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O bairro Trindade, contexto onde ocorreram as histórias do episódio “pacto/gangue” possui uma história de crescimento urbano ocorrido após a década de 1960. A historicidade deste bairro pode ajudar a compreender características, como a intensa transitoriedade de pessoas nos apartamentos do edifício Helsinque, bem como o fato de muitos moradores serem de outras cidades. Outro fator ligado ao desenvolvimento e crescimento das áreas urbanas, que aliás, durante o episódio passou a ter visibilidade, foram os locais à margem da cidade, como o morro do Mocotó por conta do tráfico de drogas e o envolvimento no episódio. Nesta busca por compreender estes aspectos,

será possível uma visualização da geografia social de alguns pontos da cidade na década de 1980.

Este bairro era chamado de Sub Distrito da Trindade, também conhecido como localidade Trás do Morro. Era uma antiga freguesia ocupada por açorianos desde o século XVIII.163 Até 1960 a Trindade era um local rural, com tradições de festas religiosas e “Farra do Boi”. Com o crescimento urbano, o bairro passou a apresentar características cosmopolitas, devido às transformações urbanas ocorridas inicialmente na década de 1960. Algumas destas transformações promoveram mudanças significativas no bairro e mesmo na cidade, das quais a criação da Universidade Federal de Santa Catarina em 1962, com sua instalação na antiga fazenda Assis Brasil. E logo após, em 1975164 a instalação da ELETROSUL (As Centrais Elétricas do Sul do Brasil), inicialmente localizada em Brasília, depois no Rio de Janeiro e finalmente com sua sede em Florianópolis, onde cerca de 450 funcionários vieram trabalhar e residir na cidade.165 Do encontro destes funcionários advindos de uma metrópole como o Rio de Janeiro, com a população nativa, ocasionou um choque cultural, que pode ser compreendido por meio do colunista social na década de 1970, Beto Stodieck, no jornal O Estado em 1978. Estes funcionários eram chamados de “eletrossuis”.166

Para atender as estruturas mencionadas ocorreu um investimento por meio do PLAMEG (Plano de Metas do Governo)

163 VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina: a Ilha. 2. ed. Florianópolis: Lunardelli, 1984 apud

BERNARDES, João Victor. A Família Vidal e o processo de modernização de

Florianópolis (1960-1980). 2007. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) –

Universidade do Estado de Santa Catarina, p. 30.

164 Jornal O Estado, 05 jul. 1978, p. 16. 165 Idem, Ibidem, p.25.

166 Trechos das declarações dos de alguns funcionários da Eletrosul em 1978 e rebatidas por

Beto Stodieck em sua coluna no jornal O Estado em 1978. Um dos entrevistados, por exemplo, num rasgo de total superfluosidade, teve a audácia de dizer que um dos problemas fundamentais de Florianópolis é não ter sessão de cinema a meia-noite... Como se no Rio tivesse todos os dias: tem, e mesmo assim em raros cinemas, as sextas e sábados... A propósito: os Daux, preocupados, já estão pensando seriamente em sanar esse problema, instituindo a sessão das 2 da madrugada...Só pra eletrosuis... O mesmo senhor afirma, em tom de queixa, “que os cariocas dão uma educação mais liberal para os filhos, completamente diferente daqui”. No entanto, comparem o desbaratinado nível em que se encontra a decadente rapaziada da Zona Sul carioca com os da Ilha. (Dispensa-se comentários).

Uma senhora reclama que as vizinhas só lhe dão lacônico “oi” e nada mais. Até parece que no Rio as pessoas sabem quem mora em cima, em baixo, na frente ou nos lados. Agora, uma coisa todos foram unânimes em afirmar: o florianopolitano, de maneira geral, é difícil de se relacionar com o pessoal de fora – e depois desta reportagem, mais ainda.... Ver: Jornal O

iniciado em 1961, durante o governo de Celso Ramos,167 para proporcionar um crescimento econômico através dos investimentos em indústrias, de melhorias nas estradas e um crescimento imobiliário, que acabou sendo desordenado e predatório.

Esse processo predatório foi estudado por Eduardo Guerini em dissertação de mestrado acerca dos impactos sócio-ambientais em Florianópolis neste período. Ele acredita que esse processo resultou de um modelo de desenvolvimento de “urbanização tardia” na economia catarinense, que ainda assumiu um processo de reprodução social excludente. Como aspectos que podem ser enquadrados como impactos ambientais, ele apontou a elevada degradação ambiental devido à baixa qualidade de serviço de saneamento e uma elevação nos preços de terrenos nas áreas mais servidas em termos de infra-estrutura, como o bairro Trindade, que relegou as populações com renda menor para as periferias da cidade.168

Muitos vieram residir no bairro Trindade, como estudantes, professores de outras partes do Estado e do Brasil, para estudarem e trabalharem na UFSC, ativando a economia com a utilização de serviços locais e aluguel de imóveis. Nesse contexto imobiliário, surgiu o condomínio Europa, em 1976,169 composto por um conjunto habitacional com vários edifícios, entre os quais, o edifício Helsinque, local onde foram protagonizadas as histórias do “pacto/gangue”.

Por meio dos jornais e inquérito policial é possível perceber um pouco do perfil dos moradores daquele edifício. Tratava-se de pessoas que em sua maioria vieram de outras cidades e estados, que residiam há dois anos em média em Florianópolis. Com o episódio, as reuniões naquele edifício passaram a ocorrer com mais freqüência. De forma que não só questões sobre o trio de envolvidos passaram a ser tema de discussão, como também as deficiências estruturais daquele condomínio, que foram até compartilhadas pelos outros blocos. No segundo capítulo do presente trabalho foram apontadas as reivindicações feitas pelos moradores, por meio da mídia impressa local, acerca daquela localidade, como o problema da violência devido à falta de

167 SCHMITZ, Sérgio. Planejamento estadual: a experiência catarinense com o Plano de Metas

do Governo PLAMEG 1961-1965. Apud BERNARDES, João Victor. Op. cit., p. 21.

168 GUERINI, Eduardo. Metropolização e impactos sócio-ambientais em Florianópolis

(1986-1996). Dissertação de mestrado em sociologia política – Universidade Federal de Santa

Catarina, 2000, p. 37 a 44.

169 Dado retirado da ficha cadastral de aprovação de projeto do Condomínio Europa – acervo

segurança e, em conseqüência disso, a solicitação do fechamento do condomínio.

Segundo Duarte, dependendo das circunstâncias históricas, um bairro pode se perceber como uma comunidade. O sentimento e as experiências partilhadas definem essa construção, pouco importando as diferenças econômicas, sociais ou políticas, tendo mais peso a constituição dos valores sociais.170 Essa definição pode ajudar a compreender como neste momento vários moradores dos blocos do Condomínio Europa passaram a se organizar para reivindicar melhorias nessa localidade.

Esta análise se aplica também em relação a opinião popular em cartas de leitores, que manifestavam sua revolta contra o grupo acusado. Com isso, pode-se dizer que uma comunidade se formou na tentativa de criar barreiras contra o trio. Mas este sentimento foi mutável, pois só ocorreram laços de solidariedade durante o episódio. Em fins do ano de 1987, quando os jornais deixaram de lado as histórias do “pacto/gangue”, não mais esteve nas capas e matérias, perdendo-se também essa característica de pertencimento da comunidade.

Partindo de uma análise sobre o estudo de Elias e Scotson, acerca das diferenças de poder da pequena comunidade de Winston Parva, permeadas pelas categorias “estabelecidos e outsiders”, é possível utilizá-la para perceber como em certa maneira os envolvidos no caso “pacto/gangue” foram percebidos como “outsiders”, não por serem moradores novos, mas por terem sido portadores de valores considerados desregrados, de fora, em decorrência do uso de drogas e relações sexuais. E o contato mais íntimo com estes “outsiders” poderia representar um sentimento desagradável, pois eles colocavam em risco a defesa das normas e tabus coletivos daquele grupo “estabelecido”.171

O morro do Mocotó como local à margem do centro de Florianópolis, teve seu desenvolvimento a partir da lógica de urbanização e modernização por volta de 1920, em Florianópolis, que seguiu o modelo do Rio de Janeiro, tendo iniciado esta dinâmica de transformações em meados do século XIX. Aqui, este processo adotou também uma lógica higienista, atribuindo aos pobres a responsabilidade pelas doenças que acometiam a população. Assim, medidas de profilaxia

170

DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operários e identidade cultural. Trajetos. Revista de História UFC. Fortaleza, vol. I, n° 2, 2002, p. 107.

e reformas urbanas foram adotadas pelas autoridades públicas para evitar que as doenças atingissem a elite local.172

A partir desse momento ocorreu uma divisão de espaços, de costumes e de direitos, deslocando as populações que viviam nas margens do antigo rio da Bulha, hoje Avenida Hercílio Luz, para os morros da cidade. A Avenida Hercílio Luz foi inaugurada em 1922 e, tornou-se uma espécie de linha divisória entre pobres e ricos. É certo que as condições sanitárias melhoraram, já que uma extensa área urbana ligando a baía sul, a partir do lago 13 de Maio, até a Praia de Fora, na baía norte, promoveu um melhor saneamento. O banho de mar, antes não muito praticado, passou a ser uma forma de evitar doenças, bem como, uma prática “chique” entre a elite de Florianópolis.173

Portanto, o episódio conduziu também, a uma melhor compreensão dos espaços em Florianópolis. No que tange ao desenvolvimento do bairro Trindade, as relações sociais e, a visibilidade do Morro do Mocotó. Local este à margem, que a partir do caso, trouxe à tona uma problematização da sua formação e desenvolvimento ao longo da década de 1980.