• Nenhum resultado encontrado

2.   HISTÓRICO DOS MATERIAIS DE PINTURA EM PELOTAS 82

2.5.  DEPOIMENTOS DOS VIAJANTES 94 

Na época em que Pelotas crescia e enfeitava-se, não foram poucos os viajantes que relataram suas impressões acerca do cotidiano observado em suas breves estadas. Mário

Osório Magalhães reuniu em dois volumes trechos de livros e cartas de viajantes que fazem alguma referência a Pelotas. Nos dois volumes (1809-1871)75 e (1874-1925)76, há alguns poucos relatos que trazem informações sobre os materiais de pintura que poderiam ter sido fabricados em Pelotas, durante o século XIX.

Com as sobras da manufatura do charque (miúdos, couro, chifres, graxas, sebos e ossos), era possível a fabricação de, pelo menos, dois pigmentos: o branco de ossos (ou cinza de ossos) e o negro de ossos. O primeiro é feito pela calcinação de ossos de animais, formando uma cinza de ossos cuja composição química varia pouco, mesmo quando elaborada com ossos de diferentes animais. Sua cor é branca acinzentada e sua composição apresenta de 85% a 90% de Ca3(PO4)2 e o restante de Carbonato de Cálcio. O negro de ossos é feito da queima de ossos de animais em fornos fechados, geralmente são usados ossos que já foram cozidos e que estejam limpos da gordura e da goma. Este pigmento possui cor negra azulada e textura bastante fina, sua composição é feita por aproximadamente 10% de carbono, 84% de fosfato de cálcio e 6% de carbonato de cálcio77.

Ao abordar os depoimentos dos viajantes, se tem idéia se estes pigmentos poderiam ter sido fabricados pelas indústrias pelotenses que utilizavam os resíduos das charqueadas como matéria-prima.

O primeiro relato é de Francisco de Paula D’Azeredo. O interessante em seus escritos é a impressão acerca da coloração e do aspecto de acabamento das casas da cidade, em 1816: “São as casas aqui construídas de tijolo, cobertas de telha, e de um só andar, por causa da força dos ventos, caiadas e muito asseadas”78. Ao dizer que as casas eram ‘caiadas’, D’Azeredo poderia estar fazendo referência ao material de pintura, independentemente da utilização de pigmentos na cal, ou poderia referir-se à cor branca produzida pela pintura à cal pura, sem adição de pigmentos. Por este relato, fica-se sabendo haver preocupação com a pintura da fachada das construções.

Outro depoimento interessante, de 1846, é o do alemão Hermann Blumenau. Ele foi prático em Farmácia e doutor em Filosofia. Antes de dar origem, em Santa Catarina à colônia de Blumenau (a cidade até hoje conserva seu nome), ele pensou em se estabelecer em Pelotas, conforme conta em carta para seu amigo Göetter. Nesta carta, Blumenau fala sobre a hipótese

75

MAGALHÃES, Mário Osório. Pelotas: Toda a Prosa. Primeiro Volume (1809-1871). Pelotas: Armazém Literário, 2000, p. 186.

76

MAGALHÃES, Mario Osório. Pelotas: Toda a prosa. Segundo Volume (1874-1925). Pelotas: Armazém Literário, 2002, pp. 206-207.

77

GETTENS; STOUT, 1966, p. 99.

78

de tornar-se sócio de um empresário francês e com ele abrir novas fábricas que utilizassem como matéria-prima os produtos que sobravam da indústria do charque.

“Estudaria a possibilidade de ser aceito como sócio, apresentando meus planos de ampliação do empreendimento, com instalação de indústrias para o aproveitamento do material agora desprezado, assim como uma fábrica para a produção de beinschwarz (colorido preto, do pó de ossos) e outra de velas, onde se pode melhorar bastante o produto hoje existente no mercado”79.

Não menos importante é o relato de A. Augusto Pinho, que esteve por Pelotas em 1869. Pinho tem relatos bastante detalhados sobre as características da cidade e seu povo. Para o interesse desta pesquisa, ele apenas cita que haveria ‘fábricas de queimar ossos’ nos arredores da cidade:

“Os subúrbios da cidade têm bonitas chácaras com formosas casas de vivenda, muitos estabelecimentos de charqueadas, cortumes, lavanderias de lã, fábricas de queimar ossos, de secar e salgar línguas, que é no que consiste o assaz considerável comércio de Pelotas”80.

Estas ‘fábricas de queimar ossos’ teriam, porém, função diferente daquela comentada por Blumenau, ao invés de produzir pigmento preto ou branco, a queima dos ossos produzia um fertilizante, conforme conta Herbert Smith que visitou Pelotas em 1882:

“A gordura e o sebo são espremidos por aparelhos especiais e dispendiosos, em que se emprega o vapor de alta pressão. Os ossos incineram-se nas fornalhas que produzem este vapor, e a cinza deles resultante vai para a França, onde a empregam como fertilizante”81.

79 MAGALHÃES, 2002, p. 112. 80 Id., 2000, p. 154. 81 Id., 2002, p. 206-207.

Figura 92: Graxeira (atual caixa d'água) e fornalha da charqueada de José Gonçalves Chaves. Foto: Douglas Heidtmann Jr.

Figura 93: Vestígios do forno e chaminé de queimar ossos, da charqueada do Visconde do Jaguari. Foto: Douglas Heidtmann Jr.

Vittorio Buccelli visitou a cidade, em 1905, e também fez uma série de comentários a respeito do aspecto e das cores das casas e do aproveitamento dos resíduos da fabricação do charque.

Nota-se, em todas essas construções, não um luxo excessivo ou grotesco, do qual se abusou em certos momentos de propriedade imprevista em numerosas cidades da América do sul, mas uma digna sobriedade de cores e ornamentos e uma certa harmonia de linhas sem grandes audácias estéticas e estáticas e sem ostentação de uma riqueza que não existe [...].

Os ossos vão para as graxeiras (caldeiras de graxa), onde depositam, antes de tudo, a gordura que contém, e depois são jogados na fornalha para servir de combustível, virando cinza, a qual é exportada. [...].

Atualmente não existindo terras cultivadas próximas às charqueadas, por falta de agricultores, o sangue e as tripas são jogadas fora, e a exportação de ossos é assim pouco remunerada por causa dos fretes altos, pelo que o mais das vezes só os navios a vela os carregam como lastro82.

82

Os depoimentos apresentados foram os que trataram mais diretamente sobre os assuntos de cor e de pintura. Por tais relatos, parece que os ossos ou outros resíduos da ‘indústria’ do charque não foram usados na pintura ou no acabamento das fachadas das casas da cidade.