que desconhecia a existência de um pacto de morte firmado entre os aidéticos para disseminarem o vírus da Aids. E interessante também foi a recorrente linguagem utilizada, recheada de termos técnicos para descrever as ações do grupo,

[...] que a declarante desconhece a existência de um pacto de morte firmado entre os aidéticos para disseminarem a AIDS, mas tem certeza que os aidéticos conhecidos da depoente, pertencentes ao grupo de risco dos viciados em drogas injetáveis estão transmitindo a doença, ou procurando transmiti-la através de sessões de cocaína com aparelhos hipodérmicos de uso com, digo,

coletivo ou mesmo através de múltiplas relações sexuais, abdicando do uso de quaisquer preservativos e na mais absoluta promiscuidade. Que nada mais disse e nem lhe foi perguntado. Lido e achado conforme vai devidamente assinado. Eu Raul Raitz, escrivão o datilografei.247

As acusações em volta do grupo partiram da existência de um “Pacto da morte”, que trouxe um sentido próprio, uma representação de um grupo de aidéticos comprometidos em disseminar o vírus da Aids. Do depoimento registrado pelo escrivão destaco: “pertencentes ao grupo de risco dos viciados em drogas injetáveis”, porque é um exemplo de como existe certo julgamento do escrivão que rotulou os envolvidos dentro do grupo de risco. Da mesma forma com “mais absoluta promiscuidade”, a frase emite significados, dos quais os envolvidos são postos como pessoas que extrapolaram as regras sociais em relação ao sexo. Segundo Howard Becker, “Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas””.248

Outra idéia importante, segundo o sociólogo, trata de compreender como certos atos são encarados como “desviantes”. A resposta depende da reação das pessoas frente ao caso. Isso nos leva a compreensão de que a natureza do desvio não se encontra no próprio ato, mas nas respostas que as pessoas concedem a ele. O episódio em questão passou a ser criminalizado. Primeiro, porque foi construído pelos jornais como parte de um “pacto/gangue” de pessoas que estiveram juntas para cometer algum ato ilícito; segundo, por envolver temas ora tabus, ora ilícitos, como sexo e drogas. Além de serem amedrontadores, como foi a Aids.

Neste caso, a justiça partiu da premissa que a relação dos envolvidos invocou algo imoral, ligado à substâncias ilícitas. Os elementos que emergem a princípio, neste primeiro depoimento, são os de que a justiça também construiu o episódio conferindo a ele estereótipos.

O foco neste depoimento foi a reconstrução do que teriam sido as reuniões para consumo de cocaína nos apartamentos 821 e 841. Em nenhum momento a garota foi inquirida para falar sobre a acusação de furto, motivo inicial que a levou ser presa.

247 Inquérito Policial, 19 out. de 1987, folha nº 09. 248 Becker, Howard Saul. Op. cit., p. 15.

Ao dia 21 de outubro de 1987, logo após seu longo depoimento, o resultado laboratorial de Márcia atestou exame negativo para HIV.249 Resultado este que os jornais passaram a especular, pois era uma estratégia da polícia pra incriminar o trio de acusados. Como se sabia que era preciso realizar mais testes para confirmar o estado de saúde da garota, as investigações continuaram.

Marilisa, natural de Seara (SC), colega de Márcia, que também foi presa por acusação de furto por parte do casal, João Machado e Rosangela Corrêa, prestou depoimento ao 6ª Distrito Policial. Menor de idade, com 17 anos, a garota prestou depoimento na presença de uma mulher que se dispôs a ser curadora.

Marilisa alegou que na semana que passou em companhia de Márcia, furtaram algumas roupas do casal, mas que já havia devolvido a João Machado. Ela e Márcia foram expulsas do apartamento e acusadas por furto. Sobre o tempo que residiu com “Zú” e “Dedinho”, afirmou que ambos eram aidéticos, que faziam uso da cocaína e, inclusive que “Dedinho” já tinha sido preso por tráfico de drogas.

Em seguida, segue uma longa descrição sobre os horários em que era utilizada a cocaína, traficantes que apareciam nos apartamentos, como a droga era utilizada e como eram feitas as negociações. De forma que nomes foram revelados, como os traficantes do morro do Mocotó: Dói, Tito, Baleia, Bugão e Hercílio. Neste depoimento o ponto alto foi a descrição de um esquema de tráfico em Florianópolis que envolvia muitas pessoas, desde os próprios traficantes, até crianças. A garota ainda afirmou que o filho mais velho do casal, com dez anos, já cheirava cocaína.

As revelações sobre o tráfico tiveram destaque naquele momento, porque ocorreu uma descrição minuciosa sobre como ocorriam as negociações. A polícia, após o conhecimento deste fato, passou a montar esquemas para prender mais traficantes no sentido de inibir o tráfico na cidade. O tráfico sempre existiu, mas naquele momento tornou-se problema para a cidade aos olhos da polícia. O morro do Mocotó passou de certa forma a ser foco das mazelas da capital, onde os próprios jornais destacavam como local de moradia de quem vinha de fora, que sem emprego acabavam nas mãos de traficantes.